[cleofas]
Em
síntese: O presente artigo considera o fato do martírio no século XX,
paralelo ao dos primeiros séculos. A igreja quer reconhecer e homenagear
os heróis da fé, que sofreram em campos do concentração, prisões e
outras ocasiões, e dos quais alguns ainda vivem, merecendo toda a estima
dos contemporâneos.
A história se repete. O passado, que parecia definitivamente
ultrapassado, retorna com modalidades novas. É o que se dá com a época
dos mártires de 64 a 313, em que o Império Romano levou à morte muitos
milhares de cristãos. O século XX fez que os cristãos revivessem a era
do martírio não mais com anfiteatros e feras, mas em campos de
concentração, masmorras solitárias, fuzilamento.., Conforme o Papa João
Paulo II, é dever da igreja recordar este fato e comemorar os heróis que
faleceram por fidelidade a Cristo em quatro continentes do mundo
contemporâneo:
“Estes dois mil anos depois do nascimento de Cristo estão marcados pelo persistente testemunho dos mártires.
Também este século, que caminha para o seu ocaso, conheceu
numerosíssimos mártires, sobretudo por causa do nazismo, do comunismo e
das lutas raciais ou tribais. Sofreram pela sua fé pessoas das diversas
condições sociais, pagando com o sangue a sua adesão a Cristo e à Igreja
ou enfrentando corajosamente infindáveis anos de prisão e de privações
de todo gênero, para não cederem a uma ideologia que se transformou num
regime de cruel ditadura. Do ponto de vista psicológico, o martírio é a
prova mais eloquente da verdade da fé, que consegue dar um rosto humano
inclusive à morte mais violenta e manifestar a sua beleza mesmo nas
perseguições mais atrozes.
Inundados pela graça no próximo ano jubilar, poderemos mais
vigorosamente erguer ao Pai o nosso hino de gratidão, cantando: Te
martyrum candidatus laudat exercitus (o exército resplandecente dos
mártires canta os vossos louvores). Sim, é o exército daqueles que
“lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro” (Ap 7,
14). Por isso, a Igreja espalhada por toda a terra deverá permanecer
ancorada ao seu testemunho e defender zelosamente a sua memória. Possa o
povo de Deus, revigorado na fé pelos exemplos destes autênticos
campeões de diversa idade, língua e nação, cruzar confiadamente o limiar
do terceiro milênio. À admiração pelo seu martírio associe-se, no
coração dos fiéis, o desejo de poderem, com a graça de Deus, seguir o
seu exemplo, caso o exijam as circunstâncias” (Bula Incarnationis
Mysterium nº 13).
1. Martírio: que é?
A palavra mártir vem do grego mártys, mártyros, que significa
testemunha. O mártir é uma testemunha qualificada que chega ao
derramamento do próprio sangue. O Papa Bento XIV assim se exprime:
“O martírio é a morte voluntariamente aceita por causa da fé cristã
ou por causa do exercício de outra virtude relacionada com a fé”.
O Catecismo da Igreja Católica § 2473 retoma o conceito:
“O martírio é o supremo testemunho prestado à verdade da fé; designa um testemunho que vai até a morte”.
O Concílio do Vaticano II desenvolve tal noção:
“Visto que Jesus, Filho de Deus, manifestou Sua caridade entregando
Sua vida por nós, ninguém possui maior amor que aquele que entrega sua
vida por Ele e seus irmãos (cf. 1Jo3, 16; Jo 15, 13). Por isso, desde o
início alguns cristãos foram chamados e alguns sempre serão chamados
para dar o supremo testemunho de seu amor diante de todos os homens, mas
de modo especial perante os perseguidores. O martírio, por conseguinte
pelo qual o discípulo se assemelha ao Mestre, que aceita livremente a
morte pela salvação do mundo, e se conforma a Ele na efusão do sangue é
estimado pela Igreja com exímio dom e suprema prova de caridade. Se a
poucos é dado, todos, porém, devem estar prontos a confessar Cristo
perante os homens, segui-lo no caminho da cruz entre perseguições, que
nunca faltam à Igreja” (Lumen Gentium nº 42).
A propósito deve-se notar o seguinte: O martírio é uma graça que tem
sua iniciativa em Deus. Não compete ao cristão procurar o martírio
provocando os adversários da fé. A Igreja sempre condenou esse
comportamento, pois seria presunçoso (quem pode Ter certeza de suportar
corajosamente os tormentos do martírio?); além do quê, seria provocar o
pecado do próximo ou dos algozes.
