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14/03/2014
Por Maria Clara Lucchetti Bingemer*
Na caminhada para uma vida espiritual mais intensa e profunda, sempre precisamos de um guia: alguém — homem ou mulher — que atue como um irmão mais velho, com mais experiência e que possa ajudar-nos a ir em direção ao ideal com o qual sonhamos e que nos é proposto.
Uma das conversões mais difíceis de realizar e tornar efetiva é perdoar os outros. E quando digo perdoar, penso não apenas nos inimigos ou nos que nos ofendem. Penso também nas pessoas queridas que, às vezes, não nos entendem e por isso mesmo têm mais poder de machucar-nos e ferir-nos. Ou nas pessoas próximas, colegas, amigos que, ocasionalmente, com uma palavra impensada, ou uma atitude repentina, cravam no fundo de nossa alma uma fonte de dor que nunca pensávamos poderia doer tanto.
E como perdoar é essencial para tudo — saúde física e mental, bom funcionamento do coração, bom desempenho vital em todas as dimensões —, tomemos aqui a mão e a sábia condução de um irmão mais velho: o místico, profeta e mártir Christian de Cherge, prior de Tibhirine, sequestrado e assassinado juntamente com toda a sua comunidade no ano de 1996. Talvez muitos se recordem de sua figura magistralmente representada no filme Homens e deuses pelo grande ator francês Lambert Wilson.
Mas há muito mais que o prior pode ensinar, para além do filme e de um primeiro encontro com sua pessoa. Mergulhar em seus escritos é um salto profundo e arriscado nos abismos do amor de Deus que não conhece limites e não teme desafios. Christian vivia momentos que o obrigavam a refletir muito sobre o perdão e a praticá-lo. Sabia que seu mosteiro estava ameaçado, que o grupo radical islâmico que estivera ali na véspera de Natal poderia voltar a qualquer momento. Cada dia recebia notícias de religiosos assassinados, atacados. Sentia que a morte se aproximava e sabia que teria de enfrentá-la.
Como responder ao ódio e à violência com amor e não violência?
Diante disso, como realizar a entrega total de sua vida já dada desde a entrada no mosteiro de Tibhirine, nas montanhas da Argélia, de acordo com o evangelho de Jesus? Como responder ao ódio e à violência com amor e não violência? Como ter uma atitude genuína e não ingênua de perdão àqueles que seriam os que levariam a cabo sua morte e a de seus irmãos? É aí que este mestre espiritual vai ensinar-nos muito sobre o perdão.Três semanas antes de ser sequestrado, pregou um retiro durante o qual deixou a seguinte recomendação aos monges de sua comunidade: "Não matarás": não matar a si mesmo, não matar o tempo (que é de Deus), e não matar a confiança, não matar a própria morte (por banalizá-la), e não matar o país, a outra pessoa ou a Igreja. Há cinco pilares da paz: a paciência, a pobreza, a presença, a oração e o perdão”.
Em seu diário escreve questionando a concepção tradicional de martírio por lhe parecer que instaura uma discriminação em relação ao outro que não seria puro diante do mártir que, esse sim, teria essa pureza: "Jesus purifica, com efeito, mas através do amor. Para aquele que não é puro, ele ainda diz: "Amigo". O único possível martírio é o do amor. "O testemunho de Jesus diante da morte, o seu "martírio" é o martírio de amor, de amor pelo ser humano, por todos os seres humanos ... E o martírio de amor inclui o perdão.
E coerentemente, enquanto a ação dos terroristas que a cada dia matam mais pessoas, sobretudo cristãos, fala contra o islã o amor do prior por essa religião, só cresce. Não em um sentimento místico alienado, que se projeta para além dos conflitos históricos. Ele também assume os fatos, já que sabe que Deus não é estranho à história humana. E aceita os riscos do presente. É o que dá força ao seu testemunho. E consistência ao perdão antecipado com o qual carrega seus algozes no coração.
O testamento de Christian de Cherge — um dos textos espirituais mais importantes do século 20 — é certamente a concreta demonstração de que ele estava consciente de seu destino, e o encarava em profunda comunhão com seus irmãos e com seu Mestre Jesus Cristo. E incluía nesta comunhão todos os seus irmãos e irmãs do islã, que nunca deixaram de ter um lugar especial em seu coração. Entre estes está aquele que será o responsável último por sua morte. Assim o demonstra um trecho deste testamento que aqui transcrevemos.
“Nesse OBRIGADO em que tudo é dito, agora, de minha vida, eu vos incluo seguramente, amigos de ontem e de hoje, e vós, oh amigos daqui, ao lado de minha mãe e de meu pai, de minhas irmãs e de meus irmãos e dos seus, cêntuplo concedido como era prometido!
E a você também, o amigo do último minuto, que não terá sabido o que fazia. Sim, para você também eu quero esse OBRIGADO, e esse “A-DEUS” em cujo rosto eu contemplo o seu.
E que nos seja concedido reencontrar-nos, ladrões felizes, no paraíso, se agradar a Deus, nosso Pai, meu e seu. AMÉM!
Incha Allah!”
Que neste tempo de conversão possamos aprender com esse mestre e mistagogo, que é Christian de Cherge, a difícil e bela arte do perdão.
* Maria Clara Lucchetti Bingemer,
teóloga e professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da
PUC-Rio, é autora de vários livros como 'Um rosto para Deus' (Ed.
Paulus) e 'O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de
descrença' (Editora Rocco). - agape@puc- rio.br
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