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O segundo livro
do Código de Direito Canônico é o que mais diretamente retrata o Concílio
Vaticano II. O próprio título “Povo de Deus” é extraído da Constituição
Dogmática “Lumen Gentium”. Muitos cânones praticamente nada mais são que a transcrição
do documento conciliar. A grande novidade, além de todo o conteúdo, é a
inversão da elaboração do tema. Na base estão os fiéis e, entre estes, os
leigos ocupam numericamente, o primeiro lugar.
Todo este livro pode ser sintetizado
à luz de um duplo principio fundamental: 1) a comunhão eclesial e 2) a
exigência da funcionalidade pastoral. Na luz destes princípios podemos entender
os 542 cânones que compõem este livro.
A primeira noção que se encontra na
base do Povo de Deus é a dos “fiéis católicos”. O Código a exprime com a
palavra “christifideles”: fiéis cristãos. Vêm apresentados como aqueles que,
incorporados em Cristo mediante o Batismo, são constituídos povo de Deus e, em
consequência, participantes da missão sacerdotal, profética e régia de Cristo;
assim são chamados a exercer a missão que Deus confiou à sua Igreja neste
mundo. Alguém está em plena comunhão com a Igreja Católica quando está
integrado em Cristo por mistério do tríplice vínculo: da profissão da mesma fé,
dos sacramentos e do governo eclesiástico (cânones 204-205).
O Batismo, recebido na Igreja
Católica, está na base desta nova situação. Contudo, o Código alarga também
para os catecúmenos a mesma noção de fiéis. Eles já estão, de um modo
particular, ligados à Igreja. Por isso já são por ela tidos como filhos,
assumidos debaixo de seu amor e de seus cuidados (Cânon 206).
Antes de entrar na determinação das
normas particulares, o Código distingue os fiéis em ministros sacros, que chama
de clérigos, e os demais, que são os leigos. Outra realidade que compreende
tanto clérigos como leigos é constituída pelos que professam os conselhos
evangélicos. Trata-se de uma situação especial na Igreja, que não pertence à
estrutura hierárquica, mas à sua vida e santidade: são as pessoas consagradas (cânon
207).
Os cânones 208 a 223 estabelecem a Carta
dos direitos e deveres dos fiéis. Inicialmente se previa, ao lado do Código, a
publicação de uma “Lei fundamental da Igreja”. Seria uma espécie de
“Constituição da Igreja”, à semelhança das Constituições que caracterizam os
Estados modernos, chamados, por isso, constitucionais. Fez-se, neste sentido,
amplo estudo e se elaborou um anteprojeto, que foi enviado, para consulta, a
todos os Bispos do mundo. Após muitas discussões, em 1980 ficou decidido que
não se publicaria nenhuma “Lei Fundamental”, mas que as suas normas seriam
incorporadas ao Código de Direito Canônico. Esta é a origem dos dezesseis
cânones sobre os direitos e deveres fundamentais comuns a todos os fiéis.
A noção básica é a igualdade.
Resulta do próprio desenvolvimento da noção do Povo de Deus e da condição
batismal, tão característico do Concílio Vaticano II. O cânon 208 traduz a
doutrina conciliar, estabelecendo que entre todos os fiéis existe uma
verdadeira igualdade na dignidade e no agir; e que, por meio desta igualdade,
todos cooperam na edificação do Corpo de Cristo, de acordo com a condição e as
tarefas de cada um. Proclama-se, em outras palavras, uma igual dignidade,
liberdade e responsabilidade de todos os fiéis.
Daí fluem os demais “direitos
fundamentais do fiel”. Trata-se, pois, de um dos elementos mais importantes do
atual Direito Canônico. Quanto aos demais direitos e deveres, que derivam deste
princípio fundamental, basta enunciá-los brevemente: Comunhão com os Pastores
da Igreja, de modo especial com a Igreja particular ou diocese; levar uma vida
santa e colaborar no crescimento e santificação da Igreja; colaborar na ação
missionária da Igreja; relacionar-se com os próprios pastores: obedecer-lhes e
poder manifestar-lhes as próprias necessidades, desejos e pensamentos acerca da
situação da Igreja; participar nos bens espirituais da Igreja, tais como a
Palavra de Deus e os sacramentos; participar no culto, de acordo com o próprio
rito e viver uma espiritualidade própria; fundar livremente associações com
fins caritativos ou religiosos; exercer pessoalmente algum apostolado; dedicar-se
à pesquisa teológica e publicar os resultados da mesma; escolher livremente o
próprio estado de vida; reivindicar os próprios direitos e ser julgado de
acordo com as normas do processo, e não ser punido a não ser de acordo com a
lei; colaborar na manutenção material da Igreja, promover a Justiça e socorrer
os pobres; ter presente, no exercício dos próprios direitos, o bem comum da
Igreja e os direitos dos outros.
A posição do leigo na Igreja (cc. 224-231 ler)
O Código de
Direito Canônico de 1983 procura dar um especial realce à posição dos leigos na
Igreja.
Depois de declarar a igualdade
fundamental de todos os fiéis, o Código passa à consideração dos leigos. Além
da importância estatístico-sociológica – são indubitavelmente a larguíssima
maioria da Igreja – os leigos se caracterizam também por uma condição
constitucional própria, que está na origem de sua função específica na Igreja.
Situando o tema do leigo na base do Povo de Deus, o Código visa a evitar uma
perspectiva provalentemente clerical, bem como precaver-se de uma interpretação
exclusivamente secularizada. Serve-se, ao invés, de uma matriz de totalidade,
dentro dos dados de que a Igreja dispõe acerca do caráter laical (cânon 224).
