Publicado no L’Osservatore Romano, ed. port. em 24/11/1972
“Atualmente, quais são as maiores necessidades da Igreja?“
Não deveis considerar a nossa resposta
simplista, ou até supersticiosa e irreal: uma das maiores necessidades é
a defesa daquele mal, a que chamamos Demônio.
Antes de esclarecermos o nosso
pensamento, convidamos o vosso a abrir-se à luz da fé sobre a visão da
vida humana, visão que, deste observatório, se alarga imensamente e
penetra em singulares profundidades. E, para dizer a verdade, o quadro
que somos convidados a contemplar com realismo global é muito lindo. É o
quadro da criação, a obra de Deus, que o próprio Deus, como espelho
exterior da sua sabedoria e do Seu poder, admirou na sua beleza
substancial (cf. Gn 1,10 ss.).
Além disso, é muito interessante o
quadro da história dramática da humanidade, da qual emerge a da
redenção, a de Cristo, da nossa salvação, com os seus magníficos
tesouros de revelação, de profecia, de santidade, de vida elevada a
nível sobrenatural, de promessas eternas (cf. Ef 1,10). Se soubermos
contemplar este quadro, não poderemos deixar de ficar encantados (Santo
Agostinho, Solilóquios); tudo tem um sentido, tudo tem um fim, tudo tem
uma ordem e tudo deixa entrever uma Presença-Transcendência, um
Pensamento, uma Vida e, finalmente, um Amor, de tal modo que o universo,
por aquilo que é e por aquilo que não é, se apresenta como uma
preparação entusiasmante e inebriante para alguma coisa ainda mais bela
e mais perfeita (cf. ICor 2,9; Rm 8,19-23). A visão cristã do cosmo e
da vida é, portanto, triunfalmente otimista; e esta visão justifica a
nossa alegria e o nosso reconhecimento pela vida, motivo por que,
celebrando a glória de Deus, cantamos a nossa felicidade.
Ensinamento Bíblico
Esta visão, porém, é completa, é exata?
Não nos importamos, porventura com as deficiências que se encontram no
mundo, com o comportamento anormal das coisas em relação à nossa
existência, com a dor, com a morte, com a maldade, com a crueldade, com
o pecado, numa palavra, com o mal? E não vemos quanto mal existe no
mundo especialmente quanto à moral, ou seja, contra o homem e,
simultaneamente, embora de modo diverso, contra Deus? Não constitui
isto um triste espetáculo, um mistério inexplicável? E não somos nós,
exatamente nós, cultores do Verbo, os cantores do Bem, nós crentes, os
mais sensíveis, os mais perturbados, perante a observação e a prática do
mal? Encontramo-lo no reino da natureza, onde muitas das suas
manifestações, segundo nos parece, denunciam a desordem. Depois,
encontramo-lo no âmbito humano, onde se manifestam a fraqueza, a
fragilidade, a dor, a morte, e ainda coisas piores; observa-se uma dupla
lei contrastante, que, por um lado, quereria o bem, e, por outro, se
inclina para o mal, tormento este que São Paulo põe em humilde evidência
para demonstrar a necessidade e a felicidade de uma graça salvadora, ou
seja, da salvação trazida por Cristo (Rm 7); já o poeta pagão Ovidio
tinha denunciado este conflito interior no próprio coração do homem:
“Vídeo meliora proboque, deteriora sequor”(Ovídio Met.7, 19).
Encontramos o pecado, perversão da liberdade humana e causa profunda da
morte, porque é um afastamento de Deus, fonte da vida (cf. Rm 5,12) e,
também, a ocasião e o efeito de uma intervenção, em nós e no nosso
mundo, de um agente obscuro e inimigo, o Demônio. O mal já não é apenas
uma deficiência, mas uma eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido
e perversor. Trata-se de uma realidade terrível, misteriosa e medonha.
Sai do âmbito dos ensinamentos bíblicos e
eclesiásticos quem se recusa a reconhecer a existência desta realidade;
ou melhor, quem faz dela um princípio em si mesmo, como se não tivesse,
como todas as criaturas, origem em Deus, ou a explica como uma
pseudo-realidade, como uma personificação conceitual e fantástica das
causas desconhecidas das nossas desgraças.
