Em um esforço por colocar-nos na escola dos Padres para dar
um novo impulso e profundidade à nossa fé, não pode faltar uma reflexão sobre o
modo em que eles liam a Palavra de Deus. Será o Papa São Gregório Magno a
guiar-nos à “inteligência espiritual” e a um renovado amor pelas Escrituras.
Aconteceu no mundo moderno, em relação à Escritura, a mesma
coisa que aconteceu com a pessoa de Jesus. A busca do exclusivo sentido
histórico e literal da Bíblia que dominou nos últimos dois séculos partia dos
mesmos pressupostos e levou aos mesmos resultados da pesquisa sobre o Jesus
histórico diferente do Cristo da fé. Jesus era reduzido a um homem
extraordinário, um grande reformador religioso, mas nada mais; a Escritura era
reduzida a um livro excelente, até mesmo o mais interessante do mundo, mas um
livro como os outros, que devia ser estudado com os meios com os quais se
estudam todas as grandes obras da antiguidade. Hoje se está indo inclusive
além. Um certo ateísmo militante maximalista, anti-judaico e anti-cristão, tem
a Bíblia, especialmente o Antigo Testamento, como um livro “cheio de
abominações”, que deve ser retirado das mãos dos homens de hoje.
Nesse assalto às Escrituras, a Igreja opõe a sua doutrina e
a sua experiência. Na Dei Verbum, o Vaticano II reafirmou a perene validade das
Escrituras, como palavra de Deus à humanidade; a liturgia da Igreja a coloca em
um lugar de honra em cada celebração sua; tantos estudiosos, na crítica mais
atual, unem também a fé mais convicta no valor transcendente da palavra
inspirada. A prova talvez mais convincente é, no entanto , a da experiência . O
argumento que, como vimos, levou à afirmação da divindade de Cristo em Nicéia,
em 325 e pelo Espírito Santo em Constantinopla no 381, se aplica plenamente
também à Escritura: nela experimentamos a presença do Espírito Santo, Cristo
ainda nos fala, o seu efeito em nós é diferente do de qualquer outra palavra;
portanto não pode ser simples palavra humana.
1. O velho se torna novo
O propósito da nossa reflexão é ver como os Padres nos podem
ajudar a reencontrar aquela virgindade de escuta, aquele frescor e liberdade ao
aproximar-se da Bíblia que permitem experimentar a força divina que emana dela.
O Padre e Doutor da Igreja que escolhemos como guia, eu disse, é São Gregório
Magno, mas para poder compreender a sua importância neste campo temos que
voltar para as fontes do rio do qual ele próprio faz parte e traçar, pelo menos
no geral, o seu percurso antes de chegar até ele.
Na leitura da Bíblia, os Padres só fazem continuar na mesma
linha começada por Jesus e pelos apóstolos, e só esse dado nos deveria fazer
mais cautelosos ao julgá-los. Uma rejeição radical da exegese dos Padres
significaria uma rejeição da exegese do próprio Jesus e dos apóstolos. Jesus,
aos discípulos de Emaús, explica tudo aquilo que se referia a ele nas
Escrituras; afirma que as Escrituras falam dele, que Abraão viu o seu dia;
muitos gestos e palavras de Jesus se dão “para que sejam cumpridas as
Escrituras”; os primeiros dois apóstolos dizem dele: “Achamos aquele de quem
Moisés e os profetas escreveram” (Jo 1,45).
Mas todos estes eram resultados parciais. Ainda não
aconteceu o transfert total. Isso se realiza na cruz e está contido na palavra
de Jesus moribundo: “Tudo está consumado”. Também no Antigo Testamento, houve
novidades, retomadas, transposições; por exemplo, o retorno da Babilônia era
visto como uma renovação do milagre do Êxodo. Eram saltos quantitativos. Agora
acontece um salto qualitativo, uma mudança de sinal: personagens, eventos,
instituições, leis, templo, sacrifícios, sacerdócio, tudo de repente aparece em
uma outra luz. Como quando em uma sala iluminada pela luz fraca de uma vela, se
acende de repente uma forte luz de néon. Cristo que é “luz do mundo” é também
luz das Escrituras. Quando se lê que Jesus ressuscitado “abre a mente dos
discípulos para compreender as Escrituras” (Lc 24,45), refere-se a esta nova
inteligência, trabalhada pelo Espírito Santo.
