IHU - A cada quatro padres brasileiros, um larga a batina para se casar. O dado é do Movimento Nacional das Famílias dos Padres Casados,
que estima serem mais de 7 mil os religiosos que solicitaram no País a
dispensa do sacramento da ordem em troca do matrimônio. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil não divulga números sobre a questão.
A reportagem é de Edison Veiga e José Maria Mayrink e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 18-08-2013.
São quase 900 anos (desde 1139, no Concílio de Latrão)
de história em que padres não podem se casar. O tema é tabu. Nas
últimas duas semanas, o Estado entrou em contato com 12 ex-sacerdotes,
todos casados. A maior parte deles não quis falar. Outros contribuíram
com informações, mas preferiram o anonimato, "para preservar a mulher e
os filhos".
As histórias e opiniões deles, porém, são parecidas. Quase todos
declaram que não saíram da Igreja para se casar - mas que divergiam de
muita coisa e o casamento era consequência. Defendem o celibato
opcional. Muitos desempenham papéis pastorais em suas paróquias e
acompanham com interesse o papa Francisco. "Estamos
contentes com o espírito, as palavras e as atitudes cristãs dele. Mas
não dá para saber se e como ele vai enfrentar a realidade dos cerca de
150 mil padres casados no mundo", diz João Tavares, porta-voz do movimento.
O professor Eduardo Hoornaert, que tem 82 anos e mora em Lauro de Freitas
(BA), foi padre por 28 anos. Deixou o sacerdócio em 1982, ano em que se
casou. Historiador especializado em história da Igreja no Brasil e na
América Latina, continuou escrevendo artigos e livros. Afirma que,
embora tenha abandonado os ritos, não se desligou do ministério, "pois o
ministério é o Evangelho".
Hoornaert acredita que uma eventual readmissão de
padres casados não é prioridade para o papa, que tem outros problemas a
resolver. "Formar missionários com boa formação evangélica, sem essa
carga de 2 mil anos de dogmas e leis, é a prioridade", observa. "É
preciso reformular o ministério, e o papa Bergoglio sabe muito bem disso."
Para o historiador, que já participou de encontros de padres casados,
esse segmento não parece ser um celeiro de recursos para a alegada
falta de sacerdotes no Brasil, porque é heterogêneo. "Alguns padres que
se casaram são movidos pelo saudosismo e gostariam de voltar, enquanto
outros se adaptaram. A Igreja tem leis e uma delas é a do celibato", diz
Hoornaert. É bom lembrar, acrescentou, que a maioria
dos padres casados da associação tem mais de 50 anos. Os mais jovens que
deixaram o sacerdócio e se casaram têm outra cabeça.
Otto Euphrásio de Santana trabalhava na pastoral da
Arquidiocese de Natal quando deixou o ministério e se casou, após dez
anos de batina. Foi uma decisão difícil, sobretudo por causa da família.
Seus dois irmãos bispos - o cardeal d. Eugenio de Araújo Sales, arcebispo do Rio; e d. Heitor de Araújo Sales,
bispo de Caicó (RN) e depois arcebispo de Natal - fizeram de tudo para
que ele não deixasse o sacerdócio. Optou pelo casamento e não se
arrependeu. É ligado à Igreja e está entusiasmado com o pontificado de
Francisco.
Adaptação social
Morador da Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, e mineiro de Resende Costa, Francisco de Assis Resende,
de 72 anos, foi padre por dois anos: atuou em uma paróquia da Vila
Pompeia e foi capelão no Hospital das Clínicas. Abandonou a batina,
casou-se com uma então estudante de Pedagogia, teve duas filhas e quatro
netos. Ficou viúvo em 2010.
Ele conta que o mais difícil é a adaptação à vida social. "Entrei no
seminário com 12 anos. Foram outros 12 até ser ordenado." Cursou Serviço
Social e fez carreira na Volkswagen em São Bernardo do Campo, onde
conviveu com o então líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva,
e se aposentou. "No começo, me afastei totalmente da Igreja. Tornei-me
um agnóstico. Com o passar dos anos, atuei na Pastoral Social. Hoje em
dia, só vou à missa aos domingos."
