IHU - “Será que os grandes eventos da Igreja continuarão a ser, no pontificado de Francisco, o momento forte de afirmação dos novos movimentos de corte fundamentalista e integralista?", pergunta o diretor executivo do Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, de Belo Horizonte.
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Confira a entrevista.
"É interessante a observação que ouvi de quem esteve muito perto de todo o acontecimento da JMJ.
Uma coisa é o discurso do Papa, outra a postura do clero presente: nada
mudou. Os carreiristas continuaram buscando espaço de poder do mesmo
jeito”, constata Manoel Godoy, padre, teólogo, em entrevista à IHU On-Line.
Nas falas do papa, enfatiza, ainda não é possível “delinear as linhas mestras de seu pontificado”, mas “alguns acentos, que poderíamos traduzir mais ou menos assim: ‘trabalhem, não se deixem amedrontar, dialoguem muito, sejam simples e testemunhem Jesus Cristo e sua Boa Nova por todos os cantos’”. A postura de Francisco demonstra que ele “não tem tanto preocupações com a ortodoxia, mas muito mais com a paralisia a que fomos submetidos”, avalia em entrevista concedida por e-mail.
Nas falas do papa, enfatiza, ainda não é possível “delinear as linhas mestras de seu pontificado”, mas “alguns acentos, que poderíamos traduzir mais ou menos assim: ‘trabalhem, não se deixem amedrontar, dialoguem muito, sejam simples e testemunhem Jesus Cristo e sua Boa Nova por todos os cantos’”. A postura de Francisco demonstra que ele “não tem tanto preocupações com a ortodoxia, mas muito mais com a paralisia a que fomos submetidos”, avalia em entrevista concedida por e-mail.
Para Godoy, um dos pontos significativos que emerge dos discursos de Bergoglio
é a “visão” que ele “tem da pessoa do bispo: homens simples,
despojados, alegres, desapegados, na frente, no meio e atrás do povo
(tudo ao mesmo tempo), não carreiristas, contentes com o lugar que
ocupam, sem ficar aspirando outros lugares, que saibam guiar sem
comandar, pastores e não mandatários”. Segundo ele, a cristologia de Francisco
“está profundamente unida à eclesiologia, isto é, insistiu que a
comunidade eclesial é o espaço concreto para a experiência cristã. Sua
moral também tem perspectiva bastante personalista – centrada na pessoa –
e não em abstrações. Podemos dizer que Francisco está muito mais
próximo da perspectiva pastoral, mais preocupado com a ortopráxis do que com a ortodoxia”Manoel Godoy é graduado em Teologia pela Faculdade
Nossa Senhora da Assunção, São Paulo, mestre em Práxis Cristã pela
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, Belo Horizonte. Foi
assessor da CNBB por dez anos e membro da Organização dos Seminários
Latino-Americanos, do CELAM/Bogotá. Atualmente é diretor executivo do
Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, professor do Instituto de
Teologia Pastoral – ITEPAL, e do Centro Loyola, em Belo Horizonte.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que avaliação faz da visita do Papa? Já é possível vislumbrar as linhas mestres de seu pontificado?
Foto de www.cnbb.org.br |
Manoel Godoy - Cada pessoa tem o seu perfil e o Papa Francisco
marcou muito essa viagem com seu estilo pessoal: simples, franco e
direto. A primeira vista, parece que há uma continuidade com o jeito do Papa João Paulo II,
mas, olhando mais a fundo, percebem-se logo diferenças profundas.
Enquanto no Beato os gestos tinham mais aparências teatrais, mais
fabricados, em Francisco tudo sai muito natural, com exceção daquela insistência em carregar sua própria bolsa de viagem. Por outro lado, Bento XVI,
sua relação com o público, não deixava de transparecer seu enorme
esforço por se mostrar simpático e agradável. Saindo deste aspecto mais
externo, o conteúdo das mensagens deixadas por Francisco
precisa ser analisado com mais cuidado. São níveis diferentes, pois os
destinatários variam enormemente: jovens, autoridades civis, hierarquia
católica, jornalistas.Não diria que é possível delinear as linhas mestras de seu
pontificado, mas podemos ver alguns acentos, que poderíamos traduzir
mais ou menos assim: “trabalhem, não se deixem amedrontar, dialoguem
muito, sejam simples e testemunhem Jesus Cristo e sua Boa Nova por todos os cantos”.
