ihu - “Por causa da convivência com os pobres, Francisco percebeu quais são as questões importantes. A prioridade dele é estar junto desse povo, dar atenção a ele, incentivar que levante e caminhe”, diz o bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti.
Confira a entrevista.
“Francisco é um bispo que Deus colocou num submundo de periferia, por isso o apelo dele é voltar-se para
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este mundo”, diz Dom Mauro Morelli, bispo emérito da Diocese de Duque de Caxias e São João de Meriti, no Rio de Janeiro, em entrevista concedida à IHU On-Line pessoalmente. Para ele, o pontificado de Francisco
acena para “algumas questões que precisam ser entendidas”. Entre elas,
enfatiza, “resgatar a dimensão humana, porque, do contrário, tudo perde o
sentido. A grande demonstração dele é a humanidade no sentido de ser
gente, comportar-se como gente, comover-se como gente. Esse é o grande
foco de sua transformação”.
Dom Mauro Morelli esteve presente no encontro do Papa com os bispos brasileiros durante a Jornada Mundial da Juventude – JMJ,
e avalia que seu discurso sinalizou para a importância da “conversão
pastoral”, para a necessidade de “entender que os bispos são servidores
desse povo, portanto, não estão em um andar superior”. E acrescenta:
“Conversão pastoral significa saber, aceitar e viver o pastoreio”.
Mauro Morelli (foto
abaixo) foi o fundador do Instituto Harpia Harpyia e um dos fundadores
do Movimento pela Ética na Política. Fortaleceu a Ação da Cidadania
contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Esteve à frente da criação do
conceito de segurança alimentar como combate à fome e foi um dos
articuladores do programa Mutirão de Combate à Desnutrição
Materno-Infantil. Foi membro do Comitê Permanente de Nutrição da ONU, e
atualmente é presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional
Sustentável de Minas Gerais – CONSEA/MG.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como foi seu encontro com Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude - JMJ?
Dom Mauro Morelli – Minha participação na Jornada Mundial da Juventude – JMJ
foi muito restrita por várias razões, inclusive por questões climáticas
de chuva e frio. Participei da missa na Catedral, e do encontro do Papa
com os bispos do Brasil. Depois do almoço, cada bispo pode se aproximar
dele, tendo o bom senso de perceber que éramos mais de 200 e, ele muito
acolhidamente, recebeu a cada um. Disse ao Papa três coisas. A primeira
delas foi: “O senhor é uma surpresa de Deus”. Ele é uma surpresa de
Deus porque a Igreja passa por uma profunda crise, e alguém inserido no
sistema seria incapaz de ter a liberdade de espírito de entender a
crise, e ter coragem de dar passos novos. Por isso, os cardeais chamaram
um bispo de longe, que trouxe uma provocação para a Igreja e para a
humanidade. Há pouco tempo escutei de uma figura do Vaticano
que o Papa escolheu um grupo de cardeais para propor reformas, os quais
não entendem da Cúria. É ótimo que não entendam, porque se entendessem
demais, ficariam impotentes e não fariam modificações.
Depois disse a ele que fiquei contente
com o discurso aos bispos brasileiros, porque ele chamou a atenção à
situação dos bispos eméritos, dos idosos. Ele disse que é fundamental
que os idosos continuem presentes na Igreja para dialogar com os mais
jovens, para compreender o entendimento e o caminho. Conversei com o
cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson, de Gana, e ele disse que nas Conferências africanas todos os eméritos são membros. No Brasil, o bispo emérito não é membro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. Se houver um Concilio Ecumênico, a maior reunião da Igreja, o bispo emérito tem participação com direito pleno. Na CNBB, contudo, o bispo emérito é convidado. É triste que nós sejamos sempre 60 bispos que não integramos a Conferência.
A terceira coisa que disse ao Papa é que
me dedico à questão da fome há muitos anos. Depois peguei no braço dele
e, espontaneamente, disse: “Deus te abençoe”, porque ele tem uma grande
missão a realizar. Ele deve ter pensado que eu “sai fora do eixo”.
