ihu - "Tentar decifrar a mente de um papa é algo perigoso de se
fazer, especialmente quando ele está abordando um tópico altamente
controverso tanto na vida da Igreja quanto na vida civil", escreve, John Langan, professor da disciplina de Pensamento Social Católico do evento anual de palestras Joseph Cardinal Bernardin, na Universidade de Georgetown, em artigo publicado pela revista America, 10-03-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Até recentemente o lugar em que a Igreja Católica se
encontrava a respeito da homossexualidade era considerado óbvio. A
postura da Igreja para com a comunidade de gays e lésbicas e com suas
atividades distintivas era vista como negativa, levando a julgamentos e
condenações. De importância decisiva foi o juízo moral negativo sobre os
atos homossexuais como sendo intrinsecamente mau. Muito embora o
magistério distinguisse entre os atos homossexuais e uma inclinação
homossexual, o mal moral intrínseco dos fatos significava que, embora
não constituindo a orientação sexual um pecado em si, ela representava
uma inclinação para cometer coisas pecaminosas e, assim, precisava ser
combatida.
Até pouco tempo a Igreja nos EUA resistiu fortemente ao movimento de legalização dos casamentos homoafetivos,
argumentando que isso iria legitimar atos homossexuais intrinsecamente
maus, traria efeitos muito negativos para a instituição do casamento e
representaria graves ameaças à liberdade religiosa. Comentários recentes
feitos pelo Papa Francisco publicados nesta revista [America] e em outras implicam que este assunto pode ser mais complexo do que parece. Em diversas ocasiões Francisco
declarou não ter desejo de desafiar ou alterar a doutrina moral
católica sobre sexualidade ou de inovar a doutrina da Igreja. Ele
provavelmente não quer se contradizer nem contradizer a longa tradição
da doutrina católica sobre este assunto, que possui raízes bíblicas e
que tem formatado as normas jurídicas na maioria dos países ocidentais
há muito tempo. Então, o que pretende o papa?
Tentar decifrar a mente de um papa é algo perigoso de se fazer,
especialmente quando ele está abordando um tópico altamente controverso
tanto na vida da Igreja quanto na vida civil. O que um filósofo moral,
amigo e admirador, pode fazer é ler suas palavras e seus atos e oferecer
sugestões sobre como interpretá-los de maneira que formem uma imagem
coerente. Isso é algo que deveria ser feito antes que as pessoas
comemorassem ou condenassem o que o papa vem dizendo. É importante ter
presente que sobre este assunto o papa não está usando os meios comuns
de apresentar e desenvolver a doutrina da Igreja, o que normalmente
seria feito via discursos formais, comunicados por autoridades vaticanas
e, numa forma mais duradoura, via cartas encíclicas.
Uma forma de caracterizar o que o papa está fazendo é dizer que ele
está nos provocando a pensar sobre como deveria ser a postura da Igreja
em relação à homossexualidade, em vez de enfatizar como ela geralmente
foi. Ora, a palavra “postura”, embora usada bastante no dia a dia, não é
um termo teológico. Os teólogos e a maioria dos bispos falam sobre
ensinos e doutrinas da Igreja, normas e princípios, juízos e conclusões
morais. Baseando-se no raciocínio jurídico e na filosofia moral, visam
conclusões que possam ser aplicados, de forma consistente, em uma ampla
gama de casos.
Um ponto de partida imediato é a condenação dos atos homossexuais
como intrinsecamente mau. Esta abordagem é racionalista em vez de ser
experiencial, embora aqueles que empregam-na possam se utilizar da
experiência para sustentar seus argumentos. Para o racionalista moral,
não há necessidade de se encontrar com as pessoas que realizam estes
atos a fim de saber o que elas vivenciam/experienciam ou o que estes
atos significam para elas mesmas. Isso não quer dizer inexistir fatores
emocionais em jogo na condenação que fazem. Estes fatores podem ser
mantidos em segundo plano, porém podem ser bastante poderosos.
Durante muitos anos um conjunto poderoso de forças deu forma à abordagem racionalista. Houve proibições jurídicas contra a atividade homoafetiva;
especialistas em psicologia viam este assunto como uma forma de
desenvolvimento bloqueado ou incompleto; as pessoas relutavam em
reconhecer esta inclinação nelas próprias ou nas famílias e entre
amigos. A homossexualidade era considerada vergonhosa, desonrada, perigosa e pecaminosa. Era algo a ser evitado, marginalizado e condenado.