Já é significativo que ele incentive a todos a colocarem a mão na
massa, sem medo. Há muito tempo estamos cercados por escrúpulos e medos,
pois as ações na Igreja são sempre alvo de muita vigilância
hierárquica. Parece que Francisco não tem tanto preocupações com a
ortodoxia, mas muito mais com a paralisia a que fomos submetidos. Vamos
ver até onde vai a liberdade de ação em seu pontificado, pois até agora
estamos sendo desafiados a trabalhar sem medo. Esse clima de liberdade
na Igreja é muito bom e poderá produzir frutos criativos em todos os
segmentos eclesiais. Porém, os frutos desta visita ainda estão por vir.
Mudanças na Igreja não acontecem como num passe de mágica. Há muitos
filtros que se interpõem entre o que Francisco falou e a pastoral concreta na Igreja.
IHU On-Line - Quais foram os pontos mais relevantes do discurso do papa aos bispos da CNBB e do CELAM?
Manoel Godoy - Um dos pontos mais significativos que emerge destes discursos é a visão que Francisco
tem da pessoa do bispo: homens simples, despojados, alegres,
desapegados, na frente, no meio e atrás do povo (tudo ao mesmo tempo),
não carreiristas, contentes com o lugar que ocupam, sem ficar aspirando
outros lugares, que saibam guiar sem comandar, pastores e não
mandatários. Pastores, próximos das pessoas, pais e irmãos, com grande
mansidão: pacientes e misericordiosos. Homens que amem a pobreza, quer a
pobreza interior como liberdade diante do Senhor, quer a pobreza
exterior como simplicidade e austeridade de vida. Homens que não tenham
“psicologia de príncipes”.
Outro ponto de destaque é sua visão de Igreja: capaz de derrubar as
estruturas caducas, com um espírito mais pastoral que administrativo;
com parâmetros baseados em novas culturas, não encarcerada numa
mentalidade meramente rural; marcada pela ampla participação de todos os
batizados, por meio de conselhos em todos os níveis; superando
clericalismos de toda a ordem e funcionalismos; atenta as periferias
existenciais e não centrada em si mesma. Uma Igreja com coragem de assumir o hoje que lhe cabe e não viver se refugiando no passado e nem no futuro. Francisco
critica a postura de quem, perante os males da Igreja, busca solução
apenas na disciplina, na restauração de condutas e formas superadas.
Destaco ainda um terceiro ponto: o papel dos leigos. Francisco
deixa claro que a Igreja não pode continuar infantilizando os leigos e
que isso, às vezes, acontece com profunda conivência dos próprios
leigos. Desafiou a todos a desenvolverem alguns valores que revelam a
mais profunda raiz cristã: espiritualidade, generosidade, solidariedade,
perseverança, frater¬nidade, alegria. Insistiu nesta última, afirmando
que o cristão não pode ser pessimista! Não pode ter uma cara de quem
parece num constante estado de luto.
E o último ponto é sua visão sobre as ideologias, onde alertou para
possíveis desvios, classificados como reducionismo socializante,
ideologização psicológica, proposta gnóstica, proposta pelagiana.
Alerta, porém, que não há uma hermenêutica asséptica. E sobre os
desvios, é bastante incisivo quando fala sobre a desviação pelagiana.
Afirma que ela aparece fundamentalmente sob a forma de restauracionismo.
Na América Latina costuma verificar-se em pequenos grupos, em algumas
novas Congregações Religiosas, em tendências para a “segurança” doutrinal ou disciplinar. Fundamentalmente é estática, embora possa prometer uma dinâmica para dentro: regride. Procura “recuperar” o passado perdido.
IHU On-Line - O que é possível entender por reforçar e reformar as estruturas da igreja, mencionado pelo papa em seus discursos?
Manoel Godoy - Quando Francisco
fala especificamente de mudanças de estrutura não fica muito claro,
aponta a missionariedade como instrumento para superação das estruturas
caducas da Igreja, mas, pelos discursos, pode-se deduzir que Francisco
pretenda uma Igreja mais simples, uma Igreja que vá ao encontro dos
pobres e viva mais próxima deles; uma Igreja com um laicato mais
atuante, menos passivo; uma Igreja que seja capaz de viver nas
“periferias existenciais”, descentralizada. Nesse sentido, é grande a
perspectiva sobre os resultados da Reforma da Cúria, comandada pelo grupo de oito cardeais nomeados pelo Papa para essa tarefa.