(risos)
IHU On-Line – Qual foi sua impressão do encontro com o Papa, e que mudanças vislumbra no pontificado?
Dom Mauro Morelli – Confesso a você que tenho um grau de identificação com o Papa Francisco,
porque nosso itinerário de vida pastoral é bem semelhante. Nesse
sentido, a experiência de enxergar o mundo a partir da realidade em que
se está situado é fundamental e decisivo. Ele nunca ensaiou ser Papa. A
impressão que me dá é de que ele é autentico, não faz show, é coerente, e
sempre teve os mesmos valores enquanto bispo.
Vivi algumas tensões na vida de bispo, porque uma coisa é entender o mundo a partir da Baixada Fluminense e, outra, entendê-lo do Sumaré. Então, Francisco
é um bispo que Deus colocou num submundo de periferia, por isso o apelo
dele é voltar-se para um mundo de periferia. Fiquei contente de ver que
o Papa entrou na casa das pessoas que moram na favela, que deu atenção
às pessoas, revelou que é humano. Tenho certeza de que para muitos que
vivem em Roma, essa surpresa virou um susto. Ele disse recentemente que é
uma pessoa indisciplinada e, portanto, ninguém em Roma está seguro, porque não se sabe como o Papa irá agir.
Ele acena para algumas questões que precisam ser entendidas. Entre elas, a primeira é resgatar a dimensão humana,
porque, do contrário, tudo perde o sentido. A grande demonstração dele é
a humanidade no sentido de ser gente, comportar-se como gente,
comover-se como gente. Esse é o grande foco de sua transformação.
Condição humana
Pessoalmente penso que um Papa enfrenta
dois problemas: o seu endeusamento na Igreja, e o seu poder de chefe de
Estado. Esse Papa se recusa a assumir esses papéis. Ele diz que na
Igreja as coisas devem ser feitas dentro da condição humana, porque
ninguém faz nada sozinho. Até o Deus em que cremos é comunitário.
Portanto, o Papa está dizendo que tudo na Igreja tem de ser trabalhado
de forma participativa, corresponsável, sinodal. Essa dimensão é o
reconhecimento de que nenhum de nós esgota a verdade, e que ela é maior
do que todos nós.
Ele já acenou que o caminho é
transformar no sentido de que o sínodo deve ser valorizado de novo em
todas as dimensões e, portanto, não deve ser apenas uma experiência
consultiva. Acredito que no próximo sínodo ele participará e o consenso será abençoado.
Esses dias ele declarou que se sente
enjaulado, e está expressando uma vontade de que nós, como seres
humanos, possamos viver com liberdade, sem se amarrar a estruturas,
conveniências.
Reformas
Alguns falam que a Igreja deve vender
tudo que tem e doar o dinheiro para os pobres. Essa é uma conversa um
tanto desqualificada, porque não se resolve problema de pobre vendendo
museus. Além do mais, a Igreja tem uma herança histórica, cultural e
artística, que não pode ser jogada fora. Se o Papa quiser se livrar
disso, esse será um processo lento para encontrar uma equação adequada.
Trata-se de um assunto complexíssimo.
Particularmente penso que se o Papa, nesse momento, conseguir separar os assuntos diplomáticos relacionados à Santa Sé, à ONU e a governos do processo de constituição da Igreja, já seria um grande passo. Minha sugestão é de que as Comissões de Justiça e Paz
sejam compostas por leigos; não colocaria bispos e cardeais para
realizar essas atividades. Inclusive, nomearia um primeiro ministro para
cuidar dessas questões. É interessante que a Igreja possa participar de
organismos da ONU, porque há muitas questões sendo debatidas.