Durante uma geração, este conjunto severamente negativo de
julgamentos sociais e de práticas foi atacado. Agora se aproxima de um
colapso em grandes regiões do mundo, embora esteja vivo e dinâmico em
muitas outras partes. Em uma inversão quase completa, a opinião pública
nos Estados Unidos e em muitos países ocidentais se modificou a tal ponto que a homofobia
se tornou, agora, a realidade a ser ocultada e negada. A visão
tradicional é agora amplamente considerada como vulnerável, embaraçosa e
pouco convincente. Ela não mais serve como norma que precisa somente de
aplicação rigorosa e de engajamento para alcançar a plena aceitação.
A resposta da Igreja
Face a uma mudança tão perturbadora na sociedade, o que a Igreja Católica irá fazer? Se a oposição inflexível à homossexualidade
provavelmente não irá produzir resultados positivos numa época em que a
influência da Igreja na sociedade em geral está em declínio, a doutrina
tradicional deveria ser abandonada? Isso seria covardia, especialmente
perante o caráter muitas vezes admirável da resposta crítica da Igreja a
muitas atitudes e práticas predominantes na sociedade ao longo dos
séculos. Os bispos estão certos ao insistir que a doutrina da Igreja não
deve ser determinada por pesquisas de opinião ou por resultados
eleitorais. No entanto, seria equivocado pensar que tais mudanças na
percepção pública não levantem dificuldades sérias, o que seria perigoso
para os cristãos ignorar. É pouco provável que um bem durável possa
sair de alguma postura a respeito de questões humanas que, com efeito,
diz: “Sabemos o que sabemos; o que não sabemos não vale a pena aprender;
e não vale a pena ficar pensando sobre o que contradiz o que pensamos
saber”. Tal postura é incompatível com a colaboração harmoniosa entre a
fé e a razão que o Papa Bento XVI viu como uma forte característica do catolicismo.
O que parece ser necessário é ter um tempo de reflexão crítica sobre a
tradição para esclarecer quais forças devem ser preservadas e quais
continuidades devem ser reafirmadas, mesmo durante a busca pelas fontes
das limitações no ensino, na doutrina, e no reconhecimento do
desenvolvimento de novas questões e problemas. Reflexões críticas também
devem ser dirigidas à opinião pública e àqueles que a moldariam rumo a
uma nova direção, os quais que muitas vezes abrigam visões ingênuas,
incoerentes e imaturas, mesmo quando se consideram bem informados e
progressistas. Estes dois tipos de reflexão crítica requer tempo e apoio
para pesquisa e diálogo cuidadoso, que avaliarão o que se sabe e o que
não se sabe, o que se espera e o que se teme. Há uma necessidade em
curso de se coordenar pesquisas e informações nos campos da biologia,
medicina, ciências sociais ética bem como de se observar seriamente o
desenvolvimento de doutrinas cristãs, e de outras religiões, sobre este
assunto ao longo dos séculos.
Uma “postura”, em contraste com crenças ou posições teóricas,
normalmente traz consigo a percepção de que outros fatores estão em
jogo. Ela envolve uma resposta a posições ou movimentos no mundo social e
intelectual mais amplo, e não meramente respostas a argumentos e
críticas publicadas em revistas acadêmicas. Adotar ou modificar uma
postura fornece uma oportunidade para avaliar outros fatores além de um
juízo específico sobre a correção ou erro moral de um ato. Pode-se
considerar alternativas à postura e pensar sobre como os outros
responderão a ela. Pode-se considerar os fatores de mudança no contexto
social. Pode-se reconhecer os limites do conhecimento e dos argumentos.
Há sinais de que o Papa Francisco esteja no processo
de pensar neste sentido. Ao assumir uma opinião crítica da postura
anterior, não se precisa abandoná-la. Ao se mudar de postura, mesmo que
seja uma que fora sustentada amplamente e que é profundamente
persistente, não necessariamente se estará mudando ou revertendo a doutrina da Igreja. Na verdade, Francisco
disse, repetidas vezes, que ele não pretende mudar a doutrina da
Igreja. Isso frustra muitos jornalistas e defensores da mudança; mas
ignorar o que ele afirma levará a frustrações mais sérias e duradouras.
Há também o risco de que tanto aqueles que anseiam por uma transformação
radical da doutrina católica sobre a homossexualidade quanto os que
temem uma mudança nesse sentido podem perder de vista a postura mais
perspicaz e compassiva que o papa parece estar decidido a introduzir.
Podem julgá-lo por critérios que sejam apropriados para atividades
jurídicas, políticas e jornalísticas, mas que iriam distorcer o caráter
da relação pastoral da Igreja com aqueles a quem ela é chamada a
ministrar.
A humildade importa
Quatro novos elementos deveriam marcar uma nova postura para com a comunidade homossexual e a homossexualidade.
