Tornar-se pastor evangélico é a aspiração de muitos jovens brasileiros, e uma carreira plausível para um ex-jogador de futebol, constata a socióloga.O neopentecostalismo se difundiu entre atletas desse esporte e oferece uma cosmologia da prosperidade
IHU - A presença do neopentecostalismo no futebol é o novo nexo entre futebol e religião que a antropóloga Carmen Sílvia Rial examina em seus recentes estudos. O fenômeno, disse a pesquisadora na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, coincide com o “aumento meteórico das igrejas evangélicas no Brasil”.
E complementa: “É o caso dos jogadores de futebol. A doutrina
conhecida como Teologia da Prosperidade está na base das igrejas
evangélicas que tiveram maior sucesso no Brasil. Assim, a Modernidade
não apenas não acabou com a religião, como previam alguns, mas a
reforçou, como é o caso do neopentecostalismo”. De acordo com Rial, “o
neopentecostalismo oferece uma cosmologia capaz de integrar as novas
experiências de vida destes jogadores (a experiência de viver no
exterior, de solidão) assim como possibilita, para os
jogadores-celebridades, viver como milionários sem culpa. Ao contrário
do catolicismo que prega a simplicidade e concentra-se na vida após a
morte, o neopentecostalismo faz das riquezas materiais prova de um bom
diálogo com Deus”.
Carmen Sílvia Rial é graduada em Ciências Sociais e
Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É
doutora em Antropologia e Sociologia pela Universidade Paris V –
Sorbonne. Na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales cursou
pós-doutorado. Leciona no departamento de Antropologia da Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC. De sua vasta produção bibliográfica,
citamos o artigo The ‘Devil’s Egg’: The Football Players as New Missionaries of the Diaspora of Brazilian Religions, publicado na obra The Diaspora of Brazilian Religions (Netherlands: Brill, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a relação que podemos estabelecer entre futebol e religião?
Carmen Rial – Futebol e religião são fácil e
interessantemente relacionáveis – não exclusivamente, mas especialmente
na América do Sul e na África. O catolicismo popular e os cultos
afro-brasileiros sempre estiveram e ainda continuam presentes no
futebol. Sapos e galinhas enterrados nos estádios adversários para que
ali não se façam gols, oferendas mágicas (despachos de macumba) nas
esquinas antes de jogos importantes, e visitas de jogadores a casas de
cultos afro-brasileiros eram comuns no passado e ainda são atos
recorrentes que buscam uma proteção espiritual superior.
Mas todos estes atos eram e são cercados de segredo, pois a religião
oficial dos clubes brasileiros é a católica. Há capelas católicas em
muitos estádios. O que aparece divulgado na imprensa, quando uma equipe
procura um lugar sagrado coletivamente, na maioria das vezes guiada pelo
treinador, é numa igreja católica.
Mas é sabido que os jogadores procuram suporte espiritual também em
cultos afro-brasileiros. Historicamente, os massagistas tiveram o papel
de fazer a mediação entre os jogadores de futebol e os cultos
afro-brasileiros, o que talvez se deva por sua origem social comum.
Embora não leiamos nada sobre esse tipo de prática na impressa, é bem
provável que atualmente continue a acontecer, numa escala menor,
envolvendo menos jogadores. Sabemos com certeza que outros gestos
mágicos continuam a ser praticados por um a cada dois jogadores
brasileiros, como tocar a grama com a mão antes de entrar no campo,
entrar no gramado sempre com o pé direito, chutar as traves do goleiro,
etc.
“San Diego” Maradona
Durante minha pesquisa etnográfica, que me levou a
clubes localizados em mais de dez países, encontrei muitos símbolos
religiosos em vestiários de diferentes estádios pelo mundo: imagens de
Cristo e especialmente da Virgem Maria, algumas delicadamente envolvidas com panos azuis (como no pátio interno do clube Paysandú em Belém), outras mostrando o rosto de um Jesus sofredor ornado com uma coroa de espinhos ensanguentada (clube Seville, de Sevilha).
Alguns jogadores ascendem a uma condição sagrada aparecendo em
pôsteres, nas paredes de bares e nos quartos de jovens. Li manchetes
como “Deus vive na Catalunha” no jornal francês L'Equipe, o mais importante jornal de esportes francês, referindo-se a Messi. “Sem o Messias não há milagres”, clamou outra manchete um dia depois que o Barcelona perdeu para o Bayern na semifinal da Champions League em 2013. Este jogo de palavras encontrei em muitos jornais ao redor mundo.