Para que haja martírio propriamente dito, requer-se que o cristão
morra livremente, ou seja, aceite conscientemente o risco de morrer por
causa da sua fé. A aceitação da morte pode ser explícita, como no caso
em que o perseguidor deixa a escolha entre renegar a fé (ou uma virtude
relacionada com a fé) e a morte. A aceitação livre pode ser implícita
quando a pessoa sabe que o seu compromisso cristão pode levá-la até a
morte e, não obstante, é fiel a esse compromisso.
Para que a Igreja declare oficialmente que alguém é mártir da fé, são efetuadas pesquisas a respeito de:
- a verdadeira causa da morte: pode ser que um cristão seja condenado
à morte não por ser cristão, mas por estar envolvido em alguma campanha
política ou de outra ordem;
- a livre aceitação da morte por parte da vítima;
- graças ou milagres obtidos por intercessão do(a) servo(a) de Deus.
O processo é iniciado na diocese à qual pertencia a vítima ou na qual
ela foi levada à morte. Continua e termina em Roma, na Congregação para
as Causas dos Santos.
O martírio é algo tão antigo quanto a pregação da Palavra de Deus. Já
ocorreu na história dos Profetas do Antigo Testamento. No século II
a.C. os irmãos macabeus sofreram a morte cruenta por causa da sua fé
(cf. 2Mc 7, 1-42), assim como o escriba Eleazar (cf. 2MC 6, 18-31). O
martírio teve seu ponto alto em Jesus Cristo. Santo Estêvão é o primeiro
mártir do Cristianismo após Jesus Cristo (cf. At 7, 55-60). No fim do
século I o Apocalipse fala de “imensa multidão”, que ninguém pode
numerar, daqueles que lavaram e alvejaram suas túnicas no sangue do
Cordeiro” (cf. Ap 7, 9.14). Em síntese, São Paulo afirma que “todos
aqueles que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus, serão
perseguidos” (2Tm 3, 12).
2. O Martírio no século XX
O martírio, tão presente em nosso século como em nenhum outro, tem suas características próprias, assaz paradoxais:
1) Este é o século em que as autoridades mais se preocuparam com não
fazer mártires cristãos. Assim o nacional-socialismo alemão condenou
muitos fiéis católicos não por causa da sua fé, mas por motivos
políticos. Do lado marxista, Stalin recomendava aos chefes de regime
comunistas que nunca pusessem a luta contra a Igreja no plano religioso,
mas sempre no plano político, como fazia Himmler na Alemanha. O aparato
jurídico soviético dispunha de dezenas de leis e decretos destinados a
envolver os religiosos em tramas de ordem civil e política, e nunca de
ordem religiosa.
O Cardeal Alexandre Todea, cabeça da Igreja Católica na Romênia, viu a
liquidação da Igreja em 1948. Tornou-se pastor clandestino de seus
fiéis. Em abril de 1952, em Bucarest, o general Nikolki, chefe da
Securitate, chamou-o à sua presença depois que o Cardeal foi descoberto e
preso, e disse-lhe:
“Já que ninguém no século XX morre por causa da sua fé, o Sr. Deve reconhecer que quis aniquilar os comunistas”.
Respondeu-lhe o Cardeal: “Antes disso, posso chamar um psiquiatra?”
- “Para quê?”
- “Para averiguar qual de nós dois é louco: o senhor ou eu?”
O Cardeal foi finalmente condenado à morte “como lacaio do Vaticano e
inimigo do comunismo, constituindo uma ameaça para o novo estilo de
vida que leva ao povo a felicidade”.
2) O martírio incruento… Muitos fiéis foram sujeitos à tortura
física, psíquica e moral mais requintada possível sem chegar a morrer. O
encerramento em campos de concentração, com todo tipo de maus tratos,
podia durar dez, vinte, trinta ou mais anos, exigindo coragem e
tenacidade sobre-humanas. E, apesar de tudo, não lograram o título de
mártires (apesar de terem sofrido crudelíssimos tormentos). Conta um
sacerdote sobrevivente de um campo de concentração:
“Se eu soubesse o que me aguardava no campo de concentração, eu teria
preferido ser fuzilado. Mas, ao contrário, eu me alegrei! Se eu tivesse
sido fuzilado como tantos outros sacerdotes, teria sido um mártir. Hoje
trata-se de beatificar um ou outro deles, e eu, que sofri por muito
mais tempo do que eles, ainda posso cometer desatinos sobre a terra”.
3) Há aqueles que morreram desconhecidos, como vítimas de violência e
maus tratos. Ninguém o testemunhou para poder proclamar seu heroísmo e
sua glória. Não tiveram a graça de confessar frente ao mundo o nome de
Jesus, embora tenham morrido por causa dele.