A teologia, já antes do Concílio
Vaticano II, começou a dar os primeiros passos para definir a função do leigo
na Igreja dentro da visão das realidades terrestres. O Concílio debateu
ulteriormente este delicado tema e concentrou na índole secular a sua
característica. É a partir dali que se há de elaborar sua espiritualidade
própria e sua missão específica.
No cânon 225, o Código de Direito
Canônico começa fundando o ministério do leigo nos sacramentos do batismo e da
crisma. Deriva dali o dever de apostolado: anunciar Cristo onde ele tem acesso.
Reconhece, porém, como encargo peculiar, o dever de permear toda a realidade
temporal com o espírito do Evangelho e de dar testemunho de Cristo no exercício
dos deveres seculares.
Aqui está o nó da questão: a
construção do mundo segundo o espírito de Cristo. O leigo não só tem o direito
de empenhar-se pelo bem comum temporal, mas tem também o respectivo dever. É
seu ministério específico de cristão. Para isso, a Igreja lhe reconhece e
reivindica para ele a devida liberdade, uma liberdade que compete a todo o
cidadão, mas uma liberdade que deve ser utilizada pelo leigo para imbuir todas
as suas ações com o espírito evangélico.
O bem comum temporal se promove através
da política, da cultura, do trabalho profissional do comércio, da indústria, da
agricultura etc. Este é, pois, o campo específico do leigo e é neste campo que
ele tem direito de fazer livremente suas opções pessoais e associativas, sem,
contudo, querer propor sua própria linha como sendo a posição da própria Igreja
(Cânon 227).
A ausência da atuação do ministério
específico dos leigos dá a impressão de uma Igreja desligada da realidade. Esta
propõe os grandes princípios e faz pronunciamentos que depois não é capaz de
atuar. Mas este, mormente no plano político, é o terreno específico dos leigos
e não do clero. Onde o clero se pronuncia sobre assuntos que competem aos
leigos, estes se omitem, escorando-se passivamente nos ombros clericais.
Portanto, quando se pergunta sobre o que a Igreja faz no campo do bem comum, é
preciso passar a questão aos leigos.
O ministério dos leigos radica-se no
tríplice ministério de Cristo: 1) participam do caráter profético, como
testemunhas de Cristo, 2) na união de sua vida cristã com a vida temporal
participam da realeza de Cristo, empenhados como estão na extensão de seu reino
3) participam da santificação das coisas e das estruturas humanas, na
integração da cultura na vida religiosa; participam do sacerdócio de Cristo,
pela obrigação de levar uma vida santa, de consagrar o mundo pelo trabalho e,
às vezes, em circunstâncias especiais, de substituir ministros sagrados. Numa
palavra, o ministério dos leigos abrange a ordem espiritual, pelo dever de
salvação e santificação do mundo; e a ordem temporal, para a sua restauração
constante em Cristo.
Podemos notar que nesta perspectiva
é ao leigo que cabe fazer a “consagração do mundo” através de sua cotidiana
inserção na realidade, e de seu trabalho animado pelo espírito cristão.
O Código realça o “ministério
conjugal” dos leigos. É na família que eles estão investidos de um encargo
peculiar para a edificação do Povo de Deus, o ministério que é desenvolvido na
Exortação Apostólica “Familiaris Consortio” de João Paulo II (Cânon 226).
Além desses ministérios, que lhe são
característicos, o leigo pode ser chamado a exercer algum cargo eclesiástico,
exercer a função de conselheiro ou obter alguns ministérios instituídos, como o
de leitor e de acólito (cânones 228 e 230).
É óbvio que, com ministérios tão
amplos e de tanta responsabilidade, na ordem espiritual e na temporal e junto
aos órgãos da Igreja, o leigo tem o direito e o dever de adquirir aquela
formação religiosa necessária para o exercício dos mesmos. Abrem-se, pois, as
portas de todos os cursos da ciência religiosa e teológica, inclusive de nível
universitário, podendo igualmente receber o mandato de ensinar as ciências
sagradas. O Código insiste na responsabilidade dos leigos em adquirir uma apta
formação (cânones 229 e 231).
Além dos oito cânones específicos
acerca dos leigos, dizem-lhes respeito todos os cânones dos fiéis em geral e
grande parte dos que veem nos demais livros do Código. O trabalho dos leigos
não se exaure, pois, com estas determinações específicas. Elas são apenas as
grandes linhas e a indicação específica do lugar que lhes compete a Igreja.
Exceto quando trata dos ministérios
instituídos, todas as normas do Código valem, sem alguma distinção, tanto para
os homens como para as mulheres. O princípio já se estabelecera ao elaborar a
Carta dos Direitos e deveres dos fiéis, com a igualdade de todos. Não há
discriminação de espécie alguma, com execução do sacramento da Ordem reservado
aos homens, segundo toda a Tradição e o próprio gesto de Cristo. Deve-se, inclusive,
destacar o papel da mulher, ao longo da História, como evangelizadora não só da
própria família, mas também dos povos.
Nestes dias em que debruçamos sobre
este assunto em
nossa Assembleia Geral dos Bispos, sempre é bom recordar
aquilo que já está estabelecido e encontrar caminhos pastorais para que se
exerça ainda melhor a vocação do cristão leigo na Igreja e no mundo.
Orani
João, Cardeal Tempesta, O.Cist
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de
Janeiro, RJ
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