terça-feira, 22 de abril de 2014

Não é a primeira vez que se quer casar Jesus

IHU - A antiguidade de um manuscrito copta, declarando que Jesus era casado, foi provada. Mas a autenticidade desse documento é mais que questionável. Desde as origens do cristianismo, a questão do celibato de Jesus atormenta tanto os fiéis como os não fiéis. Sem ofensa aos fãs do sensacionalismo, nada na Bíblia sugere que Jesus tinha uma esposa.
Fonte: http://bit.ly/1jMMwkA
A reportagem é de Henry Tincq e publicada no sítio francês Slate, 16-04-2014. A tradução é de André Langer.
Dois mil anos após a morte de Jesus numa cruz e sua ressurreição na Páscoa – “escândalo para os judeus e loucura para os pagãos”, segundo a fórmula de São Paulo – “revelações” pseudo-científicas relançam, em intervalos regulares, numa imprensa ávida de sensacionalismo, as especulações sobre a historicidade do fundador do cristianismo.
Elas questionam os dogmas mais fundamentados: os evangelhos dizem a verdade? As Igrejas não mentiram muito em sua história e escamotearam a verdade? O Jesus venerado por dois bilhões de fiéis mundo afora é o “verdadeiro Jesus”?
A mais recente dessas revelações, que remonta à descoberta, em novembro de 2012, de um fragmento de um papiro copta, inflama a mídia: presume-se que Jesus era casado, ao passo que a Bíblia nada diz sobre esse ponto e as Igrejas sempre fizeram dele um celibatário. No minúsculo fragmento desse papiro, que mede 3,8 cm por 7,6 cm, de procedência síria ou egípcia, figuram as seguintes palavras desconcertantes, escritas em dialeto saídico, a língua litúrgica dos primeiros coptas:
Jesus disse a eles: minha esposa” (pausa). E, mais adiante: “Ela poderá ser minha discípula”.
O que revolucionaria páginas inteiras da disciplina da Igreja católica, particularmente o celibato dos padres e a impossibilidade para as mulheres de exercerem um sacerdócio ministerial.
Após os testes do carbono 14, os cientistas anunciam que esse papiro data de um período compreendido entre os séculos VI e IX. “O papiro é obra de cristãos antigos, e não uma falsificação de hoje”, afirma um artigo publicado em 10 de abril na Harvard Theological Review. Os especialistas estudaram a composição química do papiro copta e sua oxidação e corresponde aos dados de papiros mais antigos (como o do evangelho de João no final do primeiro século).
A principal autora destas descobertas é a americana Karen Leigh King, professora de cristianismo antigo na Harvard Divinity School, uma faculdade de ponta da teologia protestante liberal dos Estados Unidos. É esta universitária reconhecida, militante feminista, que já em 2012 revelou a existência do papiro em mãos de um colecionador particular refugiado no anonimato.

Um erro proveniente de seitas gnósticas

Esse documento remonta, portanto, aos primeiros tempos do cristianismo e, nesse sentido, ele apresenta um real interesse científico. Mas, nesse momento, ninguém garante sua autenticidade. Na comunidade científica (arqueólogos, exegetas, biblistas), há sérias dúvidas sobre isso. Segundo o egiptólogo americano Leo Depuydt, em qualquer época era fácil encontrar, num mercado, folhas de papiro antigo e reconstituir, com fuligem de vela e óleo, uma tinta de composição similar àquela utilizada na antiguidade.
Desde a apresentação deste fragmento copta em 2012, muitos cientistas concluíram que esse papiro era falso. As provas, segundo eles, são sua origem indeterminada (por que o proprietário particular o guarda no anonimato?), a forma dos caracteres das letras e os erros gramaticais.
Fonte: http://bit.ly/1jMMwkA
A autenticidade recente da antiguidade do fragmento copta pode, no entanto, relançar o debate sobre o casamento de Jesus? Ao longo das suas investigações, os pesquisadores se defrontaram com a semelhança entre as palavras identificadas nesse documento e a letra de dois dos evangelhos apócrifos (não reconhecidos oficialmente) mais célebres, o de Maria (Madalena) e o de Tomé, redigidos pelos círculos gnósticos (esotéricos) mais antigos.
Os gnósticos representam uma importante corrente do cristianismo primitivo (séculos II e III) e eles faziam com frequência de Jesus um homem casado. Mas um casamento (com Maria Madalena) puramente místico e simbólico, porque, para a doutrina gnóstica fundada sobre a rejeição do corpo e da sexualidade, Jesus era um ser totalmente espiritual.
Os evangelhos gnósticos, considerados “apócrifos”, foram rejeitados pela Igreja nos primeiros séculos, que reconheceu no seu “cânon” bíblico apenas os quatro evangelhos de Marcos, Mateus, Lucas e João, ainda hoje lidos e comentados em todas as igrejas do mundo.

O caso Maria Madalena

A tese do casamento de Jesus é, portanto, tão antiga quanto o próprio cristianismo, que em sua história bimilenar é marcado por seitas e heresias as mais estapafúrdias. Assentada em “scoops arqueológicos” repetidos, ela alimenta ainda hoje toda uma literatura suspeita em relação ao cristianismo sobre o tema: a Igreja esconde de nós as coisas, ela escamoteia a verdade! Esta tese surfa sobre a falta de cultura religiosa crescente e uma curiosidade nem sempre bem vinda sobre as origens e a herança do cristianismo.
A ficção O Código Da Vinci, que foi a fortuna de Dan Brown, bateu seu sucesso planetário sobre a representação de um Jesus casado, autor de uma numerosa descendência com sua esposa, a ex-pecadora Maria Madalena.
Mas não existe na história nenhum vestígio autenticando esse casamento de Jesus. O silêncio da Bíblia sobre esse ponto é completo. E se o fundador do cristianismo teve uma esposa, esse silêncio da Bíblia seria totalmente incompreensível. Maria Madalena é uma das muitas mulheres que acompanharam Jesus em seu caminho de pregador e de curador.
Uma longa tradição a associou à lembrança da pecadora (ex-prostituta) perdoada e amada, de que falam os evangelhos. Jesus expulsou “os demônios” que estavam nela (segundo Marcos e Lucas). Ela lavou seus pés com perfume (em Lucas). Ela estava aos pés da cruz para assisti-lo em sua agonia e estava entre as mulheres que, na manhã da Páscoa, descobriram seu túmulo vazio. Mas nada nos Evangelhos deixa entrever a existência de uma relação amorosa e carnal entre Jesus e Maria Madalena. Nada faz supor que Cristo não era celibatário.
Resta um argumento muitas vezes rejeitado pela Igreja: os costumes judaicos do tempo de Jesus desprezavam o celibato e é pouco provável que um judeu como Jesus não tenha sido casado. Seu casamento teria sido uma prova da sua autoridade. A tradição judaica sempre favoreceu, com efeito, o casamento e, ainda hoje, é preciso ter, por exemplo, ao menos 40 anos e estar casado para ter o direito de estudar a Cabala.
Mas Jesus mostrou, mais de uma vez, sua distância em relação aos costumes judaicos. É precisamente o que provocou os sarcasmos dos fariseus e dos doutores da lei e que causará sua ruína, seu processo e sua morte. Segundo os evangelistas, ele se declarava “acima do shabbat” quando era preciso fazer o bem nesse dia de repouso. Ele não submeteu seus discípulos ao jejum. Ele salvou do apedrejamento uma mulher adúltera, proibiu o divórcio, come com os publicanos (coletores de impostos detestados pelos judeus) e pecadores... Tal liberdade com seu ambiente judaico é inclusive uma das principais características da vida de Jesus.

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