Outro jogador argentino, Maradona, recebeu esse nível de consagração e ainda mais com a fundação da Igreja Maradonista. Encontrei “templos” para Maradona nas ruas de Nápoles, com sua foto ao lado de Santo Expedito e outras santidades católicas, logo abaixo “San Diego” e “Capello de Diego Miraculoso Maradona”.
Poderia ainda continuar descrevendo o templo localizado no túnel de acesso ao campo de jogo do Camp Nou,
em Barcelona, ou ainda mais surpreendente, um grande memorial onde os
torcedores fanáticos do Atlético podem descansar em paz para sempre,
suas cinzas mortais sendo colocadas nas paredes do estádio Sanchez Pijun,
num memorial que esta há metros distante do campo. Agora, o que tenho
procurado explorar na relação entre religião e futebol não é exatamente
isso. O que é novo na relação entre futebol/religião – e sobre o que
tenho escrito – é a presença do neopentecostalismo no futebol. Isso
coincide com o aumento meteórico das igrejas evangélicas no Brasil.
IHU On-Line – Dentro da perspectiva brasileira, como podemos compreender esse nexo?
Carmen Rial – Como ia dizendo, o nexo atualmente tem
como centro o neopentecostalismo. Esta presença coincide com a virada
neopentecostal. De acordo com o senso do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE,
um em cada cinco brasileiros são agora “evangélicos”. Em outras
palavras, 4,3 milhões de pessoas, ou 22,2% da população brasileira. A
maioria destes evangélicos é formada por neopentecostais.
Lembrando: o movimento pentecostal iniciado nos EUA foi introduzido no Brasil a partir 1910, através da Congregação Cristã e da Assembeia de Deus,
que se inicia em 1911. Essas deram origem nos anos 1950 a outras
igrejas, como a Igreja do Quadrangular, Brasil em Cristo e Deus é Amor,
que é de 1962. Estas denominações tiveram um crescimento muito rápido,
que coincidiu com o crescimento da população urbana.
Em meados dos anos 1970, pastores brasileiros criaram o que ficou reconhecido como as congregações neopentecostais: Sarar nossa Terra, Igreja Universal do Reino de Deus, de 1977, Renascer em Cristo, de 1986, Bola de Neve, no ano 2000, etc. Como explicar esta expansão?
Bem, o Brasil tem experimentado um próspero momento de crescimento
econômico nos últimos anos, em grande medida graças à exportação das
chamadas commodities (mercadorias com cotação internacional, como
minérios ou produtos agrícolas) e ao seu bom preço no mercado global.
Com uma política de distribuição de riqueza sustentada por impostos, a
economia do país teve êxito em tirar 52 milhões de pessoas da pobreza e
em integrá-las numa nova classe média baixa com diferentes padrões de
consumo e expectativas de vida.
Ainda assim, enormes desigualdades econômicas permanecem. E ao mesmo
tempo observamos um forte movimento de deslocamento em direção aos
centros urbanos, para as grandes capitais mas também desde os anos 1980,
para o exterior. Estes emigrantes enfrentam novos desafios no exterior,
e as práticas religiosas funcionam como um alívio num contexto nem
sempre cordial.
Teologia da prosperidade
A maioria dos neopentecostais estão entre a baixa
classe média. As práticas neopentecostais parecem lhes dar suporte para
enfrentar novas realidades na sociedade, como a competição no trabalho e
na escola, ao mesmo tempo em que permitem que gozem seus novos status,
seus novos bens de consumo, sem culpa.
É o caso dos jogadores de futebol. A doutrina conhecida como Teologia da Prosperidade
está na base das igrejas evangélicas que tiveram maior sucesso no
Brasil. Assim, a Modernidade não apenas não acabou com a religião, como
previam alguns, mas a reforçou, como é o caso do neopentecostalismo.
IHU On-Line – Como podemos compreender o fenômeno dos jogadores de futebol como novos missionários na diáspora das religiões brasileiras?
Carmen Rial – Tornar-se um pastor evangélico é o
sonho de muitos jovens pelo país e uma possível carreira para um
ex-jogador de futebol. Cursos intensivos são oferecidos por algumas
dessas igrejas neopentecostais, por menos de R$900, e duram alguns dias
apenas. Um pastor neopentecostal talentoso pode fazer mais de R$20 mil
por mês nessas igrejas.
