Dentro da história divino-humana da paixão de Jesus existem
muitas pequenas histórias de homens e de mulheres que entraram no raio da sua
luz ou da sua sombra. A mais trágica delas é a de Judas Iscariotes. É um dos
poucos fatos comprovados, com igual destaque, por todos os quatro Evangelhos e
pelo resto do Novo Testamento. A primitiva comunidade cristã tem refletido
muito sobre ele e nós faríamos mal se não fizéssemos o mesmo. Ela tem muito a
nos dizer.
Judas foi escolhido desde a primeira hora para ser um dos
doze. “Ao incluir o seu nome na lista dos apóstolos o evangelista Lucas escreve
“Judas Iscariotes, que se tornou” (egeneto) o traidor” (Lc 6,16). Portanto,
Judas não tinha nascido traidor e não o era quando foi escolhido por Jesus;
tornou-se! Estamos diante de um dos dramas mais obscuros da liberdade humana.
Por que se tornou? Em anos não distantes, quando estava de moda a tese do Jesus
“revolucionário”, tentou-se dar a seu gesto motivações ideais. Alguém viu no
seu apelido “Iscariotes” uma deformação de “sicariota”, ou seja, pertencente ao
grupo de zelotes extremistas que atuavam como “sicários” contra os romanos;
outros pensaram que Judas estivesse desapontado com a maneira em que Jesus
realizou a sua ideia do “reino de Deus” e que quisesse força-lo a agir no plano
político contra os pagãos. É o Judas do famoso musical “Jesus Christ Superstar”
e de outros espetáculos e novelas recentes. Um Judas muito semelhante a um
outro célebre traidor do próprio benfeitor: Brutus, que matou Júlio César para
salvar a República!
São reconstruções que devem ser respeitadas quando contém
alguma dignidade literária ou artística, mas não têm nenhuma base histórica. Os
Evangelhos – as únicas fontes confiáveis que temos sobre a personagem – falam
de um motivo muito mais terra-terra: o dinheiro. Judas tinha a responsabilidade
da bolsa comum do grupo; na ocasião da unção em Betânia havia protestado contra
o desperdício do perfume precioso derramado por Maria aos pés de Jesus, não
porque se preocupasse pelos pobres, assinala João, mas porque “era um ladrão e,
como tinha a bolsa, tirava o que se colocava dentro”(Jo 12,6). A sua proposta
aos chefes dos sacerdotes é explícita: “Quanto estão dispostos a dar-me, se
vo-lo entregar? E eles fixaram a soma de trinta moedas de prata” (Mt 26,15).
Mas por que maravilhar-se desta explicação e achar que ela é
banal? Não foi quase sempre assim na história e não é ainda assim hoje em dia?
Mamona, o dinheiro, não é um dos muitos ídolos; é o ídolo por excelência;
literalmente, “o ídolo de metal fundido” (cf. Ex 34, 17). E se entende o
motivo. Quem é, objetivamente, se não subjetivamente (ou seja, nos fatos, não
nas intenções), o verdadeiro inimigo, o rival de Deus, neste mundo? Satanás?
Mas nenhum homem decide servir, sem motivo, a Satanás. Se o faz, é porque
acredita que vai ter algum poder ou algum benefício temporal. Quem é, nos
fatos, o outro patrão, o anti-Deus, Jesus no-lo diz claramente: “Ninguém pode
servir a dois senhores: não podeis servir a Deus e a Mamona” (Mt 6, 24). O
dinheiro é o “deus visível[1]“, em oposição ao verdadeiro Deus que é invisível.
Mamona é o anti-Deus, porque cria um universo espiritual
alternativo, muda o objeto das virtudes teologais. Fé, esperança e caridade não
são mais colocados em Deus, mas no dinheiro. Ocorre uma sinistra inversão de
todos os valores. “Tudo é possível ao que crê”, diz a Escritura (Mc 9, 23); mas
o mundo diz: “Tudo é possível para quem tem dinheiro”. E, em certo sentido,
todos os fatos parecem dar-lhe razão.
