Há anos, portarias do Ministério da Saúde tratam
como “inaptos temporários” à doação de sangue homens que tiveram
relações sexuais com outros homens. Para ativistas e defensores da causa
LGBT, normas são discriminatórias; para representantes do governo,
visam à proteção dos receptores.
Por Anna Beatriz Anjos, na Fórum Semanal
No dia 26 de março, o estudante de jornalismo Leonardo Uller, de 19
anos, foi ao Hospital 9 de Julho, na centro de São Paulo, com uma
intenção: doar sangue. Seu tio, internado na unidade, havia passado por
uma cirurgia e precisava de transfusões. À pedido dos médicos, a família
se mobilizou.
Leonardo conhecia a situação. Havia estado na posição de doador mais
de 10 vezes em outro hospital da cidade, da rede pública. Achou que o
procedimento seguiria o padrão a que estava acostumado. E, por alguns
minutos, seguiu. “Mediram minha pressão, fizeram teste de anemia, tudo
normal”, conta. Foi no momento da entrevista com a médica que o quadro
mudou.
Após as perguntas de praxe – “se já tive malária, se tinha passado
por cirurgia nos últimos meses, se havia viajado para o exterior”,
relata –, a médica questionou se Leonardo havia mantido relações sexuais
com homens nos últimos 12 meses. “Disse que sim. Ela me falou, então,
que eu não poderia doar sangue. Quis saber por que, expliquei que estava
em um relacionamento estável há mais de um ano, usava camisinha, e, por
isso, meu comportamento não era de risco”, relembra. Mas a médica
prosseguiu:
– Veja bem, se você estiver internado, vai querer um sangue ruim, de gente promíscua, no seu corpo?
– Você está insinuando que meu sangue é promíscuo? – rebateu o estudante.
– Não, de jeito nenhum – retrucou a médica.
– Então está insinuando que os gays são promíscuos? – perguntou o rapaz.
– Não é isso. Mas concorda que você é uma raridade, uma exceção entre os gays? – indagou a funcionária do hospital.
Depois de muita insistência e discussão, Leonardo conseguiu realizar o
procedimento. “Ela veio falar comigo depois e me disse que tinha ‘me
expressado bem’. Se eu fosse gay e analfabeto, ou então mais tímido, não
teria conseguido doar?”, contesta.
“Foi péssimo. A primeira coisa em que pensei foi ‘que loucura, como
uma pessoa que tem diploma de médico, estudou tantos anos para cuidar de
gente pensa uma coisa dessas, que não faz o menor sentido?’ Me senti
humilhado, muito injustiçado”, confessa o estudante. Por meio de nota,
a assessoria de imprensa do hospital afirmou que “as doações de sangue
realizadas no banco de sangue que atende a instituição seguem a
legislação vigente – Portaria 2712, de 12/11/2013 do Ministério da
Saúde”.
Contraditória e inconstitucional
A portaria a
que se refere o hospital define o regulamento técnico de procedimentos
hemoterápicos. Ela traz, realmente, uma determinação restritiva que,
mesmo não abordando diretamente questões de orientação sexual e
identidade de gênero, enquadra os homossexuais masculinos:
“Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o
candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo:
IV – homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes”.
No entanto, logo em seu segundo artigo, apresenta parágrafo que estabelece o oposto:
“Art. 2º, § 3º Os serviços de hemoterapia promoverão a melhoria da
atenção e acolhimento aos candidatos à doação, realizando a triagem
clínica com vistas à segurança do receptor, porém com isenção de
manifestações de juízo de valor, preconceito e discriminação por orientação sexual, identidade de gênero,
hábitos de vida, atividade profissional, condição socioeconômica, cor
ou etnia, dentre outras, sem prejuízo à segurança do receptor.”
O inciso IV do artigo 64 é herança de regulamentações anteriores do Ministério da Saúde. A resolução RDC nº153, de 14 de junho de 2004, trazia, no artigo 6, exatamente o mesmo texto. Criada em 13 de junho 2011, a portaria de número 1.353 reproduziu
novamente a determinação, no artigo 34. Seu artigo primeiro também
continha o veto ao uso da orientação sexual como critério de seleção
para doadores. Era, portanto, igualmente contraditória.
