terça-feira, 29 de outubro de 2013

As mulheres na Igreja, de Martini ao Papa Francisco

IHU - "Hoje, mais do que nunca, as reflexões de Martini estão à nossa disposição, com a força de uma imutada tensão criativa, se quisermos levar a sério as palavras do Papa Francisco quando de retorno do Brasil, e recentemente reformuladas na entrevista a Civiltà Cattolica sobre as mulheres. A repetição do argumento assinala uma atenção que deixa de fato esperar", escreve Nicoletta Dentico em artigo publicado na revista “Rocca” n. 20, 15-10-2013. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o artigo.

Das mulheres emergem solicitações sofridas e sinceras. Falava, assim, em 1981, o Cardeal Martini à convenção “A mulher na Igreja hoje”, procurando interpretar o mal-estar de um mundo feminino plural diante da iconografia da “mulher cristã”, na qual as mulheres tem dificuldade de serem respeitadas e reconhecidas. E exibia uma série de questões decisivas para o futuro da Igreja:
“Por que identificar a imagem de Deus com aquela que nos foi transmitida por uma cultura machista”? Que anúncio kerigmático para ela, não encerrado numa visão moralista? Que indicações para um caminho espiritual e de santidade que estimulem a mulher adequadamente? Que indicações para uma renovada práxis pastoral, para um caminho vocacional para o matrimônio, para a consagração religiosa, a família, em consideração da nova consciência de si que a mulher adquiriu?
Que indicações para uma linguagem global, também litúrgica, que não faça sentir-se excluída, em sua elaboração, a mulher? Por que tão poucas e inadequadas respostas à valorização do próprio corpo, do amor físico, dos problemas da maternidade responsável? Por que a maior presença da mulher na Igreja não incidiu em suas estruturas: E na práxis pastoral por que atribuir à mulher somente aquelas tarefas que o esquema ideológico e cultural da sociedade lhe atribuía, e por que não explicitar os seus carismas como “obra do Espírito Santo”?
Ler, à distância de trinta anos, o insistente catálogo das interrogações de Martini, com sua solicitação à Igreja de por-se à escuta e deixar as mulheres exprimir-se como protagonistas, de desenvolver uma urgente e atenta releitura dos ministérios, dos carismas e dos serviços, ilumina e desencoraja ao mesmo tempo. Nós mulheres temos sido consideradas por longo tempo as fiadoras da doutrina, aquelas que durante o processo de secularização asseguraram o enraizamento da tradição cristã na infância, nas famílias, na sociedade. Frequentemente o temos feito com o limite de dever encarnar algo transmitido, um limite que é em ampla medida a debitar a uma ordem eclesial que voluntariamente manteve as mulheres fora. Percorremos linguagens na maioria dos casos já codificadas, e ainda não nos sentimos de todo legitimadas a fazer agir, em nosso presente e no de nossas igrejas, aquela força que transforma e arrasta, escandaliza e provoca, tornando possíveis novos horizontes.
Hoje, mais do que nunca, as reflexões de Martini estão à nossa disposição, com a força de uma imutada tensão criativa, se quisermos levar a sério as palavras do Papa Francisco quando de retorno do Brasil, e recentemente reformuladas na entrevista a Civiltà Cattolica sobre as mulheres. A repetição do argumento assinala uma atenção que deixa de fato esperar.
A explosiva parábola do pontificado do Papa Francisco – os audazes apelos à paz contra todo vulgar interesse guerreiro, a exigente pastoral missionária que evita a “imensidão de doutrinas a impor com insistência”, o desejo de uma justiça reconhecível na redistribuição das riquezas (sugestiva a imagem da “teologia do descarte” cunhada por Raniero La Valle), a postura de proximidade física aos últimos, estejam eles nos cárceres, em Lampedusa ou entre os desempregados da Sardenha, a partir das mesmas formas de uma nova pobreza da Igreja – arrasta consigo uma onda de entusiasmo incrédulo e contagioso. A inusitada simbologia dos gestos e as mensagens do centro ultra-milenar de Roma provêm realmente “da outra parte do mundo”, como uma brisa que refresca o ar e abre indispensáveis horizontes.
Num mundo desfigurado pela desigualdade e pela idolatria do lucro, numa Igreja sobrecarregada de contradições e décadas de clericalismo, só Deus sabe quão benéfica seja esta rajada de vento novo: uma teologia sobre as mulheres e para as mulheres. 
Na esteira da espera de novidades futuras, a questão feminina espera em sua andança o bispo de Roma como um desfiladeiro iniludível, sabe-o muito bem Francisco. “A Igreja não pode ser ela mesma sem a mulher e sua função”, disse ele a Civiltà Cattolica, quase a querer indicar uma das razões da crise atual. Também sabe que se trata de um terreno acidentado: a valorização do significado evangélico da diferença de gênero na vida eclesial não é fácil de ser cumprida. O machismo do ambiente obscurece a visibilidade e a importância da presença das mulheres numa linha de proporcional continuidade com o passado do Novo Testamento (“como testemunhas da Ressurreição são recordados somente homens, os Apóstolos, mas não as mulheres”). Entrementes, as mulheres tem transformado radicalmente a sociedade com sua subjetividade, resgatando-se de uma atávica escravidão ligada à maternidade e à família.
“Com o feminismo, escreve Luísa Muraro, “veio à luz um desnível entre o sentido de si e a identidade humana representada pelo homem, desnível que não pode mais ser aceito porque a política das mulheres, em qualquer parte do mundo, obteve o lugar da liberdade feminina”. Este desnível germinou longamente também nas igrejas – a “Frauenfrage” [questão das mulheres], as novas questões da fé que vinham das mulheres, começou a tomar forma entre os fins do século XIX e inícios do século XX – e por fim ficou a descoberto.
Graças ao Concílio Vaticano II, a práxis teológica ainda ferreamente aficionada aos estereótipos, deve hoje fazer as contas com a presença, no palco, de uma vivaz comunidade de estudiosas, protagonistas de intensas e ricas reflexões endereçadas à elaboração de uma teologia sobre as mulheres e para as mulheres. Essas inspiraram um notável repensamento dos âmbitos disciplinares, contextualizando traduções, símbolos, imagens, linguagens.