“O apego ao dinheiro – diz a Escritura – é a raiz de todos
os males” (1 Tm 6,10). Por trás de todo o mal da nossa sociedade está o
dinheiro, ou pelo menos está também o dinheiro. Esse é o Moloch de bíblica
memória, ao qual foram imolados jovens e crianças (cf. Jer 32, 35), ou o deus
Azteca, ao qual era preciso oferecer diariamente um certo número de corações
humanos. O que está por trás do tráfico de drogas que destrói tantas vidas
humanas, a exploração da prostituição, o fenômeno das várias máfias, a
corrupção política, a fabricação e comercialização de armas, e até mesmo –
coisa horrível de se dizer – a venda de órgãos humanos removidos das crianças?
E a crise financeira que o mundo atravessou e que este país ainda está
atravessando, não é, em grande parte, devida à “deplorável ganância por
dinheiro”, o auri sacra fames[2], de alguns poucos? Judas começou roubando um
pouco de dinheiro da bolsa comum. Isso não diz nada para certos administradores
do dinheiro público?
Mas sem pensar nesses modos criminosos de ganhar dinheiro,
por acaso, já não é escandaloso que alguns recebam salários e pensões cem vezes
maiores do que daqueles que trabalham nas suas casas, e que já levantem a voz
só com a ameaça de ter que renunciar a algo, em vista de uma maior justiça
social?
Nos anos 70 e 80, para explicar, na Itália, diante as
imprevistas mudanças políticas, os jogos ocultos de poder, o terrorismo e os
mistérios de todo tipo que atormentava a convivência civil, foi-se afirmando a
ideia, quase mítica, da existência de um “grande Velho”: um personagem muito sagaz
e poderoso que dos bastidores teria movido as fileiras de tudo, para
finalidades somente conhecidas por ele. Este “grande Velho” existe realmente,
não é um mito; chama-se Dinheiro!
Como todos os ídolos, o dinheiro é “falso e mentiroso”:
promete a segurança e, em vez disso, a tira; promete a liberdade e, em disso, a
destrói. São Francisco de Assis descreve, com uma severidade incomum, o fim de
uma pessoa que viveu somente para aumentar o seu “capital”. Aproxima-se a
morte; chamam o sacerdote. Ele pergunta ao moribundo: “Queres o perdão de todos
os teus pecados?”, e ele responde que sim. E o sacerdote: “Estás preparado para
satisfazer os erros cometidos com os demais?”. E ele: “Não posso”. “Por que não
podes?”. “Porque já deixei tudo nas mãos dos meus parentes e amigos”. E assim
ele morre impenitente e, apenas morto, os parentes e amigos dizem entre si:
“Maldita a sua alma! Podia ganhar mais e deixar-nos, e não o fez![3]“.
Quantas vezes, nestes tempos, tivemos que refletir naquele
grito dirigido por Jesus ao rico da parábola que tinha acumulado muitos bens e
se sentia seguro pelo resto da vida: “Tolo, esta mesma noite a tua alma te será
pedida; e o que tens acumulado, de quem será?” (Lc 12, 20). “Homens colocados
em cargos de responsabilidade que não sabiam mais em qual banco ou paraíso
fiscal acumular os proventos da sua corrupção encontraram-se no banco dos réus,
ou na cela de uma prisão, justamente quando estavam pra dizer a si mesmos:
“Agora goza, minha alma”. Para quem o fizeram? Valia a pena? Fizeram realmente
o bem dos filhos e da família, ou do partido, se é isso que procuravam? Ou não
acabaram destruindo a si mesmos e os demais? O deus dinheiro se encarrega de
punir, ele mesmo, os seus adoradores.
