IHU - A indissolubilidade
faz parte daquelas "fórmulas clássicas" com as quais a doutrina
expressou a relação com a verdade mediante uma "negação de negações".
Ninguém pode negar como esse conceito soube orientar com força e
determinação não só o pensamento, mas também as vidas e os desejos de
muitas gerações de cristãos.
Publicamos aqui alguns trechos da apresentação do livro Indissolubile? Contributo al dibattito sui fedeli divorziati risposati (Ed. Cittadella), do teólogo italiano Andrea Grillo.
Grillo é professor ordinário de teologia sacramental e de filosofia da Pontificio Ateneo S. Anselmo, em Roma. Também leciona liturgia no Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia S. Giustina, em Pádua, e no Instituto Augustinianum, em Roma.
O artigo foi publicado no blog Come Se Non, 30-04-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"O que não morre, e o que pode morrer"
Dante Alighieri
Um grande ponto de interrogação acompanha o termo "indissolúvel"
na capa deste livro. A grande pergunta que é levantada com esse ponto
de interrogação não deve ser mal interpretada. Ela se coloca,
abertamente, na ampla trilha que apareceu por mérito da "reviravolta
pastoral" produzida no grande mar de Deus – pelagus infinitae substantiae – pela grande virada que o barco da Igreja fez com o Concílio Vaticano II. Ela representa uma oportunidade sem igual para reler e reinterpretar a tradição cristã.
Mediante a decisiva distinção entre "substância da antiga doutrina" e
"formulação do seu revestimento", essa reviravolta configura uma
relação mais adequada entre continuidade substancial da doutrina e
descontinuidade expressiva da tradição. Isto parece ser particularmente
urgente sobretudo no que diz respeito, em geral, à teologia do
matrimônio e, em particular, ao modo de abordar as questões dos "fiéis divorciados recasados".
Gostaria aqui de afirmar, do modo mais explícito, que, sem essa
"reviravolta", a tradição doutrinal da Igreja Católica correria o risco
de bloquear a si mesma, de modo quase integral, a possibilidade de
realmente entender as questões que hoje atravessam a sociedade e a
cultura, e dizem respeito, não secundariamente, a sujeitos crentes,
batizados e praticantes.
Só se a Igreja, diante desses desenvolvimentos, souber se deixar
interrogar profundamente sobre si mesma, sobre o modo de ser fiel ao
Evangelho e à Palavra do Senhor é que ela será capaz de corresponder
adequadamente aos desafios que a cultura tardo-moderna lança de modo
novo e surpreendente às formas de vida matrimonial e familiar.
A "reviravolta pastoral", portanto, indica duas oportunidades que não devem ser ignoradas:
a) de um lado, ela desenvolve na Igreja uma reflexão
que não pode excluir que se precisa de um refinamento da doutrina.
Sendo forçada a se interrogar radicalmente sobre a substância da
doutrina – diante de profundas mudanças das formas de vida, do controle
social, das formas do consenso e das escolhas dos sujeitos – a tradição
eclesial pode aproveitar a ocasião para encontrar as formas de um
anúncio do "evangelho do matrimônio" que saiba discernir acuradamente
entre "o que não morre" e "o que pode morrer".
b) De outro lado, se a posição eclesial se enrijece
ao identificar a substância da própria tradição apenas em uma formulação
drástica e peremptória da doutrina, ela corre o risco de confundir os
níveis da substância com os da expressão, até perder todo contato com a
história, em razão de uma defesa radical não da verdade, mas sim de uma
formulação dela, que mostra que não é mais adequada para mediar o
evangelho em uma época diferente da história da Igreja. (…)
[A indissolubilidade] faz parte daquelas "fórmulas clássicas" com as
quais a doutrina expressou a relação com a verdade mediante uma "negação
de negações". Isso foi feito por diversas experiências centrais da vida
de fé: para a autoridade da página bíblica, falou-se de "inerrância";
para a autoridade do bispo de Roma como papa, falou-se de
"infalibilidade"; assim, para o desígnio de unidade que Deus reserva à
relação entre homem e mulher, utilizou-se o termo "indissolubilidade".
Ninguém pode negar como esse conceito soube orientar com força e
determinação não só o pensamento, mas também as vidas e os desejos de
muitas gerações de cristãos.
Mas a força com que a tradição pode continuar sendo fecunda deve
levar em conta o limite intrínseco de toda "fórmula negativa". Negar uma
negação é uma coisa; afirmar positivamente uma verdade é outra.
