O protestantismo representa hoje uma realidade assaz complexa, ou seja, o
bloco de aproximadamente 200.000.000 de cristãos que não pertencem nem à
Igreja tradicional, cujo Chefe visível reside em Roma, nem à facção
oriental (em parte dita ortodoxa, em parte nestoriana, monofisita; cf.
«P. R.» 10/1958, qu. 10), facção que se separou do tronco primordial em
etapas sucessivas desde o séc. V até o séc. XI.
O iniciador do movimento protestante é Martinho Lutero, que, a partir de
1517, pretendeu reformar o credo e as instituições cristãs, e por isto
se afastou da Igreja, dando início ao Luteranismo. Ao lado deste,
enumeram-se o Calvinismo (que absorveu o Zwinglianismo ou a reforma de
Zwingli em Zürich, Suíça), movimento afim ao de Lutero, empreendido por
Calvino em Genebra, Suíça, e o Anglicanismo, reforma congênere oriunda
na Inglaterra. Estas três denominações (Luteranismo, Calvinismo e
Anglicanismo) representam o que se pode chamar «Igrejas protestantes
tradicionais», todas iniciadas no séc. XVI (os Anglicanos nem sempre
aceitam a designação de «protestantes», embora, por seus princípios
doutrinários, se filiem ao protestantismo).
Das três Igrejas protestantes derivaram-se centenas de sociedades
menores, que não mais recebem o nome de Igrejas no sentido absoluto, mas
o de seitas, visto serem movidas por espírito diverso do das Igrejas;
são reformas da reforma, dissidências da dissidência: metodistas,
batistas, congregacionais, quakers, etc. (sobre a distinção entre a
Igreja e seita, veja «P. R.» 6/1957, qu. 8). Para maior entendimento
sobre o por quê da classificação de Seita e não igreja, leia o artigo
postado aqui.
Esses múltiplos grupos protestantes autônomos professam credos
diferentes, chegando alguns a negar a própria Divindade de Cristo; o
liberalismo doutrinário predomina entre eles. Contudo podem-se enunciar
três grandes teses como características dos diversos tipos de
Protestantismo:
1) a justificação pela fé sem as obras; 2) a Bíblia como única fonte de
fé, interpretada segundo o «livre exame»; 3) a negação de intermediários
entre Deus e o crente.
1. Três pontos capitais
a) A justificação pela fé sem as obras
Lutero considerava esta tese como central dentro da sua ideologia:
«artigo do qual nada se poderá subtrair, ainda que o céu e a terra
venham a desmoronar» (Artigos de Schmakalde, 1537).
Qual o significado de tal proposição e donde lhe vem a sua importância no protestantismo?
A resposta não é difícil; deriva-se da situação psicológica em que o
reformador se achou em certa fase de sua vida. Lutero fez-se frade
agostiniano, mas movido pelo medo (tendo escapado à fulminação por um
raio, prometeu entrar no convento) do que por autêntica vocação.
No claustro, experimentou a concupiscência, à qual opôs penitência e ascese. Sentindo, porém, continuamente as más tendências em sua natureza, entrou em angustiosa crise: queria libertar-se da concupiscência, mas não o conseguia… Um belo dia julgou ter encontrado a solução: apelando para São Paulo (principalmente para a epístola aos Romanos), começou a ensinar que a concupiscência é realmente invencível; por conseguinte, vão é procurar dominá-la mediante penitência e boas obras. Nem Deus requer isto do homem; basta aceitar a Cristo como Salvador, isto é, crer com confiança que Deus Pai, em vista dos méritos de Jesus, não leva em conta os pecados do indivíduo; a fé confiante («fiducial»), independentemente de boas obras, faz que Deus nos recubra com o manto dos méritos de Cristo, declarando-nos justos. Tal declaração é meramente legal ou extrínseca, não afeta o interior da natureza humana; esta, mesmo depois de «justificada», nada pode fazer para obter a salvação eterna, pois se acha como que aniquilada pelo pecado, reduzida à categoria de instrumento inerte nas mãos de Deus ou de serra nas mãos do carpinteiro (assim se formula a famosa tese do «servo arbítrio» de Lutero).