Os mártires do século XX foram, muitas vezes, ignorados… na Alemanha,
na URSS, na China, em Cuba… Em parte, isto se deu por causa da censura
das notícias que saiam de tais países; não era (nem é hoje ainda)
possível saber o que acontece nos bastidores de um país totalitário. Em
parte, também se deve à onda de secularismo que tem passado pelas nações
em que há liberdade religiosa: o consumismo e o bem-estar têm levado
muitos cristãos a querer atenuar a loucura e o escândalo da fé,
afastando os homens de Cristo e da Igreja.
3. Um caso especial: a Albânia
3.1. A Perseguição
Em 1945 a Albânia tornou-se uma República Popular sob a chefia de
Enver Hoxha, que empreendeu violenta opressão religiosa contra cristãos e
muçulmanos. A Igreja Católica então contava 124.000 fiéis num total de
um milhão de habitantes, mas a sua irradiação ia muito além do número de
fiéis. A perseguição desencadeou-se primeiramente contra os Bispos, os
Religiosos e os missionários estrangeiros; os fiéis que os defendiam,
foram presos, torturados e, às vezes, mortos por recusarem denunciar
publicamente os pretensos crimes do clero. Essa primeira onda
persecutória visava também a cortar o relacionamento do clero com a
Santa Sé mediante argumentos e promessas sedutoras. Os clérigos
resistiram; então Enver Hoxha, a conselho de Stalin, resolveu eliminar
radicalmente a Igreja Católica. Em 1948 só restava um Bispo católico em
vida nas montanhas do Norte do país. Ficavam ainda umas poucas dezenas
de presbíteros, que procuravam atender à Liturgia dominical, passando de
uma paróquia a outra sob a permanente ameaça de encarceramento ou de
execução sumária.
A situação em breve se modificou quando o governo albanês rompeu com a
Iugoslávia; precisava de se consolidar interiormente; daí travar
negociações com a Igreja em busca de um modus vivendi. Em 1951 Enver
Hoxha aceitou firmar um tratado com Mons. Shilaku, reconhecendo os laços
da Igreja na Albânia com Roma. Todavia o texto oficial publicado pelo
governo albanês não correspondeu ao que fora estipulado nas
conversações. Houve então protestos da parte de sacerdotes, que foram
assassinados ou enviados para campos de concentração. Apesar de tudo, o
povo católico não renunciava a viver a sua fé.
Entre 1952 e 1967 a situação se estabilizou entre repressão
governamental e resistência dos fiéis. Todos os anos um sacerdote ou uma
Religiosa morria em prisão ou em campo de concentração. Quem estava em
campo de concentração, era retirado, por vezes, para comparecer a uma
sessão de humilhação pública nas ruas das grandes cidades.
Aos 6/02/1967 Enver Hoxha dirigiu um discurso a toda a nação,
incitando a juventude albanesa a levar a termo a luta “contra as
superstições religiosas”. Os guardas vermelhos da Albânia, à semelhança
dos da China, foram encarregados dessa revolução cultural. As igrejas,
os conventos, as mesquitas foram tomados de assalto, profanados,
saqueados, incendiados, destruídos ou transformados em depósitos, lojas
ou apartamentos. Em oito meses 2169 lugares de culto foram assim
extintos. Aos 22/11/1967, a Gazette, órgão oficial do governo albanês,
publicou um decreto que anulava todos os acordos entre confissões
religiosas e o Estado. A administração dos sacramentos, os rituais e as
preces públicas foram proibidos sob pena de graves sanções. Os últimos
membros do clero e os Religiosos foram presos, espancados em público,
humilhados, intimados a apostar e, na maioria, enviados para campos de
concentração. Não houve, porém, uma única defecção da parte de
sacerdotes católicos.
O governo foi mais além… Pôs-se atacar qualquer objeto, símbolo ou
gesto que pudesse ter significado religioso até mesmo na intimidade da
família. Tenha-se em vista o seguinte caso: os católicos albaneses
costumam iniciar suas refeições tomando um copo de raki, sua bebida
preferida, e levantando a taça com as palavras: “Louvado seja Jesus
Cristo!”. Pois bem, a partir de 1967 tais dizeres podiam custar cinco
anos de prisão. Os(as) professores(as) de escolas maternais perguntavam
às crianças se sabiam fazer o sinal da cruz; caso alguma criança
demonstrasse sabê-lo, os seus genitores eram punidos até com cinco anos
de prisão. Era proibido fabricar terços com grãos de girassol, como
fazem os camponeses de Albânia. Era interditada a Rádio Vaticana, que
todas as noites tinha emissões em língua albanesa. Em 1975 foram
excluídos também todos os nomes que pudessem lembrar a religião:
Benedito(a), Pedro, Paulo, Maria, Joana…
Não obstante, houve famílias que continuaram a transmitir a fé a seus
filhos de maneira secreta. Alguns poucos sacerdotes clandestinos ainda
celebravam os sacramentos às ocultas. Nos campos de concentração, os
padres batizavam os adultos que o desejassem; caso fossem descobertos,
como o foi o Pe. Kurti, eram executados.