Maria Berenice Dias, advogada especialista em Direito Homoafetivo e
presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), confirma a dicotomia da portaria. “Há duas
resoluções que entram em conflito”, diz.
Além de paradoxal, Maria Berenice a considera inconstitucional, por
ferir o artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual “todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. “Ela é
absolutamente discriminatória, por que qual é o motivo de essas pessoas
não poderem doar? Não é por conta da orientação sexual, mas pelo fato de
manterem relações anais. Não é a orientação sexual da pessoa que
determina a prática do sexo anal, heterossexuais também praticam e
deveriam ser incluídos”, explica.
Respaldada por esses dois argumentos, a Comissão requereu ao
Ministério da Saúde, no fim de 2013, a mudança do texto, mas, de acordo
com advogada, nenhuma medida foi tomada nesse sentido até o momento.
A sugestão dada ao Ministério foi a mudança da determinação do
inciso: em vez de citar apenas homens que fizeram sexo com outros
homens, estendê-la a qualquer pessoa que tenha praticado sexo anal
(abrangendo heterossexuais também). “Dessa forma que está redigida, a
portaria ainda deixa pessoas que têm comportamentos de risco doarem,
aquelas que fazem sexo anal sem serem homens, nem homossexuais”,
explica.
O Ministério da Saúde, questionado sobre o teor discriminatório de
suas portarias, comunicou apenas que elas definem critérios para
doadores de sangue visando “assegurar a qualidade do sangue coletado”.
O médico Dante Langhi, coordenador da Hemorrede do Estado de São
Paulo e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São
Paulo, concorda com a posição do Ministério e contesta o argumento de
que a norma é preconceituosa. “A portaria não discute, de maneira
nenhuma, a questão da orientação sexual. Ela é absolutamente específica e
visa proteger tanto o doador de sangue, como o receptor. No artigo 64
não está escrito que tem de ser descartado o indivíduo que é homossexual
ou heterossexual, só fala em relação ao tipo de atitude”.
Base científica
Segundo a pesquisa “Comportamento,
atitudes, práticas e prevalência de HIV e sífilis entre homens que
fazem sexo com homens (HSH) em 10 cidades brasileiras”, de 2010,
coordenada pela médica Lígia Kerr e financiada pelo Departamento de
DST/Aids e Hepatites Virais (D-DST-AIDS-HV) do Ministério da Saúde, a
prevalência do vírus HIV é de 10,5% entre a população de gays, HSH
(homens que não se definem homossexuais, mas mantêm relações com outros
homens, sem laço afetivo) e travestis. Na população geral, a proporção,
significativamente menor, é de 0,42%, sendo de 0,32% entre as mulheres e
de 0,52% entre os homens.
Há algumas razões para que tais populações estejam mais suscetíveis à
infecção e ao adoecimento pelo vírus HIV. José Ricardo Ayres, professor
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e
livre-docente em Medicina Preventiva, define o conceito de vulnerabilidade
como um “conjunto de aspectos individuais e coletivos relacionados ao
grau e modo de exposição a uma dada situação e, de modo indissociável,
ao maior ou menor acesso a recursos adequados para se proteger das
consequências indesejáveis daquela situação”.
Ainda de acordo com Ayres, “[o conceito de vulnerabilidade]
substitui as noções de grupos de risco – associada a ideias rotuladoras
e, portanto, geradoras e reprodutoras de preconceito e estigmatização – e
sua sucedânea, as de comportamento de risco”. “Os comportamentos
associados à maior vulnerabilidade não podem ser entendidos como uma
decorrência imediata da vontade pessoal. Estão relacionados às condições
objetivas nas quais acontecem e ao efetivo poder que as pessoas e
grupos sociais podem exercer para transformá-las”, analisa Beto de
Jesus, diretor da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais (ABGLT) e membro da Associação Espaço de
Prevenção e Atenção Humanizada (EPAH), organização não governamental que
atua na promoção da saúde, prevenção e cuidados para o HIV/aids.