No claustro, experimentou a concupiscência, à qual opôs penitência e ascese. Sentindo, porém, continuamente as más tendências em sua natureza, entrou em angustiosa crise: queria libertar-se da concupiscência, mas não o conseguia… Um belo dia julgou ter encontrado a solução: apelando para São Paulo (principalmente para a epístola aos Romanos), começou a ensinar que a concupiscência é realmente invencível; por conseguinte, vão é procurar dominá-la mediante penitência e boas obras. Nem Deus requer isto do homem; basta aceitar a Cristo como Salvador, isto é, crer com confiança que Deus Pai, em vista dos méritos de Jesus, não leva em conta os pecados do indivíduo; a fé confiante («fiducial»), independentemente de boas obras, faz que Deus nos recubra com o manto dos méritos de Cristo, declarando-nos justos. Tal declaração é meramente legal ou extrínseca, não afeta o interior da natureza humana; esta, mesmo depois de «justificada», nada pode fazer para obter a salvação eterna, pois se acha como que aniquilada pelo pecado, reduzida à categoria de instrumento inerte nas mãos de Deus ou de serra nas mãos do carpinteiro (assim se formula a famosa tese do «servo arbítrio» de Lutero).
- Observação importante: A Igreja Católica ensina que somos
justificados pela fé e que não podemos obter a salvação por meio das
boas obras ou qualquer outro esforço próprio. Contudo, ensina também que
as boas obras são eficazes na santificação do crente, à sua
justificação (que é significa o ato de tornar-se justo), bem como na
expiação dos castigos temporais dos pecados já perdoados. Ou seja,
embora tenhamos recebido o perdão por nossos pecados pelo Sacrifício
Salvífico de Cristo, tendo assim o castigo eterno removido, as
consequências temporais de nossos pecados permanecem. Assim, movidos
pela fé e pelo desejo de agradar a Deus, praticamos boas obras para
fazer reparação por nossos pecados e diminuir ou eliminar suas
consequências temporais. As boas obras são ainda um meio de cumprir ao
mandamento de amar ao próximo. Leia mais sobre o tema AQUI e AQUI
Neste quadro de idéias, vê-se que não se pode falar de cooperação do
homem com a graça de Deus, nem de méritos. Lutero e Calvino reconheciam
que a caridade nasce da fé, como a maçã provém da macieira, mas
(acrescentavam) não são a caridade e suas obras que importam (ou ao
menos… que importam em primeiro lugar); o crente pode estar certo da
salvação eterna em qualquer fase da sua vida, desde que mantenha a sua
fé confiante. Donde o famoso adágio de Lutero «Pecco fortiter, sed
fortius credo. — Peco intensamente, mas ainda mais intensamente creio»
(carta a Melancton, 1º de agosto de 1521); com estas palavras, o
reformador não recomendava o pecado, mas queria dizer que a simples
confiança no Salvador ainda tem mais peso no processo de salvação do que
a culpa do homem. Calvino, do qual muito se inspiraram os
presbiterianos e batistas, acentuou ao extremo estas idéias, afirmando
que Deus predestina infalivelmente para a salvação eterna, de sorte que,
se o homem não perde a sua fé, pode ter certeza de que chegará à
bem-aventurança celeste (donde se deriva para o crente suavíssimo
reconforto).
b) A Bíblia, única fonte de fé, sujeita ao «livre exame»
A fim de dar fundamento à inovadora tese da justificação pela fé
fiducial, os reformadores precisavam de fazer uma revisão nas fontes da
Revelação cristã. Estas são a Escritura Sagrada e a Tradição oral
apregoada pelo magistério da Igreja. Resolveram, pois, rejeitar a
Tradição ou o magistério, para só dar crédito à Palavra escrita ou à
Bíblia. Esta, para o protestante, tudo contém: é, por si mesma, clara em
tudo que concerne a salvação eterna.