IHU On-Line - Considerando que Francisco participou da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, que postura a Igreja de Roma deve adotar em relação à Igreja do Brasil? Vislumbra uma proximidade ou um diálogo mais estreito com a Igreja latino-americana? E qual o significado dessa aproximação?
Manoel Godoy - Creio que haverá muito mais diálogo,
mais entendimento, pois o Papa conhece a Igreja do Brasil e da América
Latina. Os dois papas anteriores tinham uma postura muito eurocentrista e
quando se dirigiam à Igreja do nosso Continente falavam a partir de
informações de alguns que eles elegiam como interlocutores
privilegiados. Pelo que se viu na Jornada Mundial da Juventude - JMJ,
nas falas do papa com o episcopado brasileiro e latino-americano,
podemos esperar que seja muito frutuosa essa aproximação, pois ele fala diretamente
e não manda recados por meio desse ou daquele. Francisco deixou claro
que não precisará de fontes privilegiadas para se comunicar com nosso
continente. Isso evitará o clima que vivemos nos dois últimos
pontificados.
IHU On-Line - A partir dos discursos do Papa, como seu pontificado deve compreender as Comunidades Eclesiais de Base? Depois de alguns anos de recesso das CEBs, percebe a sinalização de uma retomada?
Manoel Godoy - Por conhecer a realidade das CEBs,
ele próprio apresentou a proposta dos grupos bíblicos, das comunidades
eclesiais de base e dos Conselhos pastorais como caminho de superação do
clericalismo, rumo a um crescimento da responsabilidade laical. Quando
imaginaríamos que um papa falasse das CEBs e as recomendasse como meio válido de evangelização? È claro que os contextos são outros e que hoje as CEBs
têm características bem diferentes das dos anos 1970 e 1980, mas é
muito significativo que a proposta de sua retomada venha do próprio
papa. Quem sabe ele mande uma palavra de estímulo para o próximo
Intereclesial a ser realizado em Juazeiro, no Ceará. Devemos encaminhar
esse pedido a ele.
IHU On-Line - Quais são os pontos principais da teologia de Francisco e como o senhor compara àqueles de Bento XVI e de João Paulo II?
Manoel Godoy - No campo teológico, valorizamos muito
as áreas da dogmática, da sistemática, e quase nem aparece, como
teologia propriamente dita, a dimensão da práxis cristã, da pastoral.
Sua cristologia está profundamente unida à eclesiologia, isto é,
insistiu que a comunidade eclesial é o espaço concreto para a experiência cristã. Sua moral também tem perspectiva bastante personalista – centrada na pessoa – e não em abstrações. Podemos dizer que Francisco
está muito mais próximo da perspectiva pastoral, mais preocupado com a
ortopráxis do que com a ortodoxia. Isso não quer dizer que a ortodoxia
não lhe interesse, mas está muito mais interessado na ortopráxis, se
diferenciando dos dois papas anteriores, onde a preocupação com a
ortodoxia criou um clima muito ruim para o desenvolvimento da teologia.
Acredito que o período de perseguição aos teólogos tenha terminado. Com
Francisco vai prevalecer muito mais o diálogo.
IHU On-Line - Como avalia a primeira encíclica do Francisco, a Lumen Fidei?
Manoel Godoy - Como o próprio papa afirmou, essa
encíclica foi escrita a quatro mãos. Pelo que li, penso que podemos
afirmar que foi escrita pelo papa emérito e que Francisco
emprestou sua assinatura somente. È um texto clássico, que privilegia
como seu interlocutor básico o homem moderno europeu. Acontece que esse
discurso não convence a este interlocutor e não faz arder o coração do
povo crente de nossas comunidades. As expressões concretas de fé vivida
pelo povo não aparecem. Não dá para identificar Francisco em nenhum parágrafo da Lumen Fidei. O interlocutor do papa emérito é o homem europeu; creio que Francisco
destacaria as formas concretas de testemunho de fé presente na vida do
povo, sobretudo dos pobres. Ademais, seria muito pertinente ligar a
reflexão sobre a Fé com as encíclicas anteriores – sobre a caridade e a
esperança. A Fé, tratada em conjunto com as outras virtudes teologais,
destacaria que o mais importante é o amor, a caridade (ICor. 13,13).
