IHU - “O Bispo Francisco não acredita no ‘bem’. Seu
projeto de vida, de Igreja e de futuro é a ‘bondade’. Porque só a
bondade é digna de fé. Em suma, a bondade não é nada mais – e nada menos
– que viver de tal maneira que quem vive comigo, seja quem for, se
sinta bem. Esta é a bondade que eu desejo.”
A reflexão é do teólogo José María Castillo, em seu blog Teología sin Censura, 18-05-2014. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
É um fato que o atual Bispo de Roma, o Papa Francisco,
com as coisas que faz e com as que deixa de fazer, está desconcertando
muita gente. E, evidentemente, não faltam aqueles que passam do
desconcerto ao desengano, à desilusão ou mesmo à indignação. Para que,
por exemplo, canonizar no mesmo dia João Paulo II e João XXIII?
Se não estava de acordo em elevar aos altares a um deles, por que
equilibrou as coisas subindo também o outro? Esses “remendos”!, pensam,
podem ser percebidos com frequência. E acabam por não contentar a
ninguém.
Com uma consequência que nos deixa mais inquietos. Porque é fatal. Já
que, com estes vaivéns – primeiro uma coisa e na sequência outra quase
contrária –, são muitos os que se perguntam: “afinal, para onde este
homem vai nos levar?” Mais ainda, sabe sequer, com certeza, para onde
temos que ir? Se, não faz muito tempo, recebeu Gustavo Gutiérrez e aplaudiu sua Teologia da Libertação, como se explica que agora receba Kiko Argüello e aprove com todas as suas bênçãos o Caminho Neocatecumenal?
Evidentemente, eu sei que este papa colocou em prática um estilo de
exercício do papado que pouco ou nada tem a ver com os usos e costumes
dos papas anteriores, inclusive João XXIII, que ainda
se deixava levar sentado na cadeira gestatória e coroado com a tiara,
que era uma cereja no bolo da ostentação e a pompa do papado à moda
antiga. Isso, graças a Deus, já acabou. Mas, é evidente que (como pensa
muita gente), mudando apenas o estilo de aparecer em público – e isso só
até certo ponto –, não vamos chegar muito longe. Não traz à Igreja o
que mais necessitamos neste momento e do jeito como as coisas estão em
nosso mundo. E na religião.
Não pretendo, como é lógico, apresentar aqui a solução para o
problema que acabo de indicar. Entre outras razões, porque eu não sei
qual é a solução. De qualquer modo, temos um fato que está à vista de
todos, e que para mim, pelo menos, me dá muita luz. É o que quero
explicar na sequência.
Para começar, será útil dar-se conta de que “bom” não é o mesmo que “bondade”. Já Nietzsche, na Genealogia da Moral
(I, 2), fez com que nos déssemos conta de que o conceito “bom” entranha
uma sentença radical: “o juízo ‘bom’ não procede daqueles a quem se
dispensa ‘bondade’! Antes, foram ‘os bons’ mesmos, ou seja, os nobres,
os poderosos, os homens de posição superior e elevados sentimentos que
se sentiram e denominaram a si mesmos e as suas ações como bons, ou
seja, como algo de primeira categoria, em contraposição a todo o baixo,
abjeto, vulgar e plebeu”. Para onde tudo isso nos leva? Muito simples.
Tão simples quanto patético.
É “bom” e está “bem” o que convém aos que têm o poder de fixar o que é
bom e está bem. Por exemplo, o que é bom e está bem é uma ditadura, e
não uma democracia. Por isso, as leis, os direitos, os privilégios...,
tudo isso muda segundo as conveniências de quem tem a faca e o queijo na
mão. E em última instância, em uma democracia, não é a mesma coisa se
quem está no poder é a esquerda ou a direita. Assim como também não é a
mesma coisa governar num regime democrático com maioria absoluta ou
tendo que fatiar as decisões para alcançar e manter os pactos com quem
pode dar os votos necessários para aprovar determinada lei. Tudo isso é
do conhecimento de todos. Mas, muita gente não se dá conta de que isto
mostra claramente até que ponto o “bem” e o “mal” dependem de quem tem o
poder necessário para decidir e impor o que é bom e o que é mal.
A “bondade” é outra coisa. A bondade é sempre “relacional”. É na
relação com os outros, sobretudo na relação com os que menos podem me
retribuir, onde mais e melhor se detecta quem age não para conseguir o
“bem”, mas porque a “bondade” lhe brota das entranhas. Eu já disse e
repito: “o espelho do comportamento ético não é a própria consciência,
mas o rosto de quem convive comigo”. E consta que, ao menos assim como
eu vejo este assunto, a “bondade” não é a mesma coisa que o “buenismo”.
Porque uma bondade que não está edificada sobre a verdade, a justiça, a
honradez, a sinceridade e a transparência, não é bondade, mas hipocrisia
pura e dura.
Por isso, exatamente pelo que acabo de dizer, em um livro que publiquei há alguns dias, A laicidade do Evangelho,
escrevi o seguinte: “A genialidade de Jesus e de seu Evangelho
consistiu em deslocar o centro do fato religioso. A vida de Jesus, e o
cume daquela vida, que foi sua morte, constituíram o deslocamento do
fato central e determinante da religião. Este fato que, desde as suas
origens, foi o sacrifício ‘ritual’, ficou transformado pelo sacrifício
‘existencial’”.
“Jesus, com efeito, nem durante sua vida, nem em sua morte, ofereceu
“rito” algum. O que Jesus ofereceu foi sua própria “existência”, que
foi, em todos os momentos, uma existência para os outros. Por isso se
pode (e se deve) afirmar, com todo o direito, que Jesus deslocou o
centro da religião. Esse centro deixou de ser o ritual sagrado, com suas
cerimônias, seu templo, seu altar e seus sacerdotes e passou a ser o
comportamento ético de uma vida que, desde a própria humanidade,
contagia humanidade, e desde a sua própria felicidade, contagia
felicidade. Desta maneira, a bondade ética substituiu o ritual
religioso.”
Nada mais – e nada menos – que isto, é o que nos ficou da religião. E
é nisto que se deve centrar a tarefa da Igreja. Na minha maneira de ver
as coisas, é exatamente isto que o atual Bispo de Roma, o Papa Francisco,
colocou em ação. E por isto, porque o caminho que empreendeu é tão novo
quanto desconcertante, eu me pergunto se não temos dificuldades para
entendê-lo porque, no fundo, o que não conseguimos entender (e nos dá
medo entendê-lo) é a laicidade do Evangelho. O Bispo Francisco
não acredita no “bem”. Seu projeto de vida, de Igreja e de futuro é a
“bondade”. Porque só a bondade é digna de fé. Em suma, a bondade não é
nada mais – e nada menos – que viver de tal maneira que quem vive
comigo, seja quem for, se sinta bem. Esta é a bondade que eu desejo.

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