Apesar de toda essa repressão religiosa, não se viu surgir o homem
novo albanês exaltado pelos discursos de Enver Hoxha; a vida de fé
prosseguiu clandestinamente, enquanto o país foi afundando na miséria
ainda hoje perceptível.
Uma autêntica filha da Albânia, Madre Teresa de Calcuttá via essa
realidade com olhos confiantes na Providência Divina. Assim, ao receber o
Prêmio Nobel da Paz de 1979, declarou:
“Creio que a Igreja na Albânia está vivendo a experiência de
sexta-feira santa, mas nossa fé nos ensina que a vida de Cristo não
terminou na sexta-feira santa, e, sim, se consumou na Ressurreição.
Nosso povo albanês há de guardar esta verdade na sua mente. Tal é o
segredo da paciência cristã…”
Os primeiros sinais de distensão religiosa ocorreram após a morte de
Enver Hoxha. Mas somente em novembro de 1990 (um ano após a queda do
Muro de Berlim), o Pe. Simon Jubani um dos raros sobreviventes, celebrou
a primeira Missa pública após 1967, correndo ainda o risco da própria
vida. Em breve, porém, pôde batizar uma centena de adultos.
O regime comunista recuou, como nos demais países da Europa, e aos fiéis foi concedida a liberdade de crença.
O regime comunista recuou, como nos demais países da Europa, e aos fiéis foi concedida a liberdade de crença.
Com dificuldade a Albânia procura reerguer-se. Ainda há violência no
interior do país, agravada em 1998 e 1999 pelas guerras nos Bálcãs.
3.2. Algumas das vítimas
1) Cyprian Nika
Cyprian Nika era o padre Provincial dos Franciscanos da Albânia. Após
algumas semanas de cárcere e torturas, foi levado à presença de
oficiais do Estado para discutir sobre a existência de Deus. Disse-lhes:
“Como ser humano pensante, creio que existe algo após esta breve
existência na terra, em que o bem e o mal encontrarão a respectiva
sanção. Algo que ultrapassa os limites da natureza humana, algo de
sobre-humano, de sobrenatural, em que o mal e a injustiça não terão
lugar”. Não lhe foi dado acabar o seu discurso, pois os seus
interlocutores perderam a paciência e puseram-se a injuriá-lo. Um deles
exclamou: “Meu deus é Enver Hoxha!”. O Religioso orou então: “Faça-se a
tua vontade!”. Foi fuzilado pouco depois.
2) Daniel Dajani
Quando andava por uma das ruas da cidade de Shkodër com um dos seus
seminaristas, o Pe. Daniel Dajani foi interpelado por agitadores, que o
insultaram. Continuou a caminhar sem responder. Mas o jovem seminarista,
perturbado, não conseguir recuperar a calma. O Pe. Daniel disse-lhe:
“Caro Lazër, eles vieram com espingardas, mas foram embora com amor”.
Finalmente o Pe. Daniel Foi preso e testemunhou diante dos seus juízes:
“Desde a infância tenho fé e estou pronto a morrer para dar testemunho
da minha fé”. Foi então executado juntamente com Mozafer Pipa, o jovem
advogado muçulmano que o defendera.
3) Ded Macaj
Este jovem sacerdote de 28 anos foi condenado à morte após um
processo simulado. Declarou diante do pelotão que o executou: “Perante
Deus, em cuja presença vou comparecer em breve, e perante vocês, caros
soldados, declaro que sou assassinado tão somente por causa do ódio à
Igreja Católica. E eu o digo sem amargura nem ódio para com aqueles que
me vão fuzilar”.
4) Mikel Betoja
Este jovem sacerdote clandestino foi depreendido a celebrar a Missa
às ocultas numa aldeia. Foi logo condenado a quinze anos de campo de
concentração por motivo de “agitação e propaganda”. Professou então sua
fé em público. Em consequência a sua sentença foi logo trocada pela de
condenação à morte. Executaram-no aos 10/02/74.
5) Ded Malaj
O jovem vigário de Dajç foi fuzilado às margens do lago de Shkodër
por Ter continuado a exercer o seu ministério. Os fiéis que o
defenderam, foram mandados para campos de concentração. Acontece, porém,
que trinta anos depois a aldeia continua fiel à sua fé católica.
6) Leonardo Shajakaj
Sacerdote de 76 anos de idade, recusou dizer o que ouvira em confissão. Foi executado por causa deste “crime” em 1964.