A traição de Judas continua na história e o traído é sempre
ele, Jesus. Judas vendeu o chefe, os seus seguidores vendem o seu corpo, porque
os pobres são membros de Cristo. “Tudo aquilo que fizestes a um só destes meus
irmãos pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). Mas a traição de Judas não
continua somente nos casos clamorosos aos quais me referi. Seria cômodo para
nós pensar assim, mas não é assim. Ficou famosa a homilia que pronunciou numa
Quinta-feira Santa o padre Primo Mazzolari sobre “Nosso irmão Judas”. “Deixem,
dizia aos poucos paroquianos que tinha diante, que eu pense por um momento no
Judas que tenho dentro de mim, no Judas que talvez vocês também tenham dentro”.
É possível trair Jesus também por outros tipos de recompensa
que não sejam as trinta moedas de prata. Trai a Cristo quem trai a própria
esposa ou o próprio marido. Trai a Jesus o ministro de Deus infiel ao seu
estado, ou que, em vez de apascentar o rebanho apascenta a si mesmo. Trai a
Jesus quem trai a própria consciência. Posso traí-lo até mesmo eu, neste
momento – e isso me faz tremer – se enquanto prego sobre Judas me preocupo pela
aprovação do auditório mais do que de participar da imensa pena do Salvador.
Judas tinha um atenuante que nós não temos. Ele não sabia quem era Jesus,
considerava-o somente “um homem justo”; não sabia que era o Filho de Deus, nós
sim. Como a cada ano, na iminência da Páscoa, quis reescutar a “Paixão segundo
S. Mateus” de Bach. Há um detalhe que cada vez me faz estremecer. No anúncio da
traição de Judas, ali, todos os apóstolos perguntam a Jesus: “Porventura sou
eu, Senhor?” Herr, bin ich’s?”. Antes, porém, de fazer-nos ouvir a resposta de
Cristo, anulando toda distância entre o evento e a sua comemoração, o
compositor insere um coro que começa assim: “Sou eu, sou eu o traidor! Eu tenho
que fazer penitência!”, “Ich bin’s, ich sollte büßen”. Como todos os coros
daquela obra, esse expressa os sentimentos do povo que escuta; é um convite
também a nós, de fazermos a nossa confissão de pecado.
O Evangelho descreve o fim horrível de Judas: “Judas, que o
havia traído, vendo que Jesus tinha sido condenado, se arrependeu, e devolveu
as trinta moedas de prata aos chefes dos sacerdotes e aos anciãos, dizendo:
pequei, entregando-vos sangue inocente. Mas eles disseram: O que nos importa? O
problema é seu. E ele, jogando as moedas no templo, partiu e foi enforcar-se” (
Mt 27 , 3-5). Mas não julguemos apressadamente. Jesus nunca abandonou a Judas e
ninguém sabe onde ele caiu quando se jogou da árvore com a corda no pescoço: se
nas mãos de Satanás ou naquelas de Deus. Quem pode dizer o que aconteceu na sua
alma naqueles últimos instantes? “Amigo”, foi a última palavra que Jesus lhe
disse no horto e ele não podia tê-la esquecido, como não podia ter esquecido o
seu olhar.
É verdade que, falando ao Pai dos seus discípulos, Jesus
tinha falado de Judas: “Nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição” (Jo
17, 12), mas aqui, como em tantos outros casos, ele fala na perspectiva do
tempo, não da eternidade. Mesmo a outra palavra terrível referida a Judas:
“Seria melhor para esse homem nunca ter nascido” (Mc 14, 21 ) é explicada pela
enormidade do fato, sem a necessidade de se pensar em um erro eterno. O destino
eterno da criatura é um segredo inviolável de Deus. A Igreja nos garante que um
homem ou uma mulher proclamados santos estão na bem-aventurança eterna; mas de
ninguém a Igreja sabe com certeza que esteja no inferno.
Dante Alighieri, que, na sua Divina Comédia, coloca Judas
nas profundezas do inferno, fala da conversão, no último momento, de Manfred,
filho de Federico II e rei da Sicília, que todos na sua época acreditavam que
tinha sido condenado excomungado. Mortalmente ferido em batalha, ele confia ao
poeta que, no último momento da vida, se arrependeu chorando àquele “que
voluntariamente perdoa” e que do Purgatório envia para a terra esta mensagem
que vale também para nós:
Terríveis foram os meus pecados,mas a bondade infinita com seus grandes braçossempre acolhe aquele que se arrepende[4].
