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Quem se horroriza com a versão roqueira de Cristo ignora a tradição da arte renascentista de atualizar as cenas da Paixão
Por Verissimo
Tem havido protestos de grupos religiosos contra a reencenação de
“Jesus Cristo Superstar”, em São Paulo. Pensei que essa guerra já
tivesse terminado, na ingênua suposição de que até as mentes mais
obscuras, com o tempo, se iluminam — ou pelo menos se dão conta do seu
ridículo. A ópera-rock de Andrew Lloyd Webber e de Tim Rice já tem quase
50 anos. Deu um belo filme de Norman Jewison, e é um relato emocionante
dos últimos dias de Jesus Cristo que deve ter motivado mais jovens a se
interessar pela sua história do que qualquer catecismo da Igreja.
Quem
se horroriza com a versão roqueira de Cristo ignora a tradição da arte
renascentista de atualizar as cenas da Paixão, representando-as com
roupas e interiores da época dos artistas, sem que isto fosse
considerado blasfêmia e provocasse protestos. Há alguns anos a Igreja
conseguiu que fosse proibida a exibição no Brasil do filme “Je vous
salue, Marie”, do Jean-Luc Godard. Motivo: uma versão moderna da Virgem
Maria aparecia com os seios nus. Ignorada pelos ignorantes, no caso, foi
outra tradição da arte religiosa, a das virgens lactantes, que aparecem
em várias pinturas com os seios à mostra amamentando o menino Jesus. No
seu filme, Godard humanizava a figura de Maria e trazia para
atualidade, e para uma reflexão intelectual adulta, o mistério de dogmas
como o da Anunciação e o da Concepção Imaculada. De novo, uma expressão
da experiência religiosa muito mais consequente e inspiradora do que a
retrógrada instrução das igrejas.
INJUSTIÇA
Andrew
Lloyd Webber e seu colaborador Tim Rice são figuras curiosas. As letras
de Rice são consideradas melhores do que as músicas de Lloyd Webber, mas
são as melodias deste que colam na memória. Os dois revolucionaram o
teatro musical com espetáculos como “Jesus Cristo Superstar” e “O
fantasma da ópera”, mas não eram muito considerados no meio. Era até
prova de mau gosto musical revelar uma admiração por Lloyd Webber, e
quanto mais sucesso ele fazia, mais crescia a resistência. Desde que
acabou a parceria com Rice, Lloyd Webber anda meio por baixo. Seu último
musical foi um fracasso, em Londres. Mas acho injusta a crítica que lhe
fazem, de pouca sofisticação, em contraste, por exemplo, com um Stephen
Sondheim. Ele fez pelo menos dois musicais extraordinários, o acima
citado “Superstar” e “Evita”, que é teatro político quase ao nível de um
Brecht. E o que Alan Parker fez da peça no cinema, com a Madonna no
papel de uma convincente Evita, está na minha lista dos filmes mais
subapreciados da História.
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