7) Mons. Gjergj Volsj
Fora o mais jovem Bispo do Mundo. Recusou-se a romper com Roma. Foi
então preso e torturado durante meses. Na véspera de ser executado,
recebeu a visita de sua mãe, que chorou. Mas o filho lhe disse: “Mãe,
não chores por causa do teu filho; antes, chora por todo o povo”.
4. O Recenseamento
O Santo Padre João Paulo II nomeou uma Comissão destinada a recensear
e conservar a memória dos mártires do século XX. A tal Comissão foi
confiada uma tríplice tarefa:
- elaborar um catálogo dos mártires do século XX;
- preparar a comemoração desses mártires (marcada para 7/05/2000);
- aprofundar a contribuição espiritual que trouxeram à Igreja.
Já mais de dez mil relatos de martírio ocorrido nos diversos
continentes chegaram a Roma, alguns redigidos em duas linhas, outros em
centenas de páginas; chegaram em cerca de dez línguas diferentes, que é
preciso traduzir para o italiano e passar para o computador num programa
especial de informática. 45% desses relatos vêm de Conferências
Episcopais e 40% de Congregações ou Ordens Religiosas.
Coloca-se uma questão nova a propósito do conceito de mártir: será
mártir somente quem morre por ódio à fé ou pode ser tido como mártir
aquele que passou anos em cárcere ou em campo de concentração, tendo
sofrido cruéis tormentos, mas foi posto em liberdade ainda vivo? Houve,
na realidade, Bispos, como Mons. Velychkovskyj na Ucrânia e Mons. Fishta
na Albânia, que foram libertados da prisão quando estavam gravemente
enfermos por causa das torturas e dos maus tratos e morreram pouco
depois; podem ser equiparados aos mártires no sentido clássico?
As respostas enviadas aos questionários emitidos pela Comissão foram
assaz diversas. Em setembro de 1998, a Igreja da Espanha tinha mandado
2075 relatórios; a da França, dez. Depois a França enviou mais cinquenta
relatórios e a Espanha mais 2000 novos relatórios; a Coréia, 200; a
Polônia, 900. Quanto aos países dominados por governo anticatólico
(Vietnam, China, Sudão…), têm-se manifestado timidamente – o que bem se
entende, dado o controle das autoridades civis.
É de notar ainda que em Jerusalém existe o Instituto Yad-Vashem,
fundado em 1953 para recensear os nomes de pessoas não israelitas que
ajudaram ou salvaram judeus perseguidos, com risco para a sua própria
vida; esses beneméritos recebem o título de “Justos das Nações”, que
“amaram o próximo como a si mesmos”. Na Europa 12000 justos foram assim
reconhecidos e muitos ainda ficam no anonimato. A justificativa
apresentada para a exaltação desses nomes é que “todo aquele que salva
uma vida salva o universo todo inteiro”.
5. O Perdão aos Inimigos
Perdoar ao agressor não é fácil, pois o coração humano tem seus
ressentimentos espontâneos. Apesar disto, quem percorre os relatos de
martírio do século XX observa que muitas vezes o cristão vítima exprime
seu perdão aos carrascos e ora por eles. Eis alguns espécimens
significativos:
No Líbano o jovem Ghassibé Kayrouz foi assassinado quando se
preparava para entrar no Seminário. Numa gaveta de seu quarto, os seus
genitores encontraram um texto escrito na véspera de sua morte, que foi
lido por ocasião do seu enterro:
“Tenho um só pedido a fazer-lhes: perdoem àqueles que me matarem.
Fazei-o de todo o coração, e rogai comigo que meu sangue, mesmo que seja
o sangue de um pecador, seja resgate pelos pecados do Líbano, uma
hóstia misturada ao sangue das vítimas que tombaram, de procedências e
religiões diversas; seja o preço da paz, do amor e do entendimento que
foram perdidos por esta pátria e até pelo mundo inteiro. Queiram ensinar
às pessoas o amor através da minha morte, e Deus os consolará, proverá
às suas necessidades e os ajudará a viver esta vida. Não tenham medo,
não estou pesaroso, nem me sinto triste por deixar este mundo. Só estou
triste porque vocês estarão tristes. Rezem, rezem, rezem e amem seus
inimigos”"
Na Algéria, o Pe. Christian de Chergé, trapista assassinado, escreveu pouco antes da sua morte:
“Quisera, no momento oportuno, ter o tanto de lucidez que me
permitisse solicitar o perdão de Deus e dos meus irmãos, assim como eu
perdoaria de todo o coração a quem me tivesse atingido”.