Em primeiro lugar está a humildade. Devemos
reconhecer o que não sabemos e o que não entendemos sobre a situação
contemporânea dos homossexuais. Esta é uma questão importante tanto para
os defensores de estilos alternativos de vida quanto para os
tradicionalistas sociais e religiosos. A humildade é especialmente
necessária na medida em que exploramos as questões difíceis sobre como
entender as causas das inclinações e ações homossexuais e como a herança
biológica, as experiências históricas e escolhas pessoais se relacionam
na formação da orientação sexual. Questões difíceis também cercam as
consequências sociais de se aceitar juridicamente as uniões homoafetivas,
especialmente os efeitos de uma tal política na instituição “casamento”
nas sociedades ocidentais. A humildade é pertinente não apenas no
debate sobre assuntos sociais em geral, mas também nos ambientes
familiares e de amigos bem como nos lugares de decisão para procurar e
oferecer aconselhamento e cuidado a indivíduos que estão incertos e
angustiados sobre a homossexualidade em si próprios e nos outros.
Em segundo lugar, temos que mostrar respeito pela
dignidade dos indivíduos homossexuais como criaturas do único Deus e Pai
de todos nós, como membros da comunidade dos redimidos e como cidadãos
conterrâneos da cidade e do mundo. A afirmação das opiniões tradicionais
precisam acontecer dentro de uma ética de diálogo e deve ser marcada
por civilidade, compaixão e caridade. Os desejos de que os homossexuais
deixem de existir, ou de que eles deveriam desaparecer do espaço
público, ou ainda de que leis deveriam ser promulgadas de forma a negar
os direitos humanos
a eles, são simplesmente inaceitáveis. Exatamente porque as
divergências sobre as avaliações morais dos atos homossexuais e sobre o
futuro das instituições sociais relevantes são reais e profundamente
sentidas é que se faz necessário praticar atitudes morais que
sustentarão o diálogo ao longo do tempo. Isso ajudará a aproximar os
defensores da mudanças e os tradicionalistas. Essa atitude também
conteria a zombaria e a difamação das pessoas que, num espírito de
honestidade e fidelidade, honram valores sociais tradicionais. Pois na
Igreja somos chamados a mostrar caridade e tolerância mútua em lugar de
nos apresentarmos como os mestres vitoriosos na guerra cultural.
O fardo maior fica com aqueles que, conscientemente ou não, têm sido influenciados em suas atitudes e reações pela homofobia, pelo medo e ódio dos indivíduos e dos atos homossexuais. Isso pode se manifestar pelo bullying
no pátio da escola, em brincadeiras maliciosas e na violação de
privacidade, em chantagens e em violências psicopatas. Muitos dos
críticos da doutrina da Igreja sobre a sexualidade sofreram feridas a
partir da homofobia praticada, às vezes com a conivência de membros da
Igreja ou, o que é pior, com a aprovação deles. Por todas estas ofensas
contra nossos irmãos e irmãs, há a necessidade de arrependimento e
conversão. Na medida em que nos voltamos para o futuro, há a necessidade
correspondente de um olhar crítico para com aqueles que se oferecem
como aliados contra as agendas pró-gays e lésbicas.
Em terceiro lugar, todas as partes precisam mostrar
realismo ao reconhecer os problemas de percepção e confiança que
complicam nossos esforços em compreender e colaborar uns com os outros.
Devemos estar atentos aos desafios do comportamento maduro e responsável
que a sexualidade apresenta a todos nós,
independentemente de nossa orientação. Há uma necessidade profunda pelo
realismo ao reconhecer as ambiguidades que marcam nossas histórias,
tanto pessoais quanto sociais. O juízo de Deus provavelmente não irá se
render a uma simples divisão entre ovelhas heterossexuais e bodes
homossexuais, já que a criação dele não produz indivíduos que permanecem
constantemente num lado desta divisão. A expulsão daqueles com
diferenças sexuais dos recintos sagrados Igreja e o
expurgar de seus atos e dons de nossa memória institucional podem
expressar um ódio do mal intrínseco, mas também carrega consigo uma
negação efetiva da humanidade comum. Não devemos apenas ser caridosos
com os outros, mas também honestos com nós mesmos. O autoentendimento
realista leva ao abandono da hipocrisia; o autoentendimento realista dos
outros prepara o caminho para a aceitação em comunidade. Considerar
seriamente as comunidades nas quais participamos irá revelar uma
tapeçaria complexa onde as linhas multicores do arco-íris capturam e
refletem a luz, aumentam em esplendor e em extensão, e que deve ser
recebida com gratidão.