O Cordeiro quebra os selos e o livro da história sagrada
pode finalmente ser aberto e lido (cf. Ap 5). Tudo permanece, mas nada é como
antes. É um instante que unifica – e ao mesmo tempo distingue – os dois
Testamentos e as duas alianças: “Clara e brilhante, aqui está a grande página
que separa os dois Testamentos! Todas as portas são abertas ao mesmo tempo,
toda a oposição se dissipa, todas as contradições são resolvidas”[1]. O exemplo
mais claro para compreender o que acontece neste momento é a consagração na Missa,
e, de fato, esta só é o memorial da outra. Aparentemente nada mudou no pão e no
vinho sobre o altar, no entanto, sabemos que, após a consagração, eles já são
algo completamente diferente e nós os tratamos de maneira muito diferente de
antes.
Os apóstolos continuam esta leitura, aplicando-a à Igreja,
assim como à vida de Jesus. Tudo o que estava escrito no Êxodo era escrito para
a Igreja (1 Cor 10,11); a rocha que se seguia e tirava a sede dos judeus no
deserto anunciava Cristo e o maná, o pão descido do céu; os profetas falaram
dele (1 Pd 1,10ss), o que se diz do Servo Sofredor de Isaías foi cumprido em
Cristo, e assim por diante.
Passando do Novo Testamento ao tempo da Igreja, notamos dois
usos diferentes dessa nova compreensão das Escrituras: um de tipo apologético e
outro de tipo teológico e espiritual; o primeiro, usado no diálogo com os de
fora, o segundo para a edificação da comunidade. Contra os judeus e os hereges
que compartilham a Escritura compõem-se os assim chamados “testemunhos”, ou seja,
coleções de frases ou passagens bíblicas a serem usadas para provar a fé em
Cristo. Sobre isso se baseia, por exemplo, o Diálogo com Trifon judeu de São
Justino, e tantos outros escritos.
O uso teológico e eclesial da leitura espiritual começa com
Orígenes, tido justamente como o fundador da exegese cristã. A riqueza e beleza
das suas intuições sobre o sentido espiritual das Escrituras e das suas
aplicações práticas é inesgotável. Elas farão escola seja no oriente que no
ocidente, onde começa a ser conhecido ao mesmo tempo que Ambrósio. Junto com a
sua riqueza e genialidade, a exegese de Orígenes introduz, porém, na tradição
exegética da Igreja também um elemento negativo devido ao seu entusiasmo pelo
espiritualismo de caráter platônico. Tomemos a sua seguinte afirmação de
método: “Não se deve acreditar que os fatos históricos sejam figuras de outros
fatos históricos e as coisas corpóreas de outras coisas corpóreas, mas, pelo
contrário, que as coisas corpóreas são figuras de coisas espirituais e os fatos
históricos de realidades inteligíveis[2]”.
Desta forma, à correspondência horizontal e histórica,
própria do Novo Testamento, pela qual um personagem, um fato, ou uma palavra do
Antigo Testamento é visto como profecia e figura (typos) do que acontece em Cristo
ou na Igreja, se substitui a perspectiva vertical, platônica, pela qual um fato
histórico e visível, seja do Antigo como do Novo Testamento, se torna símbolo
de uma ideia universal e eterna. A relação entre profecia e realização tende a
se transformar na relação entre a história e o espírito[3].
2. As Escrituras, pedras quadrangulares.
Por meio de Ambrósio e outros que traduziram as suas obras
para o latim, o método e os conteúdos de Orígenes, entram plenamente nas veias
da cristandade latina e continuarão a fluir por toda a idade média. Qual foi,
então, na explicação da Escritura, a contribuição dos latinos? Podemos resumir
a resposta em uma só palavra que é a que melhor expressa o seu gênio próprio:
organização!