Na África do Sul, Malusi Mpumlwana, torturado e, depois, rechaçado, disse ao sair da prisão:
“Quando eles me torturavam, eu pensava: são filhos de Deus e
comportam-se como animais. Precisam de que nós os ajudemos a recuperar a
humanidade que eles perderam”.
Em El Salvador, o Pe. Navarro, assassinado aos 11/05/1977 com o jovem Luís (de 14 anos), murmurou antes de morrer:
“Morro porque preguei o Evangelho. Sei quem são meus assassinos. Saibam que lhes perdôo”.
Na Albânia, Mark Çuni foi executado aos 6/03/1946, ao mesmo tempo que o Pe. Dajani e seus companheiros. Eis as suas últimas palavras:
“Perdôo a todos aqueles que me julgaram, condenaram e vão
executar-me. Digam a minha mãe que ela pague os quinze napoleões de ouro
que eu devo a Ludovik Racha. Viva Cristo Rei! Viva a Albânia!”.
Quanto ao Pe. Daniel Dajani, encerrou seus dias dizendo:
“Perdôo a todos os que me fizeram mal…”.
Na Polônia, quando o Cardeal Wyszynski soube da morte do chefe comunista Bierut, que o tinha traído e mandara lançar na prisão, escreveu em seu Diário:
“Nunca mais terei a ocasião de discutir com Boleslaw Bierut. Ele já
sabe que Deus existe e que Ele é amor. Doravante Bierut está do nosso
lado. Solicitarei do Senhor a misericórdia para o meu perseguidor.
Amanhã celebrarei a Missa em sufrágio por ele; desejo absolvê-lo, na
confiança de que Deus encontrará na vida do defunto atos que falarão em
seu favor. Muitas vezes no cárcere rezei por Boleslaw Bierut! Talvez
esta oração nos tenha ligado um ao outro a ponto de ele chamar-me em seu
socorro… Os seus colaboradores talvez em breve reneguem Bierut, como
isto se deu com Stalin. Eu não o esquecerei. O meu dever de cristão o
exige”.
Em Tirana, na Albânia, o Pe. Zef Pilumi, um dos poucos sacerdotes que sobreviveram à perseguição, contou o seguinte:
“Um dia, após o fim da perseguição, um dos meus carrascos veio a esta
casa para pedir-me ajuda. Precisava de submeter-se a uma cirurgia e só o
podia fazer na Grécia. Trazia consigo a sua carteira de trabalho, que
lhe assegurava o salário de aposentado. Disse-me ele que queria dar-me
esse dinheiro, caso eu lhe pudesse pagar a viagem para que fosse
tratar-se no estrangeiro. Resolvi levar isso ao meu Conselho Paroquial.
Todos sabiam que tal homem havia sido meu carrasco. Mas concordamos em
pagar-lhe a viagem até Salônica, sem nada receber do seu salário de
aposentado. Quando ele voltou da Grécia e veio visitar-me, eu lhe disse
que ele nada nos devia; caiu então em prantos. É necessário perdoar,
como pede o Evangelho”.
Na Croácia, o Cardeal Stepinac, vítima dos comunistas, escrevia:
“Que a maldade deles não vos impeça de amar vossos inimigos! Uma coisa é a maldade, outra coisa é o homem”.
Ainda na Albânia o Cardeal Mikel Koliqi, após quarenta anos de campo
de concentração, de cárcere ou de residência vigiada, declarava:
“Não sinto mágoa alguma. Eu lhes digo francamente: não experimento
ressentimento algum. Ao contrário, peço a Deus que perdoa a eles. Para
um cristão, a vingança não tem sentido”.
Ainda se pode citar a Sra. Euguenia Guinzbourg. Narra que os seus
companheiros de campo de concentração se sentiam fortemente tentados a
odiar seus carrascos. Dizia-lhes então:
“Assim procedendo, cairemos num círculo vicioso. Vejam! Eles contra
nós, nós contra eles, e de novo eles contra nós… Até quando há de durar o
círculo vicioso do ódio? Vamos Ter que sustentar ainda e sempre o
triunfo do ódio?”.
Vejamos agora algumas das mais brilhantes figuras de mártires do século XX, além das que examinamos até agora.
6. Outros heróis da fé
Enumeraremos ainda sete vultos dignos do nome de cristãos.