Que a unidade que Deus dá à comunhão entre homem e mulher implica a
proibição de que o homem possa dissolvê-la – e isso certamente deve ser
confirmado com toda a força necessária – não é uma afirmação que decide,
imediatamente, aquelas problemáticas de experiência de si e do outro
que derivam – de modo original e não assimilável ao passado – da nova
consciência tardo-moderna do sujeito livre, titular de direitos, que
vive o matrimônio também sempre segundo as lógicas do sentimento e do
afeto, e que não pode simplesmente "adequar-se" a um modo de compreender
aquela experiência, que já responde a outro modelo e a outro estágio da
civilização e da autoconsciência.
A "transformação da intimidade", para além das teorias com que ela é
interpretada, é um fenômeno que modificou e desenvolveu profundamente a
experiência dos sujeitos tardo-modernos e que não pode ser liquidada,
simplesmente, como um tema ao qual devem ser aplicadas as refutações,
embora necessárias, mas muitas vezes autorreferenciais, de uma teologia
apologética.
Repito: aqui não está em discussão a substância da doutrina daquilo
que foi chamado de "indissolubilidade matrimonial". Aqui, deve ser
discutida a adequação com que o desígnio de unidade que Deus dispôs para
o amor entre homem e mulher possa ser plenamente expressada por essa
categoria de "indissolubilidade" e, em particular, pela sua concepção
jurídico-ontológica.
Essa discussão, que diz respeito à relação entre substância da
doutrina e sua formulação linguística, é um ponto preliminar decisivo
para uma correta formulação da problemática dos "fiéis divorciados
recasados".
Por um lado, de fato, se mantivermos firme a identificação da
doutrina eclesial com essa formulação clássica, encontramos
imediatamente e sem grande esforço uma solução radical da questão, no
sentido de que a própria questão não tem consistência, não pode
subsistir. É a formulação clássica que, tendo amadurecida em um contexto
civil, cultural e eclesial profundamente diferente do nosso, hoje nem
sequer é capaz de reconhecer a questão dos "fiéis divorciados recasados"
no seu porte social e existencial; ou, com toda a boa fé, ela propõe
soluções marginais, que, no fundo, não reconhecem o caráter problemático
dos fatos que querem interpretar. (…)
Como tentarei mostrar, ao conceito "objetivo" de "indissolubilidade",
ao qual a sociedade contemporânea tentou contrapor ao conceito de
"subjetivo" de "disponibilidade", devemos aproximar o conceito
"intersubjetivo" de "indisponibilidade".
De fato, uma teoria clássica da indissolubilidade pode encontrar uma
solução para a "segunda união" apenas de dois modos: ou negando a
primeira união (mediante uma verificação da sua nulidade do matrimônio)
ou influindo sobre a segunda união (ou mediante o pedido de retorno à
primeira união ou, no caso de irreversibilidade, mediante o pedido de
viver a segunda união "como irmão e irmã").
Em vez disso, uma teoria da "indisponibilidade" pode reconhecer que,
sem nada tirar da radicalidade da indicação evangélica acerca da unidade
dos dois cônjuges, pode-se obter uma perspectiva mais "pudica" acerca
da existência do vínculo aceitando que ele também, assim como os
cônjuges, "possa morrer".
A "morte moral do vínculo" assume, em mais de um caso, a
característica da indisponibilidade, ou seja, não depende diretamente de
uma "decisão" dos cônjuges.
Se esse fosse o caso, a Igreja poderia admitir – em determinadas
circunstâncias e não como uma lei geral – que o reconhecimento da nova
união não precisaria se fundamentar na "inexistência original" da união
anterior, mas poderia constatar a "morte do vínculo" e, assim, descerrar
o horizonte de um "novo início" possível, vivível e reconhecível também
no plano da oficialidade eclesial.
Em substância, se trataria de unir "radical" e "pudico". De deixar
intacto o impulso radical profético à unidade, exigido pelo Evangelho,
mas conjugando-o com um sadio e pudico realismo, devido à história e
requerido também pelo bom senso.
Obviamente, em todas essas hipóteses, trata-se de uma reflexão "de lege condenda", que, mesmo não estando privada de precedentes no Oriente e no Ocidente,
deveria ser assumida abertamente por parte do magistério da Igreja como
uma perspectiva que, sem mudar a substância da doutrina, se dispusesse a
mudar profundamente a disciplina e a linguagem da tradição.
Uma corajosa tradução em favor da inteligência da tradição: essa me
parece ser a atual tarefa eclesial. Não é fácil, certamente; mas ainda
menos fácil é se iludir que se possa abrir mão dela; a menos que se
queira remover totalmente a questão e se queira se fechar – segundo um
instinto antimoderno bastante enraizado – em uma Igreja ainda mais
autorreferencial .
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