segunda-feira, 26 de agosto de 2013

De Martini a Bergoglio


ihu - Por ocasião do primeiro ano de falecimento do Cardeal Carlo Maria Martini, Religión Digital, 24-08-2013, publica um artigo de José Manuel Vidal. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
No próximo dia 31 de agosto se completa o primeiro aniversário da morte do cardeal Carlo Maria Martini, a quem poderíamos chamar “o Batista”, o precursor, o purpurado que, durante os longos anos do “inverno-involução” eclesial manteve a tocha conciliar viva e erguida. E não era fácil para ele. Remar contra a corrente só está ao alcance dos sábios e dos fortes. Dissentir na e a partir da Igreja só o sabem fazer os santos e os profetas.
Não creio exagerar se digo que, em certo sentido, Bergoglio é filho de Martini. De fato, no conclave de 2005, quando saiu eleito Ratzinger, o primeiro destinatário dos votos que aglutinava o velho cardeal (que entrou na Sixtina com bengala, para dar a entender claramente que não era elegível) foi parar no então cardeal Bergoglio.
A ambos une, sem dúvida, seu pertencimento à Companhia de Jesus. Os dois são “companheiros de Jesus”. Os dois viveram os anos da ilusão do pós-concílio e do envio do Padre Arrupe às fronteiras (“às periferias”, como diz Francisco) e a lutar pela “fé e a justiça”. Sem contrapô-las, sem separá-las. Como as traves da mesma cruz.
Os dois foram testemunhas doloridas da “intervenção” da Companhia por parte do Papa Wojtyla. E o sofreram em silêncio, em obediência, com espírito de profunda comunhão.
Com o passar dos anos, em ambos foi se abrindo a idéia de que a involução estava indo demasiado longe e demasiado para trás. Martini não deixou de proclamá-lo durante toda a sua vida. Quando era cardeal de Milão e depois, já jubilado, a partir de Jerusalém e da Itália.
“Levamos 200 anos de atraso”, dizia o purpurado italiano poucos meses antes de morrer, numa espécie de livro-testamento. E voltava a repetir, uma vez mais, seu sonho de uma Igreja co-responsável, colegial, samaritana, aberta aos sinais dos tempos, com coragem para abordar temas polêmicos cuja mudança vem pedindo, há tempo, o povo de Deus. Desde o celibato opcional ao sacerdócio feminino, passando pela comunhão aos divorciados que voltaram a casar...
Sonhava Martini (o vermelho que não pôde ser branco, o Papa in pectore do povo), ou profetizava? Sonhava Martini ou marcava o roteiro ao Papa que iria chegar e que ele conhecia bem?
Porque acontece que, uns meses depois de sua morte, chegou a Roma Francisco. O Papa chamado a consertar a Igreja. Em Roma está se encontrando com muitos “nós”. Alguns profundamente enraizados, resistentes, poderosos, dispostos a tudo para manter seu poder.
A velha guarda curial romana e dos diversos países católicos do mundo não terá atitude fácil. Levam mais de 30 anos escorando um modelo eclesial de fortaleza acossada e sitiada. Levam décadas de enroscamento. As inércias têm seu peso. Os chefes dos “cordames” não deixarão facilmente seus postos de ordem e mando. Alguns estão dispostos inclusive a morrer matando. E encurralados pelo ciclone romano são mais perigosos que nunca.
Têm apego ao inverno. Agrada-lhes um mundo e uma Igreja em branco e preto. Uma Igreja justiceira, mais madrasta que mãe, que separe, enquanto crescem, o trigo e o joio. Custa-lhes renunciar a suas “seguranças”, a seus grupos-estufa, a seus incensórios sempre fumegantes, a seu controle absoluto...
A inércia os leva a continuar proibindo e mandando cartas e emails (muitos deles anônimos) com queixas e denúncias. Repartem carnês de eclesialidade somente aos seus e tratam de tirá-los a todos os demais. E suas denúncias seguem fluindo, incansáeis, em Roma. Crêem que continua sendo válida a estratégia da etapa anterior: denuncia que algo permanece... Não se dão conta ou não querem dar-se conta de que em Roma virou o timão, o rumo é outro e a barca eclesial se dirige para novos mares claros, abertos e transparentes. Mares dialogantes, servidores e honestos.
Os capitosos se aferram a seus postos com unhas e dentes, porém, a seu lado, já começou a debandada. Cheiram a passado. Os primeiros a dar-lhes as costas tem sido seus mais devotos, os carreiristas, os que lhes douraram a pílula durante todos estes anos, os que os convenceram de que eram únicos, imprescindíveis, orlados com uma “auctoritas” especial.
Também estão virando e os estão abandonando os “vira-casacas”. E, por suposto, os que os seguiam com boa vontade, porém com medo. E os pusilânimes que sempre pensaram que o inverno durava demasiado, porém nunca se atreveram a sorrir e tornar possível a chegada da primavera.
Já os deixaram em massa a imensa maioria dos moderados, dos que se queixavam resignadamente e sem grandes algazarras externas. Por falta de valentia, e ao mesmo tempo, para não romper o sagrado bem da comunhão eclesial. Convenceram-nos, durante anos, de que a comunhão era um tabu que não se podia romper nem em favor do Evangelho nem da própria consciência. O maior bem da Igreja estava acima da maior glória de Deus. A Igreja convertida no Reino de Deus.
Podem mudar os curiais daqui e dali? Claro que sim. Por muito aferrada que esteja ao poder, a Cúria não pode desobedecer ao Papa. Alguns tentaram ir contra ele, condenados ao fracasso. É o direito ao bater-pés, como o de Ottaviani ou Siri em tempos de João XXIII e Paulo VI.
Profundamente decepcionados, esperavam um novo amanhece que, por fim, chegou.
Pior, muito pior, estava a Cúria (a de Roma e a daqui) então. E os ventos do aggiornamento conciliar acabaram triunfando. E em poucos anos. É verdade que, então, houve de entremeio um Concílio. Mas também o é que, agora, e, quiçá, por vez primeira na História, o Papa Francisco tem o aval e o “mandato” do conclave e do colégio cardinalício. Francisco conta com o aval das bases e da cúpula eclesiástica.
Nunca um Papa teve tantos apoios para levar a cabo o labor de reforma e reparo eclesial. E conta, ademais, com referenciais de prestígio. Desde o citado Martini, aos bispos Helder Câmara, Lorscheider ou Arns, aos que homenageou em sua recente viagem ao Brasil. O Basil Hume e o Quinn e tantos outros.
E, como se fosse pouco, Francisco, o jesuíta, é o um perito em desatar nós. Não em vão sua invocação preferida é a da Virgem Desata-nós. Santa Maria Desata-nós, ora pro nobis!

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