Àquele de Orígenes se acrescenta, é verdade, a contribuição
não menos criativa e audaz de um outro gênio, aquela de Agostinho que
enriquecerá de intuições e aplicações novas e ousadas a leitura da Bíblia. Mas
não é nesta linha que se coloca a contribuição mais significativa dos Padres
latinos, ou seja, na descoberta de significados novos e escondidos na Palavra
de Deus, mas na sistematização do imenso material exegético que tinha se
acumulado na Igreja, no traçar uma espécie de mapa para orientar-se na sua
utilização.
Esse esforço organizativo – começado com Agostinho – foi
levado à sua forma definitiva por Gregório Magno e consiste na doutrina do
quádruplo sentido da Escritura. Neste campo, ele é considerado “um dos
principais iniciadores e um dos maiores patronos da doutrina medieval dos
quatro sentidos”, a ponto de se poder falar da Idade Média como da “época
gregoriana[4]”.
A doutrina dos quatro sentidos da Escritura é uma grade, uma
forma de organizar as explicações de um texto bíblico ou de uma realidade da
história da salvação, distinguindo nelas quatro campos ou níveis diferentes de
aplicação: 1. O nível literal e histórico; 2. O nível alegórico (hoje
prefere-se chamar tipológico) relacionado à fé em Cristo; 3. O nível moral, ou
seja, em relação ao atuar do cristão; 4. O nível escatológico, que se refere ao
cumprimento final no céu. Gregório escreve: “As palavras da Sagrada Escritura
são pedras quadrangulares [...]. Em todo acontecimento do passado que narram
[sentido literal], em cada coisa futura que anunciam [sentido anagógico], em
cada dever moral que pregam [sentido moral], em cada realidade espiritual que
proclamam [sentido alegórico ou cristológico], de cada lado se mantém de pé e
são irrepreensíveis [5]”.
Na Idade Média foi composto um famoso dístico que resumiu
esta doutrina: Littera gesta docet / Moralis, quid agas; quo tendas anagogia.
“A letra te ensina o que aconteceu; o que se deve acreditar a alegoria. / A
moral, o que fazer; onde tender, a anagogia”. A aplicação talvez mais clara
deste esquema se tem com relação à Páscoa. De acordo com a letra ou a história,
a Páscoa é o rito que os judeus cumpriram no Egito; de acordo com a alegoria,
referindo-se à fé, ela indica a imolação de Cristo verdadeiro cordeiro pascal;
de acordo com a moral, indica a transição dos vícios para a virtude, do pecado
à santidade; de acordo com a anagogia ou a escatologia, indica a transição das
coisas terrenas às coisas celestiais, ou também a Páscoa eterna que se
celebrará no céu.
Não se trata de um esquema rígido e mecânico, mas flexível e
passível de infinitas variações, começando com a ordem em que são listados os
vários sentidos. Eis um texto de Gregório no qual se vê a liberdade com que ele
mesmo usa o esquema do quádruplo sentido e como sabe, com ele, tirar várias
harmonias da Escritura. Comentando a imagem de Ezequiel 2,10, sobre o rolo
“escrito dentro e fora” (“intus et foris”, de acordo com a Vulgata) diz:
“O rolo da Palavra de Deus está escrito dentro, por meio da
alegoria; fora, por meio da história. Dentro por meio da inteligência
espiritual; fora por meio do simples sentido literal, adequado aos espíritos
ainda fracos. Dentro porque promete os bens invisíveis; fora, porque estabelece
a ordem das coisas visíveis com a retidão dos seus preceitos. Dentro, porque dá
a segurança dos bens celestiais; fora, porque ensina como usar os bens
terrenos, ou como escapar das suas atrações [6]”.
3. Por que ainda precisamos dos Padres para ler a Bíblia
O que podemos tirar deste modo assim tão livre e corajoso de
colocar-se diante da Palavra de Deus? Mesmo um admirador da exegese patrística
e medieval como o padre de Lubac admite que não podemos nem retornar a ele, nem
imitá-lo mecanicamente no nosso tempo[7]. Seria uma operação artificial, fadada
ao fracasso porque não temos os pressupostos dos quais eles partiram, o
universo espiritual no qual eles se moviam.
Gregório Magno e os Padres no geral estavam certos sobre o
ponto fundamental que é ler as Escrituras em referência a Cristo e à Igreja.
