segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Pedra de moinho no pescoço da Igreja

ihu - Ao comparecer, esta semana, diante do comitê das Nações Unidas responsável pela Convenção sobre os Direitos da Criança, a Santa deu um primeiro passo em direção a restaurar a sua boa reputação concernente aos registros da Igreja relativos a abusos de criança praticados por padres.
O comentário é publicado em editorial da revista católica The Tablet, 23-01-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Mas isso começa do zero. O erro fatal seria supor que uma sessão de provas, mesmo com interrogatórios de testemunhas do Vaticano, seria suficiente para desfazer o mal provocado em anos recentes. Como o governo central da Igreja Católica, a Santa deveria esperar que fosse avaliada com um padrão mais alto do que qualquer outro signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança, pois a questão toda do status da Santa Sé como uma entidade soberana reconhecida internacionalmente entre a comunidade de nações é a sua autoridade moral.
É igualmente verdadeiro que a vontade dos católicos comuns de ouvir os ensinos do magistério foi gravemente comprometida pelos variados escândalos, tanto dentro do próprio Vaticano quanto envolvendo bispos diocesanos em muitas partes do mundo. A conexão entre os dois é que os bispos, no direito canônico, são responsáveis não para com o seu rebanho, nem para com as autoridade civis locais, mas sim a Roma. Dessa forma o comitê da ONU que supervisiona o cumprimento da Santa Sé com a convenção tem o direito de perguntar o quanto tal supervisão – que inclui o direito incondicional para admitir e demitir qualquer bispo – vem sendo exercida.
Nem um único bispo foi excomungado ou desligado por negligência em seu tratamento dos padres responsáveis por abusos sexuais. No entanto, tribunais civis, em particular nos EUA, encontram tal negligência repetidas vezes, e concederam indenizações colossais contra a Igreja em muitos casos. O Papa Francisco está bem ciente e mesmo dá as boas-vindas a este fato. Nesta semana ele se referiu aos “muitos escândalos que eu nem quero mencionar individualmente, mas que nós todos sabemos quais são”. Em uma das suas homilias na capela Domus Sanctae Marthae ele disse que alguns destes casos – claramente fazendo referência aos casos de abuso infantil – custaram muito dinheiro à Igreja. “Ótimo! Alguém tem que fazer isso (...). A vergonha da Igreja”, exclamou.
Esta foi a locução mais franca do papa a respeito do assunto desde que foi eleito em março. Mas vergonha implica irregularidade e irregularidade clama por justiça, o que deve incluir não apenas compensação àqueles que sofreram como também no disciplinar os responsáveis por deixar isso acontecer. Realmente, isso ajudaria transferir o fardo da vergonha, que, hoje, cai pesadamente por sobre a Igreja, aos diretamente culpáveis. Isso também é uma questão de justiça. Por que ele não seguiu a lógica de seus próprios princípios? Por que deixou a justiça aos tribunais civis, onde grandes indenizações contra uma diocese penaliza, principalmente, o laicato leigo, não o bispo que era pessoalmente culpado?
Por que mesmo o Vaticano não informou a cada bispo no mundo que qualquer coisa senão um estrito cumprimento da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança – que dá prioridade absoluta aos interesses da criança – seria visto como ofensivo? Por que não acrescentar a isso, totalmente em acordo com as diretrizes emitidas aos bispos pelo Vaticano em 2011, um requisito vinculativo para relatar todos os casos às autoridades civis e policiais, novamente sob pena de desligamento? (Onde as autoridades civis forem ideologicamente hostis à fé católica, o Vaticano poderia permitir isenções.)
Dom Charles Scicluna, o ex-procurador do Vaticano sobre casos de abuso sexual, contou a repórteres que o Papa Bento laicizou 384 padres abusadores entre os anos de 2011 e 2012 voluntariamente e, de modo forçado, desligou outros 182. Claramente isso constitui um progresso. Está o atual papa preparado para criar uma comissão para avaliar a história recente, atribuindo culpa onde ela é devida? Coisas assim seriam normais em qualquer sociedade secular que se intitule civilizada, e tendo subscrito a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, a Santa Sé deve ser julgada ao menos por aqueles mesmos padrões, senão outros mais altos.
Se isso significar pôr em causa alguma parte da adulação que cercou o nome do PapaJoão Paulo II desde sua morte – doa a quem possa doer –, então que assim seja. A “vergonha da Igreja” é também a vergonha do papado.

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