Calvino se exprime a respeito em termos muito fortes:
«Quanto à objeção que os católicos nos fazem, perguntando-nos de quem,
donde e como temos a convicção de que a Escritura provém de Deus, é
semelhante à questão de quem quisesse saber como aprendemos a distinguir
a luz das trevas, o branco do negro, o doce do amargo. A Escritura, com
efeito, tem seu modo de se manifestar, modo tão notório e seguro que se
compara à maneira como as coisas brancas e negras manifestam sua cor e
as coisas doces e amargas manifestam o seu sabor» (Institution
chrétienne I 7 & 3).
Para ajudar a pessoa a ler e entender a Bíblia, o Espírito Santo dá seu
testemunho interior, iluminando a mente e dirigindo o coração. Em
consequência, cada crente tem o direito de «deduzir» da Bíblia as
verdades que ele, em seu bom senso, julgue haverem sido a ele ensinadas
pelo Espírito Santo.
Assim o Protestantismo atribui ao individuo uma prerrogativa que ele
nega à Igreja visível e hierárquica: esta pode errar no seu ensinamento,
corrompendo o depósito da fé (apesar das promessas de Cristo, seu
Fundador); toca, por conseguinte, a cada cristão, guiado pelo Espírito
Santo, encontrar de novo a Palavra de Deus perdida pela Igreja…
A reação do crente protestante contra o magistério eclesiástico é,
aliás, típica expressão da mentalidade da Renascença: no séc. XVI o
homem criou, sim, uma consciência nova dentro de si, tendente a pôr em
cheque qualquer tipo de autoridade, para mais exaltar o individuo. «O
que rejeito absolutamente é a autoridade», escrevia Alexandre Vinet
(1797-1847), chefe do movimento dito «da Igreja Livre» na Suíça
ocidental calvinista. O Evangelho, para Lutero, devia ser não somente
uma escola de obrigações, mas também uma via de libertações (entre as
quais, a libertação frente à autoridade religiosa visível).
c) A negação de intermediários entre Deus e o crente
O Protestantismo dá valor decisivo à atitude do individuo diante de
Deus; segundo a ideologia reformada, é a fé subjetiva nos méritos de
Cristo que garante a salvação. Em consequência, pouca margem aí resta
para se conceberem dons de Deus que permaneçam extrínsecos ao indivíduo e
a este comuniquem os méritos do Salvador. Em outros termos: não têm
cabimento canais transmissores da graça, como sejam ritos e práticas a
serem administrados por uma sociedade visível (a Igreja) e por uma
hierarquia de ministros oficialmente instituída. Para o protestante,
entre o homem justificado pela fé e Deus, não há Sacerdote senão o
Senhor Jesus invisível que está nos céus (a prolongação da Encarnação
através da Igreja e dos sacramentos é depreciada); também não há outro
Mestre senão o Espírito Santo, que fala nas Escrituras e no íntimo de
cada alma, sem se servir de algum magistério viável e objetivo.
Note-se, em particular, a repercussão destas idéias nos conceitos de sacramentos e Igreja.
O número dos sacramentos foi notavelmente diminuído pelos doutores do
Protestantismo. Dentre os sete tradicionais, Calvino chegou a admitir
dois apenas: o Batismo e a Ceia. Quanto à função dos sacramentos, os
reformadores nos diriam que estes não são portadores da graça, mas
apenas sinais que, lembrando as promessas da benevolência divina,
excitam a fé (ou confiança) nessas promessas; estimulada por tais
sinais, é a fé que produz a santificação do crente. Os sacramentos
portanto não exercem, como se diz em linguagem teológica, causalidade
nem física nem moral no processo de santificação; a sua influência fica
limitada ao setor psicológico (recordam a palavra de Deus…).
No Calvinismo, torna-se mesmo impossível que a graça esteja associada a
algum sinal objetivo, pois ela só é dada aos predestinados; a quem não
pertença ao número destes, não adianta recorrer a algum rito sensível.