6.1. São Maximiliano Kolbe (+ 1941), franciscano polonês
Era franciscano conventual quando foi levado para o campo de
concentração de Auschwitz. O Caso é particularmente interessante, pois
Fr. Maximiliano não morreu diretamente por ódio à fé, mas porque se
ofereceu para morrer em lugar de um pai de família, terminando assim os
seus dias no Bunker (subterrâneo) da fome. O caso foi examinado pelos
peritos da Igreja: verificaram que a morte de Frei Maximiliano fora
consequência da sua caridade e não da sua fé; por isto Paulo VI o
beatificou na qualidade de confessor da fé ou zeloso pastor, não de
mártir; havia, sim, praticado a virtude em grau heróico e, em
consequência, morrera. A causa continuou a ser examinada sob João Paulo
II, de modo a chegar à seguinte conclusão: Frei Maximiliano, se não
morreu por causa da fé, morreu por causa de uma virtude (a caridade)
associada à fé; por isto seu caso entra na definição de mártir e, como
mártir, foi canonizado em 1982. O fato se justificava claramente: sim, o
martírio é a suprema prova de amor a Deus,… amor este que Frei
Maximiliano vivenciou de maneira perfeita, impelido pela fé, quando quis
tomar o lugar de um pai de família condenado à morte; doando sua vida,
tornou-se mártir da caridade, ou seja, testemunha do absoluto amor de
Cristo.
6.2. Franz Jägerstätter (+ 1943), leigo austríaco
Nascido em 1907 na Áustria, Franz levou uma vida dissipada durante a
juventude. Finalmente descobriu a grandeza da mensagem católica. Por
ocasião do Anschluss (anexão da Áustria à Alemanha nazista), foi o único
de sua aldeia que teve a coragem de votar contra Hitler. Em 1939,
quando estourou a Segunda guerra mundial, declarou que não se alistaria
no exército de um regime ateu e anticristão. Apesar de tudo, foi
recrutado para combate, mas recusou-se ao porte de armas. Foi
encarcerado e resistiu denodadamente a toda pressão nacional-socialista.
Aos 6 de julho de 1943 foi transferido para uma prisão em Berlim e
condenado à morte por Ter rejeitado uma proposta nazista que lhe
salvaria a vida. Foi decapitado aos 9 de agosto de 1943.
6.3. Isidoro Bakanga, leigo congolês
No começo do século XX no Congo um jovem aprendiz de pedreiro
descobriu o Cristo anunciado pelos missionários. Tornou-se catequista
convicto e irradiou a sua fé. A sua conduta de vida incomodava os homens
corruptos que se valiam do Evangelho para explorar seus conterrâneos. O
gerente de uma firma colonial mandou espancá-lo até que morresse.
Isidoro faleceu perdoando aos seus carrascos. João Paulo II declarou-o
bem-aventurado em 1994.
6.4. Ghassibé Kayrouz (+ 1985), leigo maronita libanês
Ghassibé Kayrouz nasceu no Líbano na aldeia de Nahba (província de
Bekaa), em que cristãos e muçulmanos viviam em boa paz desde muito
tempo. Impressionado pela guerra civil no seu país, entrou na Companhia
de Jesus e dedicou-se a apaziguar os ânimos dos compatriotas agressivos.
Percebeu que esta missão podia custar-lhe a vida e, por isto, ainda
jovem, antes do Natal de 1984, escreveu um testamento em que exprimia a
sua fé católica e perdoava de antemão a quem o matasse. Assim ofereceu
sua vida por todos os libaneses (muçulmanos e cristãos); dizia: “No céu
não terei repouso enquanto a situação permanecer tal no Líbano”. Foi
assassinado alguns dias mais tarde.
Pouco depois Nicolas Kluiters, um Religioso holandês que seguira
Ghassibé em sua caminhada espiritual, foi degolado e lançado num poço de
97m de profundidade.
6.5. John Bradburne, leigo do Zimbabwe (África)
Nascido em 1920, da família anglicana, no Zimbabwe, John tomou parte
heróica na Segunda guerra mundial. Resolveu fazer-se católico e
consagrar toda a sua vida à procura de Deus. Durante quinze anos levou
vida de peregrino pelas estradas da Europa. Chegou assim até Jerusalém.
Tocava flauta e compôs dezenas de milhares de versos em honra da Virgem
Maria. Queria ir aonde Deus o chamasse.
Em 1962 voltou para a África, onde queria viver solitário, como
eremita. Mas deparou-se com colônias de leprosos, que lhe mudaram o
curso da vida. Decidiu dedicar-se a eles, apesar dos diversos obstáculos
que encontrava. Era, por uns, tido como louco inofensivo; por outros,
como um Santo. A guerra civil estourou no Zimbabwe; então John e uma
médica italiana resolveram ficar com os leprosos. A presença e o
testemunho de fé cristã desses dois mensageiros incomodava a quem os via
de modo que foram assassinados.
6.6. Daphrosa e Cipriano Rugamba, leigos de Rwanda, 1994
Durante o genocídio de Rwanda em 1994, o casal católico Daphrosa e
Cipriano muito se empenhou pela reconciliação de Hutus e Tutsis.
