[cleofas]
26 de julho de 2013
Em síntese: A Revelação Divina é como um grão de mostarda que se vai
abrindo no decorrer do tempo, de modo a explicitar homogeneamente o que
se encontra implícito na Bíblia. Os teólogos e os Bispos vão
aprofundando o significado das verdades seminalmente reveladas. São
Paulo, aliás, falava da evolução do conhecimento infantil para o da
idade adulta; cf. 1Cor 13, 11s.
No diálogo ecumênico ouve-se não raro o irmão protestante replicar:
“Não está na Bíblia!”. Esta observação parece pôr termo final ao
diálogo. Tal é a temática que estudaremos nas páginas seguintes.
1. Uma fonte e dois canais
A única fonte de fé católica é a Palavra de Deus. Deus quis
revelar-se aos homens, e o fez mediante dois canais: a via oral (também
dita “Tradição ou Transmissão divino-apostólica”) e a via escrita
(chamada “Bíblia”). A oral é anterior à escrita (Já que escrever era
outrora uma arte difícil) e a acompanha servindo de referencial para o
entendimento correto da Bíblia. O Senhor Jesus instituiu o magistério da
Igreja, ao qual Ele assiste (cf. Mt 28, 18-20s) a fim de que seja o
fiel porta-voz e intérprete da Palavra de Deus. É o que o Concílio do
Vaticano II ensina nestes termos:
“9. A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura são, portanto,
intimamente conexas e comunicantes entre si. Pois, derivando ambas da
mesma fonte divina ¹, fundem-se de algum modo numa só coisa. De fato, a
Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto redigida sob a inspiração
do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite
integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada
por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos para que, sob a
luz do Espírito da verdade, eles, por sua pregação, fielmente a
conservem, a exponham e a difundam. Donde se segue que a Igreja não tira
só da Sagrada Escritura sua certeza a respeito de tudo o que foi
revelado. Por isso, ambas [Escritura e Tradição] devem ser recebidas e
veneradas com igual sentimento de piedade e reverência” (Const. Dei
Verbum nº 9).
Observemos agora:
Cresce, através dos tempos, o entendimento da Palavra de Deus; pois
ela foi proposta pelos seus mensageiros em estilo pastoral que pede
aprofundamento e sistematização. São Paulo mesmo reconhece ter
acontecido isto em sua vida:
“Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança,
raciocinava como criança. Depois que me tornei homem, fiz desaparecer o
que era próprio de criança. Agora vemos em espelho e de maneira confusa,
mas depois veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado, mas,
depois, conhecerei como sou conhecido” (1Cor 13, 11s).
No Evangelho a parábola do grão de mostarda propõe a mesma concepção:
o Reino dos céus está sujeito a certa evolução ou ao desabrochamento de
virtualidades nele inseridas.
O que importa, é que essa evolução seja homogênea, como homogênea é a
evolução de uma semente. Como exemplo dessa evolução homogênea, seja
citada a doutrina referente à Maria SSma; os Evangelhos a apresentam
como Mãe de Jesus, que é Deus e Homem; por conseguinte é Mãe de Deus.
Para exercer a maternidade divina, recebendo em seu seio Deus Filho,
Maria foi “cheia de graça” (Lc 1,28) ou isenta de pecado ou ainda
imaculada desde a sua conceição; e se, jamais esteve sob o jugo do
pecado, jamais foi dominada pelo império da morte, ou seja, não conheceu
a deterioração do seu cadáver no sepulcro, mas foi elevada em corpo e
alma à glória do céu, uma vez terminado o seu curso de vida na terra.
Tal concepção é nitidamente apresentada por São Vicente de Lérins (+ 435 aproximadamente).
2. A explanação de São Vicente de Lérins
Vicente nasceu na Gália provavelmente em fins do século IV. Levou
vida militar (dizem alguns; … vida devassa). Após o quê fez-se monge e
presbítero do Mosteiro de Lérins, no Sul da Gália. Dedicou-se ao estudo
da Teologia, donde resultou famosa obra intitulada “Comonitório”. Desde
seja extraída a seguinte passagem, tirada da Exortação 23:“O desenvolvimento do dogma da religião cristã.
Não haverá desenvolvimento algum da religião na Igreja de Cristo? Há certamente e enorme.
Pois que homem será tão invejoso, com tanta aversão a Deus que se
esforce por impedi-lo? Todavia deverá ser um verdadeiro progresso da fé e
não uma alteração. Com efeito, ao progresso pertence o crescimento de
uma coisa em si mesma. À alteração, ao contrário, a mudança de uma coisa
em outra.
É, portanto, necessário que, pelo passar das idades e dos séculos,
cresçam e progridam tanto em cada um como em todos, no indivíduo como na
Igreja inteira, a compreensão, a ciência, a sabedoria. Porém apenas no
próprio gênero, a saber, no mesmo dogma o mesmo sentido e a mesma
significação.
Imite a religião das almas o desenvolvimento dos corpos. No decorrer
dos anos, vão -se estendendo e desenvolvendo suas partes e, no entanto,
permanecem o que eram. Há grande diferença entre a flor da juventude e a
madureza da velhice. Mas se tornam velhos aqueles mesmos que foram
adolescentes. E por mais que um homem mude de estado e de aspecto,
continuará a ter a mesma natureza, a ser a mesma pessoa.
Membros pequeninos na criancinha, grandes nos jovens, são contudo, os
mesmos. Os meninos têm o mesmo número de membros que os adultos. E, se
no tempo de idade mais adiantada neles se manifestam outros, já aí se
encontram em embrião. Desse modo, nada de novo existe nos velhos que não
esteja latente nas crianças.
Por conseguinte, esta regra de desenvolvimento é legítima e correta.
Segura e belíssima a lei do crescimento, se a perfeição da idade
completar as partes e formas sempre maiores que a sabedoria do Criador
pré-formou nos pequeninos.
Mas, se um homem se mudar em outra figura, estranha a seu gênero, ou
se se acrescentar ou diminuir ao número dos membros, sem dúvida alguma
todo o corpo morrerá ou se tornará um monstro ou, no mínimo se
enfraquecerá. Assim também deve o dogma da religião cristã seguir estas
leis de crescimento, para que os anos o consolidem, se dilate com o
tempo, eleve-se com as gerações.
Nossos antepassados semearam outrora neste campo da Igreja as
sementes do trigo da fé. Será sumamente injusto e inconveniente que nós,
os pósteros, em vez da verdade do trigo autêntico recolhamos o erro da
simulada cizânia.
Bem ao contrário, é justo e coerente que, sem discrepância entre os
inícios e o término, ceifemos das desenvolvidas plantações de trigo a
messe também de trigo do dogma. E se algo daquelas sementes originais se
desenvolver com o andar dos tempos, seja isto agora motivo de alegria e
de cultivo”.
Como se pode apreciar, o texto é muito elucidativo. Vicente de Lérins
viveu numa época conturbada pelas controvérsias sobre a graça e o livre
arbítrio, sendo debatedores, de um lado, os discípulos de S. Agostinho
(+ 430) e, de outro lado, os pelagianos, e semipelagianos pessimistas
aqueles; otimistas estes, em relação à natureza humana.
Precisamente para combater as heresias (que, conforme a etimologia da
palavra grega haíresis, são escolhas… de algumas verdades em detrimento
de outras), Vicente formulou a norma sempre válidas:
“Na Igreja Católica é preciso procurar que todos demos adesão de fé
àquilo que em toda parte, sempre e por todos foi professado (quod
ubique, quod semper, quod ab omnibus…), pois isto é própria e
verdadeiramente católico, como declara a forma e índole do vocábulo, que
abarca todas as coisas em geral” (Comonitório II 5).
Muito sabiamente o autor insiste na continuidade da transmissão que
parte dos Apóstolos, passa pelos Padres na Igreja e chega a época mais
tardia. Disto difere a heresia, que é a escolha de certas verdades com
menosprezo de outras.
3. Conclusão
De quanto foi dito, depreende-se que pode haver artigos de fé não
explícita, mas implicitamente incluídos na S. Escritura. Sabe-se que os
autores sagrados não intencionaram escrever uma Suma de Teologia, mas
redigiram seus escritos ocasionalmente, a fim de atender a questões e
problemas das comunidades destinatárias; conseqüentemente ficaram ditos e
feitos de Jesus fora do âmbito bíblico ou na Tradição oral, como duas
vezes observa São João no fim do seu Evangelho (cf. 20, 30s e 21, 24).
Este depósito oral, projetando-se sobre o escrito, põe em evidência o
sentido profundo da Palavra escrita na Bíblia. Além do quê, a própria
razão humana penetra a Palavra da Bíblia, analisando seu sentido e
concatenando-a em ordem sistemática.
____________________
¹ Antes do Concílio do Vaticano II (1962-65), perguntava-se: há uma
fonte da Relação Divina (como dizem os protestantes, acenando para a
Bíblia)? Ou há duas fontes: a Bíblia e a Tradição ora, como dizem muitos
católicos?
Como se vê, o Concílio respondeu muito sabiamente apontando uma única fonte e dois canais.
Revista: “Pergunte e Responderemos”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 512 – Ano 2005 – p. 56
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