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“Os órgãos de Estado ainda tendem a fazer uma diferenciação, de modo que os direitos civis e políticos acabem tendo, na prática, uma maior exigibilidade do que os direitos sociais”, pontua o Procurador Regional da República do Rio Grande do Sul.
O arcabouço legal que garante o acesso à alimentação adequada já existe e é garantido pela Constituição Federal brasileira. Contudo, o Brasil precisa de “instrumentos mais claros e específicos para a exigibilidade desse direito”, avalia Paulo Leivas, em entrevista concedida à IHU On-Line,
pessoalmente.
A preocupação está relacionada com o fato de que as
pessoas não sabem a que órgãos recorrer quando se encontram em uma
situação de insegurança alimentar ou de violação desse direito. Segundo
ele, “existem órgãos que protegem os direitos humanos em geral, como o
próprio Ministério Público, órgãos de Direitos Humanos
em âmbito federal e estadual, mas são órgãos gerais. Talvez o que
esteja faltando é um órgão específico para a proteção e a realização do
direito à alimentação em cada esfera de governo: na esfera federal, nas
esferas estaduais e nas esferas municipais”.
Ações como essa, entretanto, demandam
que as autoridades assumam e reconheçam “que a alimentação é um direito
humano, não é uma questão só de política pública; isso significa que, se as pessoas não têm acesso à alimentação, um direito está sendo violado”, acentua.
Para Leivas, o debate
democrático perpassa por resolver questões como a da fome e do acesso à
alimentação. “Não é possível existir uma verdadeira democracia, se
existem pessoas que não têm acesso a uma alimentação adequada ou vivem
em uma situação de miséria. Esse tipo de situação é incongruente, é
incompatível com uma democracia”, frisa.
Paulo Leivas
é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre e doutor em Direito pela mesma
instituição. Atualmente leciona no Curso de Mestrado em Direitos Humanos
da UNIRITTER e é membro do Ministério Público Federal, onde exerce o
cargo de Procurador Regional da República, com atuação na 4ª Região.
Também é coordenador do Núcleo de Apoio Operacional (NAOP) da 4ª Região
da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O Brasil dispõe de um suficiente aparato legal para a garantia do direito a uma alimentação adequada e nutritiva?
Paulo Leivas - Sim, a resposta é afirmativa. O Brasil possui diversos instrumentos normativos que garantem o direito à alimentação adequada, tanto porque o Brasil é signatário e incorporou, ao Direito brasileiro, Tratados Internacionais de Direitos Humanos que dispõem sobre o direito à alimentação, como também porque o Brasil reconhece na legislação interna esse direito, por meio de uma lei específica chamada Lei da Segurança Alimentar. Em nível constitucional, no ano de 2010 o Direito Humano à Alimentação foi acrescentado ao hall dos direitos sociais e direitos fundamentais sociais.
IHU On-Line – O senhor citou a
Lei de Segurança Alimentar. Quais são, além desta lei, os principais
documentos legais que respaldam o acesso a direitos sociais como também à
saúde e à alimentação?
Paulo Leivas – No caso da saúde existem muitos instrumentos legais e muitas leis que garantem esse direito; a Lei Orgânica da Saúde é a principal. No caso da alimentação, o principal instrumento legal é a Lei de Segurança Alimentar
em nível nacional, além das leis específicas estaduais de Segurança
Alimentar. O principal instrumento é a Constituição Federal, que
incorpora e fala expressamente em direito humano e direito à
alimentação.
“O Brasil possui diversos instrumentos normativos que garantem o direito à alimentação adequada” |
IHU On-Line – Esse arcabouço legal é suficiente para a garantia do acesso à alimentação adequada?
Paulo Leivas – Existe um arcabouço legal, mas o que precisamos no Brasil
são instrumentos mais claros e específicos para a exigibilidade desse
direito. Por exemplo, um grupo de indivíduos que se encontra em uma
situação de violação do Direto à Alimentação
ou de insegurança alimentar, recorre a quem? Que órgãos esse grupo
acessa para reivindicar e demandar esse direito? Existem órgãos que
protegem os direitos humanos em geral, como o próprio Ministério Público, órgãos de Direitos Humanos
em âmbito federal e estadual, mas são órgãos gerais. Talvez o que
esteja faltando é um órgão específico para a proteção e a realização do
direito à alimentação em cada esfera de governo: na esfera federal, nas
esferas estaduais e nas esferas municipais. Para isso, os governantes,
as autoridades precisam assumir ou reconhecer que a alimentação é um
direito humano, não é uma questão só de política pública; isso significa
que, se as pessoas não têm acesso à alimentação, um direito está sendo
violado.
IHU On-Line – Esse modelo de uma
instituição que atuaria principalmente na questão do direito à
alimentação já existe? Há alguma experiência nesse sentido no Brasil ou
em termos mundiais?
Paulo Leivas – Não sei
se a criação de um órgão específico seja a melhor solução. Talvez uma
possibilidade seja a de os órgãos de proteção aos direitos humanos
assumirem o papel de trabalhar com direitos humanos.
Existe uma questão cultural de que direitos humanos
são tão somente os direitos civis e políticos, os direitos de
liberdade, direito de não ser discriminado; esses são os temas com os
quais os órgãos de direitos humanos em geral trabalham. Talvez, os
órgãos de direitos humanos precisam assumir e reconhecer que os direitos
sociais e, principalmente, o direito à alimentação também é um direito
humano, e possam, então, trabalhar na visibilidade desses direitos.
IHU On-Line – Você citou os
direitos civis. A legislação brasileira faz distinção entre direitos
humanos, direitos fundamentais e direitos sociais?
Paulo Leivas – Explicitamente não faz. O principal instrumento normativo que temos é a Constituição Federal de 1988.
Embora ela trate dos direitos sociais em um artigo separado dos
direitos civis e dos direitos políticos, em nenhum momento é possível
encontrar na Constituição qualquer tratamento
diferenciado entre tais direitos. Mas de que forma esses direitos são
trabalhados na prática é outra história, porque os governos, os órgãos
de Estado ainda tendem a fazer essa diferenciação, de modo que os
direitos civis e políticos acabem tendo, na prática, uma maior
exigibilidade do que os direitos sociais.
IHU On-Line – De que forma o direito a uma alimentação adequada está relacionado com a democracia?
Paulo Leivas – Não é
possível existir uma verdadeira democracia se existem pessoas que não
têm acesso a uma alimentação adequada ou vivem em uma situação de
miséria. Esse tipo de situação é incongruente, é incompatível com uma
democracia. Por isso, o conceito de democracia material não é uma
questão só de garantia e de participação política. Ele implica em
condições ou — usando a palavra de Armatya Sen [1] — na capacidade de exercício dessa democracia, e isso pressupõe cidadãos com acesso à alimentação adequada.
NOTA:
[1] Amartya Sen (1933): economista indiano. Foi laureado com o Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel de 1998, pelas suas contribuições à teoria da decisão social e do "welfare state".
Sua maior contribuição é mostrar que o desenvolvimento de um país está
essencialmente ligado às oportunidades que ele oferece à população de
fazer escolhas e exercer sua cidadania. E isso inclui não apenas a
garantia dos direitos sociais básicos, como saúde e educação, mas também
segurança, liberdade, habitação e cultura.

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