Nascido em Videira (SC), Abel Abati
tem 73 anos e foi padre por quatro - também atuou no Hospital das
Clínicas. Em 1970, abandonou a batina. No mesmo ano, se casou com uma
enfermeira do hospital, Neide de Fátima, com quem vive até hoje. "Não ia ficar solteirão", diz. A união resultou em quatro filhos e quatro netas.
Formou-se em Administração e trabalhou em multinacionais
farmacêuticas. Nos anos 1980, numa curta carreira política, foi
administrador regional - o equivalente a subprefeito - de Campo Limpo,
na zona sul de São Paulo. Desde então, parou de frequentar a Igreja.
"Não quero ter o carimbo de beato.
'Travei uma luta durante dois anos para decidir'. Um depoimento
Eis o depoimento de Otto Euphrásio de Santana.
"Exerci o ministério sacerdotal por dez anos, de 1966 a 1976. Minhas
principais atribuições eram animar o trabalho socioeducativo da Arquidiocese de Natal e, aos domingos, integrar a equipe de irmãs que assumiam, como vigárias, a paróquia de Nísia Floresta. Era uma iniciativa pioneira de valorização da mulher como integrante do clero.
Durante dois anos, travei uma intensa luta para decidir entre
permanecer padre ou me casar. Sentia-me grávido de dois buchos, ambos
queridos, ambos fonte de realização e de felicidade - mas incompatíveis.
Qual dos dois sacrificar? Para complicar, havia o peso de minha
estrutura familiar. Meus dois irmãos bispos fizeram de tudo para
preservar minha condição de padre. Ao final, optei por deixar o
ministério e me sinto realizado na minha família.
Como leigo, me dediquei à educação, sobretudo de jovens e adultos.
Por 12 anos, atuei como Diretor Nacional do Serviço Social da Indústria
(Sesi). Em 1978, casei com a Juciara e tivemos dois filhos, Emmanuel e Raissa.
Permaneço ligado à Igreja, sobretudo aos valores. Colaboro com
dioceses e paróquias no que me solicitam. Não aspiro voltar ao exercício
do ministério sacerdotal. A esclerose das estruturas é paralisante e
deformadora. Impede a afirmação do batismo como o sacramento fundante da
Igreja.
O papa Francisco representa uma primavera no mundo e
na Igreja. Sua inspiração de vivificar o cotidiano das pessoas com
valores evangélicos encanta a todos. Cria pontes, não ergue muros. Já
que fui reduzido ao estado leigo - na triste expressão do rescrito
romano que me dispensou do ministério sacerdotal - aqui permanecerei,
embora respeite os colegas que desejam voltar a ser padre."
Progressista, grupo começou em 79 com 11 ex-sacerdotes
A primeira reunião do Movimento Nacional das Famílias dos Padres Casados foi realizada em julho de 1979, em Nova Iguaçu
(RJ). Participaram do encontro 11 ex-sacerdotes e suas mulheres. A ata
daquela reunião inaugural já deixava clara a preocupação central do
grupo: continuar sendo útil à sociedade.
"Muitos padres casados se afastaram da Igreja por causa de uma certa
visão oficial, que os marginaliza. Mas essas pessoas não se afastaram do
compromisso com o povo", diz um trecho do documento. "O padre casado
ainda pode fazer algo a esta igreja oficial: ele pode colocar nela a sua
luta junto com o povo."
Os participantes da reunião frisaram que não deveriam abrir mão de
atuar com os oprimidos e que o trabalho deles deveria ser "sério" e
"coerente".
Fortemente baseado na Teologia da Libertação, o documento que
inaugurou o movimento também registrou que os participantes queriam uma
Igreja como "instrumento para a luta de classes".
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