Lutero, um pouco menos inovador neste ponto, afirmava que o Batismo
confere a santidade, mas só o faz mediante a fé: «Não o sacramento, mas a
fé no sacramento é que justifica. — Non sacramentum, sed fides in
sacramento iustificat», escrevia o reformador ao Cardeal Caetano. O
Zwinglianismo empalidecia ainda mais o papel dos sacramentos,
reduzindo-os a meros testemunhos da fé capazes de unir os homens entre
si: pelos sacramentos, ensinava Zwingli, o crente atesta e comprova à
Igreja a sua fé, sem que da Igreja receba sequer o selo ou a comprovação
da fé.
A prevalência do indivíduo sobre a coletividade se exprime com não menor
clareza no conceito protestante de Igreja. Esta, conforme os
reformadores, não é um corpo visível, mas sociedade invisível; só uma
coisa impede que alguém a ela pertença: o pecado. Quem não se deixa
contaminar por este, torna-se membro da Igreja, independentemente dos
quadros externos nos quais os crentes professam a sua fé. Em geral,
dizem os protestantes que a Igreja visível se corrompeu e extinguiu no
séc. IV, sob o Imperador Constantino, dada a colaboração do Estado e da
Igreja, pois então se introduziram nos mais íntimos redutos do
Cristianismo doutrinas e costumes pagãos. Subsiste, porém, a Igreja
invisível, a qual continua a vida da comunidade primitiva de Jerusalém.
Ora seria essa Igreja invisível que vai tomando corpo nas denominações
protestantes a partir do séc. XVI…
Se agora se pergunta como é governada a Igreja invisível, toca-se uma
questão árdua para o Protestantismo: este, de um lado, rejeita o Papado
e, de outro lado, afirma que todos os fiéis são sacerdotes. Em
consequência, não restam critérios muito seguros para se constituir o
governo da igreja… Donde a multiplicidade de soluções: há denominações
protestantes dirigidas por seus «bispos» (tais são o episcopalismo
anglicano, o metodismo…), bispos porém que são mais mentores dos
.crentes do que sacerdotes ou ministros dos meios de santificação; há as
também dirigidas por presbíteros (o presbiterianismo, por exemplo), e
há-as dirigidas por meros delegados da coletividade ou da congregação
(congregacionalismo, que reproduz o sistema democrático no setor
religioso). Vários grupos protestantes não concebem mesmo dificuldade em
admitir a autoridade mais ou menos absoluta dos governos civis no que
diz respeito à vida temporal da Igreja (o que resulta em secularização
da face visível do Cristianismo).
Expostas sumariamente as três características da ideologia protestante, incumbe-nos agora analisar o seu significado.
2. Uma estimação da doutrina
a) A justificarão pela fé sem as obras
1. Não há dúvida, a Escritura ensina que a remissão dos pecados é
gratuitamente outorgada aos homens pelos méritos de Jesus Cristo (cf.
Rom 5,8s); o homem não pode merecer o perdão, mas tem que o aceitar
contritamente, crendo no amor de Deus e entregando-se humilde a esse
amor. Contudo a Escritura ensina outrossim que o perdão outorgado por
Deus não é mera fórmula jurídica em virtude da qual não nos seria mais
levado em conta o pecado, pecado que, apesar de tudo, ficaria inamovível
a contaminar a alma. Não; justificação, segundo as Escrituras, é regeneração (cf. Jo 3,3.5; Tit
3,5), elevação à dignidade de filhos de Deus não nominais apenas, mas
reais (cf. 1Jo 3,1), de modo a nos tornarmos consortes da natureza
divina (cf. 2 Pdr 1,4), capazes de produzir atos que imitem a santidade
do Pai Celeste (cf. Mt 5,48). Se, por conseguinte, Deus, ao nos perdoar
as faltas, nos concede uma nova natureza, está claro, conforme as
Escrituras mesmas, que as obras boas que estejam ao alcance desta nova
natureza, devem pertencer ao programa de santificação do cristão; elas
se tornam condição indispensável para que alguém consiga a vida eterna.
Deus não pode deixar de exigir tais obras depois de nos haver concedido o
princípio capaz de as produzir.