Antes deles já o faziam, o vimos, Jesus e os apóstolos. A parte já superada das
suas exegeses está no ter acreditado que podiam aplicar este critério a cada
palavra particular da Bíblia, de modo muitas vezes imaginativo, levando ao
simbolismo (por exemplo aquele dos números) a excessos que hoje nos fazem rir
às vezes.
Podemos ter certeza, observa de Lubac, que, se estivessem
vivos hoje, eles seriam os mais entusiastas na utilização dos recursos críticos
colocados à disposição pelo progresso dos estudos. Orígenes realizou um
trabalho hercúleo no seu tempo deste ponto de vista, obtendo e comparando um
com o outro e com o texto hebraico as várias traduções gregas existentes da
Bíblia (a Exapla) e Agostinho não hesitava em corrigir algumas de suas
explicações à luz da nova versão da Bíblia que Jerônimo estava fazendo[8].
O que então permanece válido da herança dos Padres neste
campo? Talvez aqui, mais do que em qualquer outro lugar, eles têm uma palavra
decisiva a dizer para a Igreja de hoje que temos de tentar descobrir. O que
caracteriza a leitura da Bíblia dos Padres, além das suas elaboradas alegorias
e ousadas aplicações, além da mesma doutrina dos quatro sentidos da Escritura?
De cima para baixo e cada ponto seu é uma leitura de fé: partia da fé e levava
à fé. Todas as suas distinções entre leitura histórica, alegórica, moral e
escatológica se resumem hoje a uma só distinção: aquela entre uma leitura de fé
da Escritura e uma leitura privada de fé, ou ao menos privada de uma certa
qualidade de fé.
Vamos deixar de lado os estudiosos da Bíblia não crentes que
lembrei no início, para os quais ela é só um livro interessante, mas só humano.
A diferença que eu gostaria de evidenciar é mais sutil e passa entre os mesmos
crentes. É a distinção entre uma leitura pessoal e uma leitura impessoal da
palavra de Deus. E tento explicar o que entendo. Os Padres se aproximavam da
palavra de Deus com uma pergunta constante: o que ela diz, agora e aqui, à
Igreja e a mim pessoalmente? Estavam convencidos de que ela sempre traz novas
luzes e novos compromissos.
“Toda a Escritura, está escrito, é inspirada por Deus ” (2
Tm 3,16). A expressão que se traduz como “inspirado por Deus”, ou “divinamente
inspirada”, na língua original, é uma palavra única, theopneustos, que contém
os dois vocábulos de Deus (Theos) e de Espírito (Pneuma). Tais palavras tem
dois significados fundamentais. O significado mais conhecido é aquele passivo,
revelado em todas as traduções modernas: a Escritura é “inspirada por Deus”. Um
outro passo do Novo Testamento explica assim este significado: “Movidos pelo
Espírito Santo falam aqueles homens (os profetas) de parte de Deus” (2 Pd 1,21).
É, em definitiva, a doutrina clássica da inspiração divina da Escritura, aquela
que proclamamos como artigo de fé no Credo, quando dizemos que o Espírito Santo
é aquele “que falou pelos profetas”.
Da inspiração bíblica se ilumina, normalmente, quase apenas
um efeito: a infalibilidade bíblica, ou seja, o fato de que a Bíblia não contém
nenhum erro (se entendemos “erro”, corretamente, como ausência de uma verdade
possível humanamente, em um determinado contexto cultural e, portanto, exigível
pelo escritor). Mas a inspiração bíblica fundamenta muito mais do que a simples
infalibilidade da Palavra de Deus (que é uma coisa negativa); fundamenta,
positivamente, a sua inexauribilidade, a sua força e vitalidade divina. A
Escritura, dizia Santo Ambrósio, é theopneustos não só porque é “inspirada por
Deus”, mas também porque é “inspirante Deus”, porque inspira a Deus[9]! Agora
inspira a Deus!
“Com o que podemos comparar as palavras da Sagrada Escritura
– escreve São Gregório – se não com uma pederneira, na qual se esconde o fogo?
Ela é fria quando se segura com a mão, mas atingida pelo ferro, solta faíscas e
gera fogo[10]”.
A Escritura não contêm só o pensamento de Deus fixado uma
vez por todas; contém também o coração de Deus e a sua vontade viva que lhe
indica o que quer de você em um certo momento, e talvez só de você. A
constituição conciliar Dei Verbum recolhe também esta linha da tradição quando
diz que “as sagradas Escrituras inspiradas por Deus [inspiração passiva!] e
redigidas uma vez por todas, comunicam imutavelmente a palavra do mesmo Deus e
fazem ressoar nas palavras dos profetas e dos Apóstolos a voz do Espírito Santo
[inspiração ativa!][11]“. Portanto, não se trata só de ler a palavra de Deus,
mas também de fazer-se ler por esta; não somente de perscrutar as Escrituras,
mas de deixar-se perscrutar pelas Escrituras. Trata-se de não aproximar-se dela
como os bombeiros entravam uma vez entre as chamas, ou seja, com ternos de
amianto que os faziam passar incólumes entre o fogo.
Retomando a imagem de São Tiago, muitos Padres, entre os
quais o nosso Gregório Magno, comparavam a Escritura a um espelho[12]. O que
dizer de alguém que passasse todo o tempo examinando a forma e o material de
que é feito o espelho, a época em que remonta e tantos outros detalhes, mas não
se olhasse nunca no espelho? Assim faria aquele que passasse o tempo resolvendo
todos os problemas críticos que a Escritura coloca, as fontes, os gêneros
literários etc, mas não se olhasse nunca no espelho, ou melhor, nunca permite
que o espelho o olhe e o perscrute a fundo, até o ponto onde se dividem as
juntas das medulas. A coisa mais importante, sobre a Escritura, não é resolver
os seus pontos obscuros, mas colocar em prática os claros! Ela, diz ainda o
nosso Gregório, “se compreende fazendo-a[13]”.
Uma forte fé na palavra de Deus não é apenas essencial para
a vida espiritual do cristão, mas também para todas as formas de evangelização.
Há duas maneiras de preparar um sermão ou qualquer proclamação da fé, oral ou
escrita. Eu posso, antes de sentar-me à mesa e escolher eu mesmo a palavra a
ser anunciada e o tema a ser desenvolvido, baseando-me nos meus próprios
conhecimentos, nas minhas preferencias, etc., e depois, uma vez preparado o discurso,
colocar-me de joelhos para pedir apressadamente a Deus que abençoe o que
escrevi e dê eficácia às minhas palavras. É já uma coisa boa, mas não é o
caminho profético. Devemos seguir a ordem inversa: primeiro de joelhos, depois
à mesa.
Temos que começar da certeza da fé que, em todas as
circunstâncias, o Senhor Ressuscitado tem no coração uma palavra sua que deseja
fazer chegar ao seu povo. E ele não a deixa de revelar ao seu ministro, se
humildemente e com insistência ele a pede. No começo se trata de um movimento
quase imperceptível do coração: uma pequena luz que se acende na mente, uma
palavra da Bíblia que começa a atrair a atenção e que ilumina uma situação.
Verdadeiramente, “a menor de todas as sementes”, mas depois você percebe que
dentro estava tudo; havia um trovão capaz de derrubar os cedros do Líbano.
Depois você se coloca à mesa, abre os seus livros, consulta as suas anotações,
consulta os Padres da Igreja, os mestres, os poetas… Mas já é outra coisa. Não
é mais a Palavra de Deus à serviço da sua cultura, mas a sua cultura à serviço
da Palavra de Deus.
Orígenes descreve bem o processo que leva a esta descoberta.
Antes de encontrar na Escritura o alimento – dizia – era preciso suportar uma
certa “pobreza” dos sentidos; a alma é cercada pela escuridão em todos os
lados, só se encontra em ruas sem saída. Até que, de repente, depois de
trabalhosa pesquisa e oração, eis que ressoa a voz do Verbo e imediatamente
algo se ilumina; aquele que ela procurava lhe vai ao encontro “pulando sobre as
montanhas e saltando pelas colinas” (cf. Ct 2,8), ou seja, abrindo-lhe a mente
para receber uma palavra sua forte e luminosa[14]. Grande é a alegria que
acompanha este momento. Ela fazia dizer a Jeremias: “Quando as tuas palavras
vieram a mim, as devorei com avidez; a tua palavra foi a alegria e o gozo do
meu coração” (Jer 15,16).