O ativista cita alguns fatores como determinantes para a maior
vulnerabilidade de gays, homens que fazem sexo com homens e travestis. A
prática do sexo anal é uma delas. Pesquisa publicada em 2010 na versão
online do International Journal of Epidemiology indica que o
risco de transmissão do vírus HIV durante uma relação sexual anal pode
ser 18 vezes superior ao de uma relação sexual vaginal. “Este tipo de
ato pode aumentar o número de lesões na mucosa da região, e esse aumento
de lesões fragiliza a proteção. Pior ainda quando há o contato do
sangue com o sêmen contaminado”, explica o Langhi.
Outro elemento diretamente relacionado à vulnerabilidade desses grupos é o preconceito. O Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de AIDS e das DST entre Gays, HSH e Travestis,
elaborado em 2007 pelo Ministério da Saúde com o intuito de estabelecer
metas para prevenir e controlar as DST/aids entre esses grupos, aborda a
questão. O texto aponta que a homofobia e a transfobia impactam
negativamente a autoestima e que, somadas às dificuldades de
sociabilidade e à hostilidade no ambiente escolar, “resultam,
normalmente, na exclusão do convívio familiar e na descontinuidade da
educação formal, projetando, entre outras, grandes dificuldades para a
qualificação e entrada no mercado de trabalho”. Isso acarreta, por sua
vez, a marginalização dessas pessoas, que se tornam alvo das mais
diversas formas de violência, tanto simbólica, quanto física.
Carlos Magno, atual presidente da ABGLT, dá exemplos de como o
preconceito reflete, em termos práticos, na questão da vulnerabilidade.
“Se essas pessoas pudessem namorar dentro de casa, pudessem namorar
normalmente em espaços públicos, possivelmente não fariam sexo de forma
escondida, clandestina e, muitas vezes, desprotegida”.
A conclusão a que se chega é que, de fato, a taxa de prevalência do
vírus HIV entre a população de homossexuais, HSH e travestis é maior.
Esse quadro, entretanto, não deve ser entendido única e exclusivamente
como consequência da vontade direta de cada um desses indivíduos, pois
eles estão inseridos em um contexto social que lhes coloca em posição de
maior suscetibilidade à infecção – por isso o uso do conceito de
“vulnerabilidade” em substituição ao de “grupos e comportamentos de
risco”.
Alternativas
A última portaria aprovada pelo Ministério da Saúde, em novembro de
2013, traz uma novidade: torna obrigatória a realização do chamado teste
de ácido nucleico (NAT) em todas as bolsas de sangue colhidas nos
bancos públicos e privados do Brasil.
O teste NAT agiliza a identificação dos vírus HIV e HCV, causador da Hepatite tipo C. As janelas imunológicas
(período compreendido entre a contaminação do organismo por um agente
infeccioso e a produção de anticorpos, em que tais agentes permanecem
indetectáveis) são reduzidas, em média, de 22 para 8 dias, no caso do
HIV, e de 70 para 10 dias, no caso do HCV. Isso porque o NAT possibilita
a detecção do material genético do vírus, em vez de buscar os
anticorpos que o organismo produz contra eles, como fazem os testes
tradicionais.
“A detecção do material genético desses vírus é
mais precoce do que a detecção de anticorpos contra esses vírus.
Obviamente, o teste NAT garante maior segurança à transfusão do ponto de
vista de diminuir a possibilidade de transmissão desses agentes”,
aponta o Dante Langhi.
Para Beto de Jesus, otimizar o método de exame do sangue pós-coleta é
uma forma de acabar com a questão da seletividade de doadores.
“Utilizando-se essa tecnologia de forma adequada, respeitando o período
da janela imunológica, não existe motivo para negar doações de sangue de
qualquer pessoa, sejam elas homossexuais ou não”, declara.
Embora fundamental, o âmbito científico não é o único a ser
repensado. Grande parte do problema, como fica claro no caso do
estudante Leonardo Uller, está no momento do atendimento. Para o diretor
da ABGLT, o preconceito demonstrado por alguns captadores e triagistas
dos hemocentros brasileiros é ponto central. “Capacitar essas pessoas é
de extrema urgência, pois os estoques de sangue no país não estão
jorrando pelo ladrão, muito pelo contrário, sempre estão em situações
criticas e não se pode perder a oportunidade de aumentar o volume de
sangue doado repetindo um erro e reforçando a discriminação. Isso viola
os direitos humanos”, explica.
Foto de capa: Carol Garcia/Governo da Bahia
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