É óbvio que essas obras boas não constituem o pagamento dado pelo homem
em troca da graça de Deus, nem são algo que a criatura efetue
independentemente dos méritos de Cristo Salvador, mas são os frutos
necessários da ação de Deus (ou da graça) no homem regenerado, são
concretizações dos méritos do Salvador; na verdade, é Cristo quem vive
no cristão e neste exerce seu influxo vital, como a cabeça nos seus
membros e como o tronco da videira nos seus ramos (cf. Gál 2,20; Jo
15,1s).
São Paulo, na epístola dos Romanos, tanto inculca a justificação pela fé
sem as obras, porque tem em vista a primeira conversão ou a conversão
do pecador a Deus (claro está que esta não pode ser o resultado de obras
meritórias prévias). São Tiago, porém, que visa propriamente o
desabrochar da vida cristã após a conversão, inculca fortemente a
necessidade das boas obras (por isto a epistola de Tiago muito
desagradava a Lutero, que quis negar a sua autenticidade).
Quanto à concupiscência que permanece no cristão por toda a vida, ela
não constitui pecado enquanto o indivíduo não lhe dá consentimento; por
muito intensa que seja, a graça do Redentor é certamente capaz de
triunfar sobre ela. O fato de que a Escritura a chama «pecado» (cf. Rom
7,20), explica-se por estar a concupiscência intimamente ligada ao
pecado como consequência deste.
De resto, na vida cotidiana os protestantes valorizam altamente as boas
obras; falam então linguagem muito semelhante à dos católicos.
b) A Bíblia e o livre exame
Já em «P. R.» 7/1958, qu. 2 e 3 foi publicada longa explanação sobre a
Tradição oral como fonte de fé e necessário critério de interpretação da
Bíblia Sagrada. O valor da Tradição se explica pelo fato de que a
Revelação oral antecedeu a redação das Escrituras e nem foi, por
inteiro, consignada nos livros sagrados (os hagiógrafos nunca tiveram a
intenção de confeccionar um manual completo dos ensinamentos revelados);
donde se vê quão alheio é ao espírito mesmo da Bíblia interpretá-la
independentemente da corrente de doutrinas dentro da qual a Escritura se
originou, se conservou e sempre se transmitiu.
Ao que foi dito ainda se pode acrescentar a menção de algumas
consequências do princípio do livre exame (é pelos frutos que se conhece
a árvore!).
Os próprios reformadores e seus discípulos, desejando exaltar a
autoridade das Escrituras, tornaram-se deturpadores da Palavra de Deus.
Foi, sim, em nome do Antigo Testamento que Lutero permitiu a bigamia a
Filipe de Hessen. É em nome das Escrituras que os fundadores de seitas
vão ensinando teses fantasistas e contraditórias sobre a data do fim do
mundo (tenham-se em vista os Adventistas, os Testemunhas de Jeová, os
Amigos do homem, de que trata «P. R.» 14/1959, qu. 10). Em nome do livre
exame da Bíblia os críticos protestantes têm rejeitado inteiras seções
ou até livros escriturísticos; chegam a negar a Divindade de Cristo (o
primeiro autor que negou a plena veracidade dos Evangelhos, foi o
protestante H. S. Reimarus +1768).
De resto, verifica-se que as comunidades de crentes tendo abandonado a
venerável Tradição transmitida desde os inícios do Cristianismo, ainda, e
apesar de tudo, seguem uma tradição, … tradição evidentemente humana, a
que deu início tal ou tal fundador de seita. Criou-se em cada
denominação de «reformados» uma tradição particular ou uma via própria
de interpretação da Bíblia.
É a rejeição de todo magistério munido da autoridade do próprio Deus que
gera instabilidade nas comunidades protestantes, ocasionando a criação
de novas e novas seitas. A razão destas múltiplas reformas não será o
fato de que nenhuma delas é realmente guiada pelo Espírito Santo, mas
todas são obra meramente humana? Aliás o próprio Lutero já verificava em
seus tempos: «Há tantos credos quantas cabeças há».