O realismo também envolve reconhecer que o desenvolvimento moral, pessoal e espiritual ao qual todos somos chamados em Cristo
não é idêntico a alguns tipos de consistência jurídica ou filosófica ou
mesmo com a ortodoxia doutrinária. Por outro lado, também não deve ser
definida como a resolução da orientação sexual de alguém. Estas duas
distorções envolvem uma redução da pessoa humana a um ou mais aspectos
favorecidos do que é uma realidade mais rica e mais complexa. Elas
também envolvem a substituição de uma realização imediata e verificável
para o movimento da alma em direção ao Outro transcendente na fé, na
esperança e na caridade.
Em quarto lugar, durante este período de exame
detalhado e reavaliação, precisamos ser pacientes com nós mesmos, com o
outro e com os amigos e apoiadores dos grupos contestadores tanto no
cenário público quanto na vida da Igreja. As tarefas de peneirar
argumentos, modificar leis e arranjos institucionais, remodelar as
expectativas pessoais e sociais e examinar os efeitos das mudanças
quando elas forem propostas e entrarem em vigor são coisas que acontecem
melhor ao longo dos tempos. O processo de aprendizagem, de escuta, de
revisão, de começar de novo e encorajar os participantes de todos os
lados, em todos os níveis, consome quantidade enorme de tempo e energia.
Nos Estados Unidos e em outros países, o processo inteiro será conduzido à sombra da crise de abusos sexuais,
que continuará sendo uma fonte contínua de suspeitas, medo e acrimônia.
O desejo marcadamente americano por resultados rápidos e sem
ambiguidades encurtará a paciência necessária que se deve ter aqui bem
como dificultará a sua sustentação. Temos que ter em mente que o direito
e a opinião pública nos Estados Unidos agora entendem e tratam as relações homoafetivas entre adultos consentidos e o abuso sexual de menores e pessoas vulneráveis como realidades significativamente diferentes.
Valores sexuais
A nova postura a respeito do tema da homossexualidade deveria abrir possibilidades para a afirmação da dignidade humana dos homossexuais. Ela deveria também reconhecer a necessidade de gays e lésbicas
por uma forma adequada do ministério pastoral e afirmar uma
continuidade de valores-chave numa situação social grandemente
modificada. Por exemplo, o ensino e a prática tradicional da Igreja
apresentam a fidelidade e a fecundidade como dois dos grandes bens
estreitamente relacionados com a atividade sexual. Os críticos da
prática homoafetiva têm sido honestamente incapazes de ver o lugar de
continuidade para estes valores em uniões como estas. O desejo de alguns
homossexuais de adotarem filhos bem como o desejo de
outros tantos em estabelecer uniões permanentes podem ser vistos como
provas do poder de atração destes valores tradicionais, mesmo se eles
estão sendo alcançados de maneiras anteriormente inaceitáveis.
Avaliar a possibilidade de os homossexuais
alcançarem estes valores de forma sustentável nos obriga a irmos além
dos atuais argumentos sobre direitos iguais e proteção igual para as
preferências pessoais e a olharmos cuidadosamente as vidas reais e o
modo como os valores estão sendo articulados e praticados. Isso pode ser
uma forma de se defender o casamento tradicional. Mas também uma forma
de obrigar os proponentes do casamento homoafetivo a reconhecerem a
incompletude desta abordagem e de seus argumentos. Boas intenções ou
declarações sinceras não constituem garantias efetivas de fidelidade
duradoura. A mudança principal não estaria na doutrina da Igreja sobre a aceitabilidade moral da atividade homossexual,
mas na afirmação e prática do ministério pastoral a indivíduos
engajados em uniões irregulares e questionáveis. O ministério seria
conduzido num espírito mais cauteloso e inquiridor; estaria mais
interessado em fornecer cuidado e em encorajar o crescimento das pessoas
do que implementar políticas dentro de estruturas burocráticas e
jurídicas.
Aqui podemos aplicar a metáfora favorita do Papa Francisco:
aqueles que conduzem o ministério fariam como os médicos num hospital
de campanha. Eles procederiam de um desejo genuíno de compreender as
aspirações pessoais e espirituais dos indivíduos em seu trato em vez de
simplesmente repetir o equivalente a um diagnóstico fatal, que é como a
confiança repetida na noção de “mal intrínseco” provavelmente será
percebida. Não se trata de uma proposta para se julgar as inúmeras
questões hoje sob disputa, nem de um programa teológico para se resolver
os problemas na implementação das mudanças nesta região problemática da
teologia e da prática católicas. O que aqui apresentamos, todavia, pode
servir como um modelo parcial para abordar problemas semelhantes em
áreas onde os cristãos católicos vêm colocando mais energia na denúncia
do que no diálogo, onde as disjunções e fraturas vêm crescendo em escala
e em níveis letais. Talvez isso seja melhor concebido como uma proposta
para o mural, para quadro de informações, do hospital de campanha.
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