É a isso que deve levar-nos a história do nosso irmão Judas:
a render-nos àquele que voluntariamente perdoa, a jogar-nos também nós, nos
grandes braços do crucifixo. A coisa mais importante na história de Judas não é
a sua traição, mas a resposta que Jesus dá a ela. Ele sabia bem o que estava
amadurecendo no coração do seu discípulo; mas não o expôs, quis dar-lhe a
chance até o último momento de voltar atrás, quase o protege. Sabe por que
veio, mas não rejeita, no horto das oliveiras, o seu beijo gélido e até o chama
de amigo (Mt 26, 50). Da mesma forma que procurou o rosto de Pedro depois de
sua negação para dar-lhe o seu perdão, terá procurado também o de Judas em
algum momento da sua via crucis! Quando da cruz reza: “Pais, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem” (Lc 23 , 34), não exclui certamente deles a
Judas.
Então, o que faremos, portanto, nós? Quem seguiremos, Judas
ou Pedro? Pedro teve remorso pelo que ele tinha feito, mas também Judas teve
remorso, tanto que gritou: “Eu traí sangue inocente!”, e devolveu as trinta
moedas de prata. Onde está, então, a diferença? Em apenas uma coisa: Pedro teve
confiança na misericórdia de Cristo, Judas não! O maior pecado de Judas não foi
ter traído Jesus, mas ter duvidado da sua misericórdia.
Se nós o imitamos, quem mais quem menos, na traição, não o
imitemos nesta sua falta de confiança no perdão. Existe um sacramento no qual é
possível fazer uma experiência segura da misericórdia de Cristo: o sacramento
da reconciliação. Como é belo este sacramento! É doce experimentar Jesus como
mestre, como Senhor, mas ainda mais doce experimentá-lo como Redentor: como
aquele que te tira para fora do abismo, como Pedro do mar, que te toca, como
fez com o leproso, e te diz: “Eu quero, seja curado!” (Mt 8, 3).
A confissão nos permite experimentar em nós o que a Igreja
diz sobre o pecado de Adão no Exultet pascal: “Ó feliz culpa que mereceu tal
Redentor!” Jesus sabe fazer de todas as culpas humanas, uma vez que nos
tenhamos arrependido, “felizes culpas”, culpas que não são mais lembradas a não
ser pela experiência da misericórdia e pela ternura divina da qual foram
ocasião!
Tenho um desejo para mim e para todos vós, Veneráveis
Padres, irmãos e irmãs: que na manhã da Páscoa possamos acordar e sentir
ressoar no nosso coração as palavras de um grande convertido do nosso tempo, o
poeta e dramaturgo Paul Claudel:
“Deus meu, ressuscitei e ainda estou com você!
Dormia e estava deitado como um morto na noite.
Deus disse: “Seja feita a luz” e eu despertei como se dá um
grito! […]
Meu Pai, que me gerou antes da aurora,
coloco-me na tua presença.
O meu coração está livre e a minha boca está limpa,
o corpo e o espírito estão de jejum.
Sou absolvido de todos os meus pecados
que confessei um por um.
O anel das núpcias está no meu dedo e o meu rosto está
limpo.
Sou como um ser inocente na graça
Que tu me concedestes[5].
Isso é o que nos pode fazer a Páscoa de Cristo.
[Tradução do original
italiano por Thácio Siqueira / ZENIT]
[1] W. Shakespeare, Timão de
Atenas, ato IV, sc. 3.
[2] Virgílio, Eneida, 3.
56-57
[3] Cf. S. Francisco, Carta a
todos os fieis 12 (Fontes Franciscanas, 205).
[4] Purgatório, III, 118-123.
[5] P. Claudel, Prière pour le Dimanche matin, in Œuvres poétiques,
Gallimard, Paris, 1967, p. 377.
Fonte: http://www.cantalamessa.org/?p=2347&lang=pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário