IHU - Até agora, é quase senso comum que Francisco está lançando uma reforma radical do Vaticano. Tão óbvia se tornou essa convicção que a revista italiana L'Espresso
publicou uma reportagem de capa nesta semana com uma foto do papa sob a
manchete: "Ele vai conseguir?''. Aparentemente, não havia nenhuma
necessidade perceptível de explicar ao que a manchete se refere – todos,
ao que parece, sabem que este papa está tentando limpar a casa.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 15-07-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A dificuldade com grandes narrativas, no entanto, é que elas se
tornam o prisma através do qual absolutamente tudo é visto, o que
dificulta distinguir os indícios reais de reforma dos gestos casuais, ou
das decisões que realmente expressam continuidade ao invés de mudança.
Nesses dias, se Francisco simplesmente abrir o seu correio, alguém provavelmente irá elogiar o gesto como uma incrível marca de inovação.
No ritmo vaticano, em outras palavras, estamos em plena temporada de fortes emoções.
Três histórias recentes ilustram essa dinâmica.
Motu proprio
Primeiro, no dia 11 de julho, o Papa Francisco emitiu um motu proprio, ou seja, um mandado sob a sua própria autoridade, implementando um novo código jurídico para o Estado da Cidade do Vaticano.
O código inclui sanções para uma série de crimes não mencionados
anteriormente, de forma específica, como o abuso sexual de menores, a
lavagem de dinheiro, e o furto e publicação de documentos confidenciais.
As mudanças entram em vigor no dia 1º de setembro e aplicam-se não apenas aos residentes do Estado da Cidade do Vaticano, com os seus 43 hectares, mas também aos empregados papais em todo o mundo, como a equipe diplomática do Vaticano.
Em alguns ambientes, a revisão foi definida como uma dramática
tentativa para obter o controle dos escândalos que têm assolado a Igreja
nos últimos anos. A dificuldade com essa forma de ver as coisas, no
entanto, é que ela exagera a pegada do novo papa.
Na verdade, a grande maioria das mudanças simplesmente ratifica leis ad hoc já promulgadas em resposta a situações específicas ou incorpora obrigações que o Vaticano
já havia assumido ao assinar convenções internacionais. As decisões
políticas subjacentes foram tomadas há algum tempo – em todo o caso,
incluindo as disposições sobre o abuso sexual e a lavagem de dinheiro,
as decisões ocorreram, na realidade, com Bento XVI.
Como o jornalista e vaticanista Gian Guido Vecchi observou no jornal Corriere della Sera, se esse código fosse emitido por Bento XVI ao invés de Francisco, é muito provável que o seu conteúdo teria sido idêntico.
O novo código é uma evidência de reforma, em outras palavras, mas não daquela que começou no dia 13 de março.
Visita à garagem
Em um nível mais simbólico, uma visita do pontífice à garagem do Vaticano
no dia 11 de julho gerou uma boa quantidade de frisson, particularmente
pelo fato de ele ter dito a um grupo de seminaristas e religiosos
alguns dias antes que "meu coração dói quando eu vejo um padre com o último modelo de carro".
Em alguns ambientes, a visita foi anunciada como o prelúdio de uma
grande liquidação, com o novo papa determinado a se livrar de todos os
vestígios de privilégio papal. Mais de um comentarista italiano retomou o
velho ditado de que a placa das limusines do Vaticano, que dizem "SCV" (Estado da Cidade do Vaticano, na sigla em italiano), significa na realidade "se Cristo visse".
(Aliás, o estacionamento do Vaticano, na realidade, tem duas seções. Uma, a "Garagem Nobre", contém os dez veículos reservados ao papa, incluindo dois ou três sedãs Mercedes Classe S, com a placa "SCV-1" que Francisco nunca usou. Nas ocasiões em que ele se deslocou de carro, ele tomou um Ford Focus mais simples. A outra seção é a "Garagem de Estado", que contém cerca de 50 veículos usados por outras autoridades vaticanas.)
Na verdade, havia menos coisas na visita do que o olho pode ver.
Primeiro, novos papas rotineiramente fazem uma ronda nas instalações e
entre as equipes vaticanas para se apresentar e assumir as rédeas
formalmente. A visita de Francisco na garagem já havia
sido planejada, e as autoridades dizem que não foi programada para
anunciar o início do fim da frota papal. Enquanto estava lá, Francisco não designou nenhum veículo para ser posto à venda.
Em segundo lugar, como o veterano vaticanista Luigi Accattoli
observou, mesmo o fato de se livrar de todos os veículos da coleção
realmente não geraria nenhuma economia, já que esses carros são doados à
Santa Sé pelos seus fabricantes – obviamente esperando os benefícios de
publicidade ao ver o papa passeando em um dos seus produtos.
No máximo, jogar a frota papal no lixo poderia infligir mais restrições econômicas à empresa Mercedes do que ao Vaticano.
Sem dúvida, Francisco prefere meios de transporte
modestos, e é difícil imaginar que os cardeais e outros príncipes da
Igreja vão ser tão descarados a ponto de usar limousines elegantes em
contraste ao exemplo do papa. Uma certa simplificação, portanto, está em
andamento, mas apenas abrir mão da garagem não é em si mesmo matéria de
grandes dramas.
Leito no avião
Terceiro, os blogueiros recentemente vieram à tona com o "furo" de que não haverá nenhuma cama para o Papa Francisco a bordo do avião papal que o levará para o Rio de Janeiro na próxima semana para a Jornada Mundial da Juventude, circulando a informação como mais um ato de abnegação. (Uma reportagem sugeriu que Francisco havia ordenado a Secretaria de Estado
a se certificar de que não haveria um leito.) Essa narrativa se
espalhou como metástase durante mais ou menos um dia inteiro, até que o
padre Federico Lombardi, porta-voz do Vaticano, se sentiu obrigado a responder.
"Nunca houve nenhuma carta da Secretaria de Estado para a Alitalia sobre a preparação do avião", disse Lombardi.
"A questão de se ter um leito a bordo nunca foi posto, porque hoje as
poltronas são muito cômodas e permitem que se repouse bem, e não há
motivo para se pensar em outra preparação".
"O Papa Bento XVI também nunca tivera nenhum leito nos últimos anos, por exemplo, nos voos para a África", acrescentou Lombardi.
Aliás, não existe um "avião papal", no sentido de um jato pertencente ao papa e de uso exclusivo por parte do Vaticano, como o Air Force One nos Estados Unidos. Ao contrário, quando o papa viaja, ele normalmente usa a Alitalia
para o trecho de ida e a companhia aérea nacional de qualquer país que
ele esteja visitando para o trecho de volta, em ambos os casos usando um
avião de passageiros normal atribuído pela empresa para esse dia.
A única vantagem real para o papa é que ele pode se sentar na
primeira fila da classe executiva, geralmente sozinho, mas, mais do que
isso, é praticamente a mesma experiência de qualquer outra pessoa que
faça um voo intercontinental. Francisco parece satisfeito com esse arranjo, mas dificilmente deu início a ele.
De fato, há indicações reais de mudança com Francisco
– a nomeação de oito cardeais de todo o mundo para tornar a governo da
Igreja mais colegial, por exemplo, e a criação de uma comissão para
investigar o banco vaticano, juntamente com a renúncia da sua cúpula.
Sem dúvida, há mais por vir.
Nesse meio tempo, no entanto, esses três exemplos sugerem uma dose de
precaução: só porque há uma revolução em andamento não significa
absolutamente que tudo o que aconteça seja revolucionário.
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