O problema do mal, visto na sua
complexidade em relação à nossa racionalidade, torna-se uma obsessão.
Constituí a maior dificuldade para a nossa compreensão religiosa do
cosmo. Foi por isso que Santo Agostinho penou durante vários anos:
“Quaerebam unde malum, et non erat exitus”, procurava de onde vinha o
mal e não encontrava a explicação. (Confissões, VII,5 ss)
Vejamos, então, a importância que
adquire a advertência do mal para a nossa justa concepção; é o próprio
Cristo quem nos faz sentir esta importância. Primeiro, no
desenvolvimento da história, haverá quem não recorde a página, tão
densa de significado, da tríplice tentação? E ainda, em muitos
episódios evangélicos, nos quais o Demônio se encontra com o Senhor e
aparece nos seus ensinamentos (cf.
Mt 1,43)? E como não haveríamos de recordar que Jesus Cristo,
referindo-se três vezes ao Demônio como seu adversário, o qualifica como
“príncipe deste mundo” (Jo 12,31; 14,30; 16,11)? E a ameaça desta
nociva presença é indicada em muitas passagens do Novo Testamento. São
Paulo chama-lhe “deus deste mundo” (2Cor 4,4) e previne-nos contra as
lutas ocultas, que nós cristãos devemos travar não só com o Demônio, mas
com a sua tremenda pluralidade: “Revesti-vos da armadura de Deus para
que possais resistir às ciladas do Demônio. Porque nós não temos de
lutar (só) contra a carne e o sangue, mas contra os Principados, contra
os Dominadores deste mundo tenebroso, contra os Espíritos malignos
espalhados pelos ares” (Ef 6,11-12).
Diversas passagens do Evangelho
dizem-nos que não se trata de um só demônio, mas de muitos (cf. Lc
11,21; Mc 5,9), um dos quais é o principal: Satanás, que significa o
adversário, o inimigo; e, ao lado dele, estão muitos outros, todos
criaturas de Deus, mas decaídas, porque rebeldes e condenadas;
constituem um mundo misterioso transformado por um drama muito infeliz,
do qual conhecemos pouco (cf. DS 800).
O Inimigo Oculto
Conhecemos, todavia, muitas coisas deste
mundo diabólico, que dizem respeito à nossa vida e a toda a história
humana. O Demônio é a origem da primeira desgraça da humanidade; foi o
tentador pérfido e fatal do primeiro pecado, o pecado original (cf. Gn
3; Sb 1,24). Com aquela falta de Adão, o Demônio adquiriu um certo poder
sobre o homem, do qual só a redenção de Cristo nos pode libertar.
Trata-se de uma história que ainda hoje
existe: recordemos os exorcismo do batismo e as frequentes referências
da Sagrada Escritura e da Liturgia ao agressivo e opressivo “domínio das
trevas” (Lc 22,53). Ele é o inimigo número um, o tentador por
excelência. Sabemos, portanto, que este ser mesquinho, perturbador,
existe realmente e que ainda atua com astúcia traiçoeira; é o inimigo
oculto que semeia erros e desgraças na história humana.
Deve-se recordar a significativa
parábola evangélica do trigo e da cizânia, síntese e explicação do
ilogismo que parece presidir às nossas contrastantes vicissitudes:
“Inimicus homo hoc fecit” (Mt 13,2). É o assassino desde o princípio… e
“pai da mentira”, como o define Cristo (cf. Jo,44-45); é o insidiador
sofista do equilíbrio moral do homem. Ele é o pérfido e astuto
encantador, que sabe insinuar-se em nós através dos sentidos, da
fantasia, da concupiscência, da lógica utópica, ou de desordenados
contatos sociais na realização de nossa obra, para introduzir neles
desvios, tão nocivos quanto, na aparência, conformes às nossas
estruturas físicas ou psíquicas, ou às nossas profundas aspirações
instintivas.
Este capítulo, relativo ao Demônio e ao
influxo que ele pode exercer sobre cada pessoa, assim como sobre
comunidades, sobre inteiras sociedades, ou sobre acontecimentos, é um
capitulo muito importante da doutrina católica, que deve ser estudado
novamente, dado que hoje o é pouco. Algumas pessoas julgam encontrar nos
estudos da psicanálise ou da psiquiatria, ou em práticas evangélicas,
no principio da sua vida pública, de espiritismo, hoje tão difundidas
em alguns países, uma compensação suficiente. Receia-se cair em velhas
teorias maniqueístas, ou em divagações fantásticas e supersticiosas.
Hoje, algumas pessoas preferem mostrar-se fortes, livres de
preconceitos, assumir ares de positivistas, mas depois dão crédito a
muitas superstições de magia ou populares, ou pior, abrem a própria alma
– a própria alma batizada, visitada tantas vezes pela presença
eucarística e habitada pelo Espírito Santo – às experiências
licenciosas dos sentidos, às experiências deletérias dos
estupefacientes, assim como às seduções ideológicas dos erros na moda,
fendas estas por onde o maligno pode facilmente penetrar e alterar a
mentalidade humana.
Não quer dizer que todo o pecado seja
devido diretamente à ação diabólica; mas também é verdade que aquele que
não vigia, com certo rigor moral, a si mesmo (cf. Mt 12,45; Ef 6,11),
se expõe ao influxo do “mysterium iniquitatis”, ao qual São Paulo se
refere (2Ts 2,3-12) e que torna problemática a alternativa da nossa
salvação.
A nossa doutrina torna-se incerta,
obscurecida como está pelas próprias trevas que circundam o Demônio. Mas
a nossa curiosidade, excitada pela certeza da sua doutrina múltipla,
torna-se legitima com duas perguntas: Há sinais da presença da ação
diabólica e quais são eles? Quais são os meios de defesa contra um
perigo tão traiçoeiro?
A Ação do Demônio
A resposta à primeira pergunta, requer
muito cuidado embora os sinais do Maligno às vezes pareçam tornar-se
evidentes (Tertuliano, Apologia, 23). Podemos admitir a sua atuação
sinistra onde a negação de Deus se torna radical, sutil ou absurda;
onde o engano se revela hipócrita, contra a evidência da verdade; onde o
amor é anulado por um egoísmo frio e cruel; onde o nome de Cristo é
empregado com ódio consciente e rebelde (cf. ICor 16,22; 12,3); onde o
espírito do Evangelho é falsificado e desmentido; onde o desespero se
manifesta como a última palavra, etc. Mas é um diagnóstico demasiado
amplo e difícil, que agora não ousamos aprofundar nem autenticar; que
não é desprovido de dramático interesse para todos, e ao qual até a
literatura moderna dedicou páginas famosas (*). O problema do mal
continua a ser um dos maiores e permanentes problemas para o espírito
humano, até depois da resposta vitoriosa que Jesus Cristo dá a
respeito dele.
“Sabemos – escreve o evangelista São
João – que todo aquele que foi gerado por Deus guarda-o, e o Maligno não
o toca” (IJo 5,19).
A Defesa do Cristão
A outra pergunta, que defesa, que
remédio, há para combater a ação do Demônio, a resposta é mais fácil de
ser formulada, embora seja difícil pô-la em prática. Poderemos dizer
que tudo aquilo que nos defende do pecado nos protege, por isso mesmo,
contra o inimigo invisível. A graça é a defesa decisiva. A inocência
assume um aspecto de fortaleza. E, depois, todos devem recordar o que a
pedagogia apostólica simbolizou na armadura de um soldado, ou seja, as
virtudes que podem tornar o cristão invulnerável (cf. Rm 13,13; Ef
6,11-14-17; lTs 5,8). O cristão deve ser militante; deve ser vigilante e
forte (lPd 5,8); e algumas vezes, deve recorrer a algum exército
ascético especial, para afastar determinadas invasões diabólicas; Jesus
ensina-o, indicando o remédio “na oração e no jejum” (Mc 9,29). E o
apóstolo indica a linha mestra que se deve seguir: “Não te deixes vencer
pelo mal; vence o mal com o bem” (Rm 12,21; Mt 13,29).
Conscientes, portanto, das presentes
adversidades em que hoje se encontram as almas, a Igreja e o mundo,
procuraremos dar sentido e eficácia à usual invocação da nossa oração
principal: “Pai nosso (…) livrai-nos do mal”.
Contribua para isso a nossa Bênção apostólica.
Do Livro: ”Os Anjos” – Prof. Felipe Aquino
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