A Igreja esposa e mãe

“Uma Igreja sem as mulheres é como o Colégio Apostólico sem Maria. O papel da mulher na Igreja não é somente a maternidade, a mamãe de família, mas é mais forte: é precisamente o ícone da Virgem, de Nossa Senhora [Madonna]; aquela que ajuda a Igreja a crescer! Mas, pensai que a ‘Madonna’ é mais importante que os Apóstolos! E muito mais importante! A Igreja é feminina: é Igreja, é esposa, é mãe”. Na contínua tensão entre autoridade e criatividade, entre identidade e mudança, as frases de Francisco, ao retornar da Jornada Mundial da Juventude, deixam entender uma sincera tensão para novas vias de reconhecimento da ação das mulheres, e esta é uma boa notícia, uma boa nova.
Mas, gostaria de entender de que mulheres estamos falando, a cinquenta anos do Concílio. As palavras do Papa configuram, ainda uma vez, a mulher como uma categoria antropológica em si mesma, inserida na função “natural” que lhe fixa deterministicamente papéis e identidades: os de ser custódia de uma humanidade a acudir e a salvar. A modelização da mulher sobre a figura de Maria Vigem, tão cara a Francisco (e retomada na entrevista a Civiltá Cattolica), talvez seja inevitável após décadas de “uma mariologia que não procede da Revelação, mas tem o apoio dos textos pontifícios” – para dizê-lo com o cardeal Congar. É lastimável que esta interpretação não produza sentido de identificação entre as mulheres e, menos ainda, as assegure quanto ao respeito da parte de padres e bispos do fermento teológico e pastoral da qual estes, hoje, são capazes dentre da Igreja.
Com bem outro horizonte João XXIII, na Pacem in Terris (1963) se referia à mulher como “sinal dos tempos”, presença histórica no novo cenário mundial que fazia seu ingresso na vida pública, “com uma influência, uma irradiação, um poder até agora jamais atingido”, e uma consciência sempre mais clara e operante de sua dignidade. Aquela consciência de si, embora sob constante assédio, é um dado sociológico já consolidado pela experiência de gerações, e não se pode não ter dele conta na crise do modelo antropocêntrico.
A ênfase sobre a maior importância de Maria em relação aos apóstolos – mulher que gerou Jesus, Miriam/Maria desenvolveu uma tarefa obviamente não declinável ao macho – e a declarada preeminência do gênero feminino (“A mulher, na Igreja, é mais importante do que os bispos e os padres”) sempre mais se afadigam a coexistir com a iteração do “não” categórico ao sacerdócio feminino: “uma porta fechada”. Tem razão Marinella Perroni quando faz notar que não se pode cair na armadilha de considerar e fazer considerar o sacerdócio feminino como a única questão relevante para a pesquisa teológica das mulheres. No entanto, a recusa autoritária de toda perspectiva de diálogo sobre a conferição da ordem sagrada às mulheres – a décadas de distância da comissão de estudo querida por Paulo VI – permanece um incompreensível enigma.
A ideia de nomear uma mulher cardeal – voltou-se a falar disso nos últimos dias como de uma via possível para incidir sobre a fidedignidade das mulheres na Igreja sem arranhar o espinhoso ‘diktat’ sobre o sacerdócio feminino – pode ter um valor simbólico, mas parece ser uma hipótese insuficiente se o intento último é aquele de sacudir o desinteresse e a suspeita que grande número do clero nutre perante as mulheres. A superação da exclusão das mulheres no exercício da autoridade na Igreja requer outra estrada mestra, feita de bem outras abordagens estruturais e de novas capacidades dialógicas.

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