Normalmente, a resposta de Deus vem na forma de uma palavra
da Escritura que, no entanto, naquele momento revela a sua importância
extraordinária para a situação e para o problema a ser tratado, como se tivesse
sido escrita especificamente para ele. Ao fazer isso, ele fala, de fato, “como
com palavras de Deus” (cf. 1 Pd 4,11). Este método vale sempre: para os grandes
documentos, como para a lição que o mestre deu aos seus noviços, para a douta
conferência como para a humilde homilia dominical.
Todos nós tivemos a experiência do que pode fazer uma única
palavra de Deus profundamente acreditada e vivida primeiramente por aquele que
a pronuncia e às vezes até mesmo sem o seu conhecimento; muitas vezes deve-se
constatar que, entre tantas outras palavras, aquela foi a que tocou o coração e
levou mais de um ouvinte ao confessionário. A experiência humana, as imagens,
as histórias vividas, nada de tudo isso está excluído da pregação evangélica, mas
deve ser submetida à palavra de Deus que deve estar por acima de tudo. Foi o
que nos recordou o Santo Padre nas páginas dedicadas à homilia da “Evangelii
gaudium” e é quase presunçoso de minha parte pensar que eu poderia acrescentar
algo.
Gostaria de terminar esta meditação com um pensamento de
gratidão para com os irmãos judeus, até mesmo como uma felicitação pela próxima
visita do Santo Padre a Israel. Se nos divide deles a interpretação que lhe
damos, nos une o comum amor pelas Escrituras. No museu de Tel Aviv tem uma
pintura de Reuben Rubin onde se veem dois rabinos que apertam, um no peito e
outro na bochecha, os rolos da palavra de Deus, e os beijam como se beija a
própria esposa. Com os irmãos hebreus é possível algo de análogo àquilo que é o
ecumenismo espiritual entre cristãos, ou seja, um colocar juntos, em um clima
de diálogo e de estima recíproca, aquilo que nos une, sem ignorar ou esconder o
que nos separa. Não podemos nos esquecer que recebemos deles as duas coisas
mais preciosas que temos na vida: Jesus e as Escrituras.
Também neste ano, a Páscoa hebraica cai na mesma semana que
a cristã. Desejamos a nós mesmos e a eles, Feliz Páscoa, Santo e Feliz Pesach.
[Tradução Thácio
Siqueira/ZENIT]
[1] Paul Claudel, L’épée et le miroir: Les sept douleurs de la Sainte
Vierge , Paris: Gallimard, 1939), 74-75.
[2] Orígenes, Comentário a
João, 10, 110 (GCS, Origenes vol. 4, p. 189)
[3] Cf. H. de Lubac, Histoire
et Esprit. L’intelligence de l’Ecriture d’après Origène, Aubier, Paris 1950.
[4] H. de Lubac, Exegèse
Mèdiévale. Les quatre sens de l’Ecriture, Aubier, Paris 1959, vol. I,1, p. 189
; vol. I,2, p. 537).
[5] Gregorio Magno, Homilias
sobre Ezequiel, II, IX, 8.
[6] Gregorio Magno,Homilias
sobre Ez. I, IX, 30.
[7] H. de Lubac, História e
Espírito, cit. , pp. 629 ss.
[8] O faz por exemplo a
propósito do significado da palavra “páscoa”, em Enarrationes in Psalmos 120,6
(CC 40, p. 1791).
[9] Ambrosio, De Spiritu
Sancto, III, 112.
[10] Gregorio Magno, Homilias
sobre Ezequiel, II,10,1.
[11] Dei Verbum, n. 21.
[12] Gregorio Magno, Moralia,
I, 2, 1 (PL 75, 553D).
[13] Ib. I, 10,31.
[14] Cf Origene, In Mt Ser., 38 (GCS, 1933, p. 7); In Cant.,3 (GCS,
1925, p. 202).
Fonte: www.cantalamessa.org/?p=2337&lang=pt
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