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Francisco vive desafios semelhantes àqueles que João XXIII, com tanto acerto, enfrentou.
Por Juan José Tamayo*
Poucos dias depois da eleição de Francisco, começaram as comparações
do papa argentino com Bento XVI e João XXIII: com o primeiro, destacando
as diferenças; com o segundo, as semelhanças, que voltaram a se
manifestar por ocasião da canonização de João XXIII e de João Paulo II,
no próximo domingo. Tais comparações se referem à cálida e espontânea
corrente de comunicação de ambos com o público. O jeito bonachão de João
XXIII rompia com o hieratismo de seu antecessor, Pio XII. A
simplicidade de Francisco contrasta com o gosto de Bento XVI pelo
protocolo.
A semelhança se nota também na idade avançada no momento da eleição
pontifícia de ambos: 77 anos, que, não obstante, dissimulam-se pela
vitalidade, a criatividade e os gestos cheios de humanidade, pouco
compatíveis com os títulos que ostentam: sumo pontífice da Igreja
universal, vigário de Cristo, santo padre, sucessor do príncipe dos
apóstolos, soberano do Estado da Cidade do Vaticano etc.
A isso é preciso somar sua permanente capacidade de surpreender. No
Natal de 1958, João XXIII, recém-eleito papa, visitou o Hospital do
Menino Jesus para crianças com poliomielite e a penitenciária de Regina
Coeli, junto ao rio Tibre, onde abraçou um detento condenado por
assassinato, que antes havia pedido perdão. Reuniu-se com um grupo de
deficientes físicos e com outro grupo de crianças de um orfanato. Depois
se encontrou com o arcebispo de Canterbury, Geoffrey F. Fissher, e
recebeu Rada Khrushchev, filha do então dirigente da URSS, e o marido
dela.
Francisco não deixou de surpreender desde que deixou sua Buenos Aires
querida e foi eleito papa com gestos significativos: renúncia a morar
no Vaticano; afastamento de bispos por levarem uma vida escandalosamente
antievangélica; auditoria externa para investigar a corrupção do Banco
Vaticano; abertura a rever a norma sobre a exclusão da comunhão
eucarística dos católicos que se divorciam e tornam a se casar; viagem a
Lampedusa e grito indignado de “Vergonha!” como denúncia por centenas
de imigrantes mortos e desaparecidos perante a indiferença da Europa;
respeito às diversas identidades sexuais etc.
Recentemente, ele tornou a nos surpreender ao celebrar o Dia do Amor
Fraterno em uma instituição para deficientes de diversos continentes,
religiões, culturas e etnias, onde se ajoelhou e lavou os pés de 12
deles. O exemplo não é fútil: fica marcado primeiro na retina, depois na
mente, e deve se traduzir em uma prática compassiva e solidária, se não
quiser se transformar em rotina.
Mas, no meu entender, as semelhanças entre João XXIII e Francisco vão
além de seu aspecto e dos seus gestos. A sintonia se manifesta no seu
espírito reformador do cristianismo, com o olhar voltado para o
Evangelho da opção pelo mundo da exclusão e para o compromisso pela
libertação dos pobres. João XXIII e Francisco concordam sobre a
necessidade de construir uma “Igreja dos pobres”. O papa Roncalli foi o
primeiro em utilizar essa expressão, numa mensagem radiofônica em 11 de
setembro de 1962: “Com relação aos países subdesenvolvidos, a Igreja se
apresenta como é e quer ser: a Igreja de todos, e, particularmente, a
Igreja dos pobres”. A ideia mal teve eco na Sala Conciliar, mas se fez
realidade nas dezenas de milhares de comunidades eclesiais de base que
surgiram na América Latina e outros continentes e na Teologia da
Liberação, que se tornou um sinônimo de cristianismo libertador.
Francisco expressou o mesmo desejo em uma concorrida entrevista
coletiva com jornalistas que haviam acompanhado o conclave, aos quais
contou algumas informações de bastidores da sua eleição. Quando ele
obteve os dois terços dos votos, o cardeal Claudio Hummes, arcebispo
emérito de São Paulo, o abraçou, o beijou e lhe disse: “Não se esqueça
dos pobres”. Após essa confissão, e num arroubo de sinceridade, disse
aos jornalistas: “Como eu gostaria de uma Igreja pobre e para os
pobres!”. Assumia assim publicamente um compromisso que o obrigava
transformar esse desejo em realidade. Fará isso?
João XXIII tinha consciência de que a humanidade estava vivendo uma
mudança de era e que a Igreja Católica não podia voltar a perder o trem
da história, devendo em vez disso caminhar ao ritmo dos tempos. Era
necessário pôr em marcha um processo de transformação da Igreja
universal que estivesse em sintonia com as transformações que ocorriam
na esfera internacional. Francisco está igualmente ciente de viver um
tempo novo, o que lhe exige deixar para trás os últimos 40 anos de
involução eclesiástica que pesam como uma laje e ativar uma nova
primavera na Igreja, em sintonia com as primaveras que o mundo vive
hoje: a Primavera Árabe, o movimento dos indignados, os Fóruns Sociais
Mundiais etc.. Bergoglio tem com a história um compromisso que não pode
eludir: primavera eclesiástica, já! Cumprirá?
*Juan José Tamayo é diretor da Cátedra
de Teologia e Ciências das Religiões da Universidade Carlos III, em
Madri, e autor de ‘Invitación a la Utopía’ (Trotta, 2102) e ‘Cincuenta
Intelectuales Para Una Conciencia Crítica’ (Fragmenta, 2013).
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