Alexandre Vinet, já citado, afirmava por sua vez no século passado:
«Para mim, o Protestantismo é apenas um ponto de partida; a religião
fica muito além dele… A reforma será uma exigência permanente dentro da
Igreja; ainda hoje a reforma está por se fazer».
A experiência de 400 anos mostrou que se volta contra os próprios irmãos
separados o principio com que estes quiseram outrora impugnar os
católicos: «Mais vale obedecer a Deus do que aos homens» (At 5,29).
c) A negação de intermediários entre Deus e o crente
Esta posição acarreta, como dizíamos, a negação de várias instituições
que se tornaram clássicas no Cristianismo: os sacramentos concebidos
como canais da graça, a intercessão dos santos, o sacerdócio oficial e
hierárquico, a visibilidade da Igreja, etc.
Alguns destes temas já foram diretamente abordados em «P.R.»: assim o
significado dos santos na piedade cristã, em «P. R.» 13/1959, qu. 5; a
autoridade da canonização dos santos, em «P.R.» 13/1959, qu. 5; a
necessidade do culto externo, em «P.R.» 15/1959, qu. 3; a instituição de
um chefe visível e de um magistério infalível dentro da Igreja, em
«P.R.» 13/1959, qu. 2 e 14/1959, qu. 3.
Seguem-se três observações aptas a mais evidenciar o erro radical contido no princípio protestante:
i) a rejeição dos sacramentos e do sacerdócio hierárquico contradiz à
lei geral que Deus sempre quis observar nas suas relações com o homem:
assim como na plenitude dos tempos o Senhor atingiu a criatura mediante o
mistério da Encarnação, assim antes e depois desta Ele veio e vem sob
sinais sensíveis; principalmente no Novo Testamento a dispensação das
graças conserva a estrutura da Encarnação: os sacramentos e sacramentais
são matéria consagrada que prolonga e desdobra a estrutura do Verbo
Encarnado. Como o corpo de Jesus recebeu outrora a vida divina e a
comunicou aos homens seus contemporâneos, assim os elementos corpóreos
(água, pão, vinho, óleo, palavras e gestos do homem…) vêm a ser, nos
sacramentos, os canais que contêm e transmitem a graça de Deus; não os
poderíamos reduzir à categoria de meros estimulantes da memória, vazios
de conteúdo sobrenatural, sem quebrar a harmonia do plano da salvação.
ii) Nos desígnios de Deus, a santificação do homem sempre foi concebida
comunitariamente, em oposição a qualquer individualismo. O Criador houve
por bem, no inicio da história, incluir todos os homens no primeiro
Adão; quis outrossim restaurar todos conjuntamente em Cristo;
consequentemente santifica-nos hoje por meio de uma coletividade, que é a
Igreja, caracterizada por sinais objetivos e por um ministério visível,
fora do qual ninguém pode pretender encontrar o Cristo. — Exaltando o
indivíduo a ponto de relegar para plano secundário a comunidade, o
Protestantismo vem a ser autêntico produto da mentalidade subjetivista e
antropocêntrica do Renascimento.
iii) A Reforma pretende corresponder à Igreja primitiva, anterior à
corrupção que «paganizou» o Evangelho… Esta pretensão é tão vã que os
mestres protestantes se têm visto obrigados a fazer recuar
constantemente o período da «grande corrupção»: ao passo que os
primeiros reformadores a colocavam no séc. IV, outros foram retrocedendo
até os tempos de S. Cipriano (+258), S. Ireneu (+ cerca de 202),
Clemente Romano (+102?) ou até a geração apostólica. O famoso crítico
Harnack (+1930) chegava a dizer que já os Apóstolos perverteram o
Evangelho de Cristo — o que é evidentemente absurdo, pois não conhecemos
o Evangelho de Cristo senão através da pregação e dos escritos dos
Apóstolos; Harnack, porém, era obrigado a proferir tal contrassenso,
porque reconhecia claramente que a Igreja Católica atual corresponde
fielmente à Igreja primitiva ou, como dizia ele, que «Cristianismo,
Catolicismo e Romanismo constituem uma identidade histórica perfeita»
(Theologische Literaturzeitung, 16 jan. 1909).
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