Cipriano era um artista conhecido. O casal, com seus seis filhos, foi
indicado como alvo aos atiradores, que os mataram quando estavam em
adoração diante do Ssmo. Sacramento.
6.7. Jesus Jiménez, leigo de El Salvador, 1979
Jesus Jiménez nasceu em El Salvador, de família camponesa. Era muito
dado à leitura da Palavra de Deus e à adoração da Eucaristia. O seu
pároco, o Pe. Rutilio Grande, confiou-lhe a orientação de uma comunidade
eclesiástica de base em 1973. Em breve, porém, estourou a guerra civil e
o Pe. Rutilio Grande foi assassinado pela Guarda Nacional. Jesus
Jiménez procurou então coordenar as comunidades duramente provadas pela
guerra civil, a todos levando o reconforto do Evangelho. A 1º de
setembro de 1979 foi assassinado quando voltava de uma reunião pastoral.
Contava 32 anos e era pai de quatro filhos. O seu cadáver foi pendurado
numa haste e lançado no corredor de um presbitério.
7. Domingo 7 de maio de 2000
A Comissão nomeada pelo Santo Padre preparou uma celebração ecumênica
das vítimas da fé no século XX. Deve realizar-se no Coliseu de Roma, em
presença do Papa. Os representantes do catolicismo e de ramos cristãos
dissidentes reunir-se-ão em número tão avultado quanto possível, para
participar dessa cerimônia, cujo programa é assaz denso. Serão
publicados em voz alta os catálogos de vítimas das diversas comunidades
cristãs; far-se-á o gesto simbólico de transmitir a memória dos mártires
à primeira geração do terceiro milênio; será evocada a diversidade dos
testemunhos de fé das várias culturas, nações, situações e estados de
vida. Comparecerão e serão vivamente saudados alguns grandes confessores
da fé, sobreviventes da tremenda tribulação. Por fim, falará o Papa
sobre o século XX, no qual voltaram os mártires, e voltaram com
eloquência singular.
O próprio Santo Padre justifica e comenta este tipo de celebração ao escrever:
“O testemunho corajoso de numerosos mártires do nosso século,
incluídos aqueles que são membros de outras Igrejas e comunidades
eclesiais que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica, dá ao
apelo conciliar uma força nova; recorda-nos a obrigação de acolher a sua
exortação e de a pôr em prática. Nossos irmãos e nossas irmãs, que têm
em comum a oferenda generosa de sua vida em prol do Reino dos céus,
atestam da maneira mais eloquente que todos os fatores de divisão podem
ser ultrapassados no Dom total de si mesmo pela causa do Evangelho”
(Enc. Ut Unum Sint).
Uma figura muito expressiva de fidelidade à fé (ortodoxa)¹ é a do Pop
(Padre) Alexandre Min, russo, cujos traços biográficos são os
seguintes:
Nasceu em Moscou aos 22/01/1935, de família israelita. Foi batizado
clandestinamente com sua mãe na comunidade ortodoxa, tendo oito meses de
idade. Foi excluído da Universidade por causa de sua fé cristã.
Continuou, porém, a estudar e foi ordenado presbítero.
Durante vinte e cinco anos acompanhou a nova geração de jovens
soviéticos, procurando apontar-lhes o sentido da vida. Levou centenas de
jovens a descobrir Cristo e a Igreja. Escreveu algumas obras que
abordam aspectos da fé e da vida no mundo atual e que circulavam em
samizdat (clandestinamente) por toda a URSS. Foi submetido a
interrogatórios múltiplos por parte da KGB, que lhe propôs sair da URSS,
sem que Alexandre o aceitasse.
A partir de 1988, aparece ª Min projetado no cenário público. Exerce
grande influência e parece chamado a desenvolver papel mais amplo no
surto religioso da Rússia pós-soviética. Foi isto, sem dúvida, que
provocou o seu bárbaro assassinato a golpes de machado aos 9/09/1990.
Todavia a obra por ele iniciada foi assumida e levada adiante por seus
filhos e filhas espirituais.
Possa o testemunho de tantos mártires do século XX lembrar aos
cristãos da atualidade que pertencem a uma família de heróis, que,
aliás, tem suas origens no século I e deve continuar a ser valente e
nobre passando pela geração contemporânea!
¹ Os ortodoxos são cristãos que se separaram da Santa Sé de Roma em
1054 por motivos disciplinares e culturais mais do que por razões
teológicas. Professam quase o mesmo Credo que os católicos. Têm a
sucessão apostólica, o sacerdócio e a Eucaristia válidos.
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 456, Ano 2000, Pág. 194.
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 456, Ano 2000, Pág. 194.
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