Não acredito na força evangelizadora desse tipo de discurso. Como o
papa Francisco alertou ao clero que não deve ficar preso em seus
escritórios produzindo documentos abstratos, esperemos a originalidade
de sua, verdadeiramente sua, encíclica sobre a Igreja dos Pobres.
IHU On-Line - O papa tem organizado várias comissões para reformar a Cúria Romana.
Que tipo de reforma vislumbra?
Manoel Godoy - A comissão composta pelos oito
cardeais para implementar a reforma da Cúria tem nas suas fileiras o
arcebispo de Boston, Sean Patrick O'Malley, um dos cardeais mais
comprometidos na luta contra os padres pedófilos. Seguramente, se
destacará como uma das vozes mais claras contra o estado de coisas a que
chegou a Cúria romana. Dentre as medidas para sanar tal estrutura
eclesiástica se espera, no mínimo, que se acabe com essa prática de
eclesiásticos aposentados permanecerem vivendo por lá. No momento,
vários elementos que compuseram a equipe de trabalho do Papa João Paulo
seguem na Cúria. Torna-se muito difícil implementar mudanças mais
radicais com esse pessoal por perto. Também, pode-se imaginar que o Papa
Francisco dará mais reforço às representações
continentais e não ficará tão preso a um só continente, o europeu, como
fizeram seus predecessores. Era tal essa mentalidade que mesmo os de
outros continentes que eram convocados para o trabalho da Cúria tinham
forte mentalidade europeia. Quem sabe também consiga implementar
verdadeiras reformas na condução das finanças do Vaticano, tornando esse
tema bem transparente, evitando escândalos. Outro ponto crucial da
reforma são as nunciaturas. Por exemplo, de que adianta o Papa Francisco
falar de bispos pastores se as nunciaturas seguirem escolhendo
administradores, canonistas? Não é possível enxugar a sala sem fechar a
torneira.
IHU On-Line - Entre as declarações do Papa, está a afirmação de que “se uma pessoa é gay, procura o Senhor e tem boa vontade, quem ou eu para julgá-la?” O que essa declaração significa do ponto de vista da doutrina da Igreja e de sua postura em relação aos homossexuais?
Manoel Godoy - A maneira como Francisco reagiu à pergunta
do jornalista sobre os gays faz parte de sua maneira direta e simples
de enfrentar temas mais complexos, porém não apontou para mudanças
doutrinarias. Dá para deduzir que continua vigente o axioma de sempre: a
Igreja condena o pecado e não o pecador. Continuará a Igreja afirmando
que a homossexualidade é um mal intrínseco? Aqui está o no górdio da
questão. Por outro lado, um discurso mais ameno sem mudanças práticas,
pode ir levando as palavras para um enorme descrédito.
IHU On-Line - O senhor tem informações de bastidores sobre a visita do Papa ao Brasil?
Manoel Godoy - Não chega a ser informações de
bastidores, porem é interessante a observação que ouvi de quem esteve
muito perto de todo o acontecimento da JMJ. Uma coisa é
o discurso do Papa, outra a postura do clero presente: nada mudou. Os
carreiristas continuaram buscando espaço de poder do mesmo jeito. Muita
gente terá que adaptar-se em alguns aspectos, frente à nova agenda
trazida pelo papa Francisco à Igreja, mas a mentalidade
nociva de busca de poder, pelo que se viu durante a JMJ, continua sem
grandes alterações. Também a performance dos novos movimentos continuou,
como nas JMJ anteriores, a mesma. Será que os grandes eventos da Igreja
continuarão a ser o momento forte de afirmação dos novos movimentos de
corte fundamentalista e integralista?
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Manoel Godoy - Achei significativo o fato de o Papa Francisco
ter descartado fazer de sua visita algo como de Chefe de Estado. Não
começar por Brasília já é algo muito bom. Apesar de não termos ainda
nada claro do que será a caminhada da Igreja no pontificado de Francisco,
podemos afirmar que há um clima diferente, um clima bom. O ambiente de
boataria que sufocou, sobretudo, os últimos anos do pontificado de Bento XVI parece ter dado uma trégua. O diálogo será sempre a maneira mais cristã de viver entre irmãos. E isso parece ser o que Francisco mais deseja!
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