Todas as denominações neopentecostais têm a missão de converter o
mundo à sua crença. Para alcançar esse objetivo, elas estão sendo
administradas como se fossem um negócio e fazem extenso uso dos meios de
comunicação de massa. É através também destes meios que as religiões
neopentescostais brasileiras foram disseminadas entre a diáspora
brasileira não exclusiva mas principalmente através dos canais de mídia.
Durante meu trabalho de campo, notei que jogadores na Espanha,
Holanda, França, Japão, Canadá e Marrocos assistiam ao canal de
televisão brasileira Record todos os dias. Também a Globo, mas a Record
tem esta presença religiosa mais marcada. Ela está presente em mais de
80 países, é um poderoso canal de disseminação dos preceitos da Igreja
Universal do Reino de Deus.
Na pesquisa, notei também que os jogadores faziam constantes
referências a Deus e a Jesus, em suas entrevistas com a mídia. Muitas
frases ou comentários que começam ou terminam com a “vontade de Deus” ou
“obrigado, Deus”, além de gestos em campo de agradecimento a Deus, e de
inscrições de palavras sagradas em suas camisetas (“Deus é minha
força”, “Obrigado Jesus”). Isso faz com que, constantemente, os fãs no
estádio e a audiência da televisão sejam lembrados sobre a importância
de Deus. Essas imagens transmitidas para a audiência global de televisão
promovem mundialmente a fé e se estabelecem como topos visuais
repetidos toda vez que um time brasileiro vence um campeonato.
IHU On-Line – Quais são os países nos quais esse neopentecostalismo tem sido professado pelos atletas?
Carmen Rial – As igrejas pentecostais estão
presentes em cerca de 200 países no mundo, e os futebolistas
brasileiros, presencialmente ou via mídia, estão em todos. Minha
pesquisa com os jogadores levou-me a 15 países: Espanha (Sevilha, Madri,
Barcelona), Canadá (Toronto), Holanda (Almelo, Groningen, Alkmaar,
Rotterdam e Amsterdam), Japão (Tóquio); França (Lyon, Le Mans, Nancy and
Lille), Mônaco, Bélgica (Charleroi), Grécia (Athens), China
(Honk-Kong), Índia (Nova Delhi e Bombaim); Singapura, Austrália (Perth,
Adelaide, Melbourne, Sidnei), Coreia do Sul (Seul); Marrocos
(Marrakesh); Uruguai (Montevideo) e Brasil (Fortaleza, Salvador e
Belém), e em todos havia a presença de jogadores que tinham na fé uma
aliada para a saudade, o ambiente competitivo profissional, às vezes
hostil, e a solidão.
IHU On-Line – Em que medida a imigração é um fator importante para compreender a transnacionalização?
Carmen Rial – Imigração/emigração e
transnacionalismo são conceitos que devem ser usados com cuidado. Nem
todo o deslocamento para o exterior pode ser classificado de emigração e
nem toda a entrada num país pode ser considerada imigração. Os
jogadores com que conversei moram no exterior, mas não se consideram e
não são vistos como imigrantes nos país de acolhimento. Imigrantes são
os pobres, os que chegam sem documento, os que fazem trabalhos manuais
que os trabalhadores locais recusam ou aceitam, mas por salários
maiores. Já transnacionalização é um fenômeno próprio dos processos de
globalização que aponta para o ultrapassar fronteiras nacionais (que
continuam existindo, as nações continuam fortes, assim como o sentimento
nacional).
Imigrantes transnacionais (também chamados de transmigrantes) são
pessoas que se deslocaram de um país para outro, mas continuam mantendo
fortes laços com a nação de origem. É o caso de grande parte dos cerca
de 3,5 milhões emigrantes brasileiros, hoje, que vivem no exterior e que
continuam em contato diário com o Brasil através das redes Globo e Record, do Skype, internet de modo geral, de restaurantes brasileiros e de igrejas brasileiras.
IHU On-Line – Qual é o nexo que une esses atletas ao neopentecostalismo?
Carmen Rial – A religião (ou melhor, a fé, como
muitos me disseram, nem se trata de uma religião, mas de ter fé) oferece
ao jogador de futebol força extra e habilidade de expandir os limites
de seus corpos e resistência, como o antropólogo Marcel Mauss
já nos ensinou em um texto muito famoso: “As técnicas corporais”. Para
os que vivem no exterior, a religião fornece uma forte fundação de ajuda
para suportar o sacrifício de estar distante de um Brasil imaginado, de
suas famílias e amigos de infância, da saudade de ambientes de
solidariedade e autenticidade.
Atos religiosos são como instrumentos para gerir a fama e a fortuna,
que, se mal gerenciados, podem levar tanto para uma carreira curta no
futebol como para perda da alma.