Também penso que cada Conferência
Episcopal pode ter uma comissão, e o Papa pode ter um delegado dele, que
acompanhe as comissões. Esse serviço deveria ser ligado à Congregação
dos Bispos, e não à Secretaria de Estado. Hoje o núncio, que é o
embaixador, tem em sua mão toda a relação com o poder político e da
Igreja. Quer dizer, é ele quem faz os processos de constituição de
dioceses, mas chega nos países e não conhece as realidades. Tenho um
princípio básico de que Deus só pede para você fazer alguma coisa que
ordinariamente está dentro da condição humana. Então, pedir que o Papa
tenha um conhecimento fortíssimo da Igreja de todos os países é algo
impossível. O Papa tem uma consciência da grandeza da missão, e da
limitação humana. Vejo que um equacionamento nessas duas direções seria
fundamental. Obviamente que se descentralizar o serviço, pode-se
encontrar outros mecanismos.
Nós chegamos, na Igreja, a um
paralelismo. O grande problema dos governos e das instituições é que se
chegou num grau de burocracia que ninguém consegue operar. Estamos
chegando a um impasse na capacidade de funcionar. Por isso, é importante
que o Papa mantenha a sua humanidade. Esses dias ele falou que não pode
ir para rua, quer dizer, em que ponto chegamos se o pastor da Igreja de
Roma não pode mais andar na rua?
IHU On-Line – Que interpretação fez do discurso do Papa aos bispos do Brasil? Como os bispos brasileiros reagiram às mensagens de Francisco?
Dom Mauro Morelli – O
ponto fundamental do discurso foi dizer que um bispo é um pastor. A
conversão pastoral é justamente entender que os bispos são servidores
desse povo, portanto, não estão em um andar superior. O Papa disse:
“Sejam pastores, andem na frente das ovelhas para abrir caminho, no meio
delas, para conseguir entendimento e, atrás, para ninguém ficar
isolado”. Então, conversão pastoral significa saber, aceitar e viver o
pastoreio.
Francisco também disse que não tem psicologia de príncipe.
O processo histórico fez do Papa um rei e, dos bispos, príncipes. No
Brasil também sempre construíram palácios para os bispos. Na diocese, a
primeira vez que me chamaram de Vossa Excelência, eu disse: “Nunca mais
me xinguem com esse nome”. Toda criança que nasce no mundo é
excelentíssima e reverendíssima. Quer dizer, é excelente e tem de ser
referenciada. Não é porque eu sou bispo que tenho de ser excelência. O
Papa precisa romper com essa cultura.
Obviamente, não podemos ignorar a história, mas o Papa pode mudá-la. Francisco
desmistificou o papado, mostrando que o Papa também é gente. Além do
mais, ele está dizendo que a Igreja está cheia de estruturas velhas e é
preciso mudá-las.
Por causa da convivência com os pobres, Francisco
percebeu quais são as questões importantes. E a prioridade dele é estar
junto desse povo, dar atenção a ele, incentivar que levante e caminhe. O
Papa está dizendo para a Igreja: “Saia de si mesmo e vá para a
periferia”. Lembro dos discursos de Dom Evaristo Arns.
Ele dizia que unidos cada um caminha numa direção, ou seja, a ordem era
de os bispos irem para fora, para a periferia, e nos encontrávamos na
Catedral no dia de Corpus Christi,
para simbolizar a unidade do povo de Deus. O Papa está aclamando por
essa periferia, e eu me sinto muito identificado com ele. Me alegro
porque ele fez escolhas semelhantes às minhas.
Rogo a Deus para que o Papa tenha força e
determinação. Penso que ele vai sofrer muito porque diz que está
enjaulado. Essa é uma experiência que exige muito amor e doação. Ele não
aceita ser enquadrado num molde e num estilo de vida que não
corresponde ao Evangelho. Sempre digo que quanto mais humana a pessoa
for, mais Evangélica será. A grandeza da vida em comunhão fraterna e
solidária é o Reino de Deus. O segmento de Jesus me põe num caminho, no
qual a coisa mais preciosa é a vida em comunhão, a integração das
pessoas. A essência do Evangelho é a comunhão.
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