O neopentecostalismo oferece uma cosmologia capaz de integrar as
novas experiências de vida destes jogadores (experiência de viver no
exterior, de solidão) assim como possibilita, para os
jogadores-celebridades, viver como milionários sem culpa. Ao contrário
do catolicismo que prega a simplicidade e concentra-se na vida após a
morte, o neopentecostalismo faz das riquezas materiais prova de um bom
diálogo com Deus.
IHU On-Line – Qual é a relação entre a autodisciplina e a Teologia da Prosperidade professada nesses credos?
Carmen Rial – A adesão de milionários do futebol às
igrejas neopentecostais coincide com a adoção da Teologia da Libertação
nos anos 1970 pelas igrejas pentecostais brasileiras. Até então,
seguidores do pentecostalismo, autodeclarados “crentes”, eram conhecidos
por sua adoção a certas normas rígidas de conduta. Eles eram proibidos
de desfrutarem prazer nesta vida, como beber álcool, escutar música,
assistir televisão e fazer sexo antes do casamento. Esportes e apostas
estavam entre as atividades proibidas.
A Teologia da Libertação, contudo, pregou que o
crente tinha o direito de aproveitar sua felicidade na Terra, e que eles
poderiam buscar sucesso financeiro e usufruir disso. As novas
denominações pentecostais, as neopentecostais, agregaram princípios de
autoajuda e controle mental (pensamento positivo) à sua pregação
bíblica. Os crentes estavam agora livres para expressar a si mesmo pelo
consumo de bens, música e esportes, integrando esses prazeres na sua
vida cotidiana.
IHU On-Line – Em que sentido o futebol serve como um palco para a pregação?
Carmen Rial – Levantar suas mãos ao céu para
celebrar um gol, ajoelhar-se após fazer um gol ou proferir alguma benção
depois de errar o gol por pouco são também atitudes muito comuns. Por
exemplo, depois do apito final da Copa do Mundo 2002, vencida pelo Brasil, Kaká tirou sua camisa para revelar sob ela outra onde se lia “Eu pertenço a Jesus”. E repetiu um gesto semelhante em Milão,
em 2004, quando venceu o Scudetto e no triunfo da Champions League, em
2007. Ele também tem esta mesma frase, acompanhada de “Deu é Fiel”
gravada nas suas chuteiras.
Estas imagens são propagadas pelos canais da mídia (no que um antropólogo indiano, Arjun Appadurai,
chama de mediascape). Esses gestos simbólicos promovem crenças
religiosas em escala global, como um tipo de “religiosidade banal” – se
posso pegar emprestado o termo de “nacionalismo banal” cunhado por Billig
(1995), para se referir à construção de um sentimento de pertencimento a
uma nação, feito diariamente, através de representações da nação – como
bandeiras ou o cantar de hinos. Eles silenciosamente se infiltram na
vida diária de milhões de espectadores, como algo sem importância, mas
que vão construindo este sentimento religioso entre os espectadores, do
mesmo modo que o nacionalismo é construído por uma bandeira “pendurada e
sem ser notada num prédio público”.
IHU On-Line – Na perspectiva de seus estudos, qual é o sentido das expressões “ovo do Diabo” e “religiosidade banal”?
Carmen Rial – Ovo do Diabo era como os “crentes” – fiéis das igrejas pentecostais clássicas, como a Assembleia de Deus
– chamavam a bola de futebol (ou de outro esporte), já que os jogos e
divertimentos em geral lhes eram proibidos. Religiosidade banal é um
modo de classificar estas práticas que têm um fundamento religioso, mas
que são realizadas fora dos templos, sem os rituais característicos das
religiões.
São práticas que se infiltram na vida das pessoas quando estão
usufruindo uma atividade que nada tem a ver – em princípio – com a
religião, como é o caso do futebol. Por isso “banal”, no sentido que Arendt deu ao termo, de algo silencioso, mas nem por isso menos eficiente. Esta banal religiosity
transmite-se através da media e tem o potencial de fazer aumentar o
contingente de crentes. Nesse sentido, os jogadores de futebol são
“soldados” da fé, “pastores” globais que também sustentam financeiamente
as igrejas neopentecostais, pagando o dízimo – se não decidirem por
eles mesmos abrirem uma Igreja, como foi o caso de Jorginho, em Munique, e passam a ser empresários missionários.
Nota: A fonte da imagem que ilustra a entrevista é http://migre.me/f8kMn
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