Em entrevista publicada na Revista Catolicismo de abril/2014 (Nº 760), o Cardeal Raymond Leo Burke
esclarece importantes pontos de moral católica, especialmente no que concerne à
instituição familiar. Em nome do relativismo moral — que penetrou até mesmo em
ambientes católicos — a família vem sendo paulatinamente desagregada.
O Emmo. Cardeal Raymond Leo Burke foi recentemente
entrevistado pela pela Srta. Izabella Parowicz, da revista “Polonia
Christiana”, de Cracóvia. Nascido em Richland Center (Wisconsin, EUA) em 30 de
junho de 1948, ele exerce atualmente o cargo de Prefeito do Supremo Tribunal da
Signatura Apostólica — o mais alto tribunal da Santa Sé, que corresponde ao
nosso Supremo Tribunal Federal. Anteriormente, foi Bispo de La Crosse, em seu
estado natal, de 1994 a 2003, e Arcebispo de Saint Louis de 2003 a 2008. O
insigne purpurado é uma voz proeminente nos ambientes conservadores,
especialmente em assuntos atinentes à Igreja, à família e à política americana.
O Cardeal Burke e a referida revista polonesa concederam autorização a Catolicismo
para a reprodução de pontos salientes dessa importante entrevista.
Catolicismo — Eminência, é possível ser
parcialmente católico? Frequentemente ouvimos afirmações como: “Eu sou
católico, mas...”. Até que ponto é permitido aos católicos fazer
compromissos quando se trata de defender a vida humana, o matrimônio e a
família?
Cardeal Burke — A noção de “Catolicismo
parcial” é uma contradição nos termos, que reflete a presente tendência
cultural ao individualismo e ao relativismo; em outras palavras, a tendência de
acomodar qualquer realidade, sem respeito pela sua natureza objetiva, aos
próprios pensamentos e desejos. Os católicos que têm essa noção de sua fé e
prática católicas são algumas vezes chamados de católicos de “cafeteria”,
porque eles selecionam e escolhem entre os ensinamentos da Igreja sobre fé e
moral, aquilo que eles querem acreditar e seguir. Um verdadeiro católico
aceita, sem compromissos, todas as verdades que a Igreja ensina a respeito da
fé e da vida moral.
Catolicismo — Por que a inocência é
minimizada hoje em dia? Refiro-me à vida dos bebês em gestação, às crianças que
são violentadas psicologicamente durante as aulas de educação sexual obrigatória,
e à inocência entendida como a pureza de pensamentos e (antes do casamento)
pureza da carne.
Cardeal Burke — Uma agenda totalmente secular,
para ter sucesso, deve atrair as crianças e os jovens para a sua maneira de
pensar. A educação é a chave final para a sua vitória na sociedade. A única
maneira de ela conquistar as crianças e os jovens é usurpando o dever solene
dos pais e professores de educar de acordo com o que é verdadeiro, bom e belo.
Pais, e professores que trabalham com os pais na educação correta de seus
filhos, devem necessariamente respeitar por completo o período de inocência das
crianças e dos jovens. Respeitando essa inocência natural, que é um reflexo do
dom de Deus referente à consciência para todas as crianças, pais e professores
vão prepará-las, como também os jovens, para responder de forma clara e
corajosa a essas forças que roubariam sua inocência. Tanto dentro de si mesmos
— devido aos efeitos do pecado original — quanto fora, por exemplo, devido às
más companhias e más comunicações, como a pornografia na internet. Pais e
professores devem estar sempre vigilantes para que nada seja introduzido no
currículo que viole a inocência de uma criança, e até mesmo tentativas de
incutir gravemente na criança formas erradas de pensar — como, por exemplo, um
currículo aprovado por determinado governo que ensina a crianças de quatro e
cinco anos que o casamento pode assumir formas diversas da união duradoura,
fiel e procriativa de um homem e uma mulher.
Catolicismo — Hipócrates não era católico,
mas jurou o seguinte: “Eu não vou dar uma droga mortal a ninguém se
solicitado, nem darei uma sugestão para esse efeito. Do mesmo modo, não darei a
uma mulher um remédio abortivo. Em pureza e santidade eu vou conservar minha
vida e minha arte.” Hoje em dia, os ataques contra a vida humana estão se
tornando cada vez mais fortes. Mesmo médicos nominalmente católicos, que também
admitem o juramento de Hipócrates, tendem a assumir a sacralidade da vida
humana de modo leve e permitir soluções que envolvem morte (ou seja, o aborto e
a eutanásia), a fim de garantir a realização pessoal, o conforto, ou a eliminar
algum “problema” de um indivíduo. Como podemos evitar que esse mal intrínseco e
disfarçado se espalhe ainda mais?
Cardeal Burke — A situação que você descreve
é tragicamente real. Muitas vezes fico profundamente triste ao ver a arte
médica, que por sua natureza é dirigida para a cura e a preservação da vida
humana, ser reduzida a uma tecnologia de mutilação e morte. É fundamental dar
às crianças, entre as quais estão os futuros médicos do mundo, uma catequese
sólida, incluindo a formação essencial no que diz respeito à dignidade
inviolável da vida inocente e indefesa, à integridade do matrimônio e da
família, e ao livre exercício de uma consciência corretamente informada. Também
é fundamental proporcionar ocasiões aos médicos e a outros profissionais de
saúde de se unirem com vistas à educação continuada sobre as dimensões éticas e
religiosas dos cuidados da saúde e a edificação de sua solidariedade na luta
contra a cultura do secularismo e da morte. Um excelente exemplo de tal
trabalho é a Associação Médica Santa Gianna (http://www.stgiannaphysicians.org),
que tem desenvolvido a "Aliança Católica Juramento de Hipócrates do
Médico St. Gianna" (http://www.stgiannasphysicians.org/enshrinements/hippocratic_oath).
“É fundamental dar
às crianças catequese sólida, incluindo a formação essencial no que diz
respeito à dignidade inviolável da vida inocente e indefesa” |
Catolicismo — Nos últimos 50 anos, a
anulação eclesiástica se tornou uma maneira relativamente fácil para sair de um
casamento difícil ou inconveniente. Razões válidas para declarar um casamento
nulo e sem efeito muitas vezes são confundidas com meras desculpas para começar
uma nova vida. Houve casos em que um ou ambos os cônjuges ficticiamente mudaram
seu endereço para obter uma decisão favorável de outro tribunal diocesano de
ação rápida ou mais “arejado”. Ademais, enquanto um dos cônjuges tende para a
anulação, o outro é contrário a ela e — se a anulação for concedida —
eventualmente sofre muito, ou mesmo perde a fé. Além disso, parece haver um
novo nicho de mercado para advogados especializados nestes casos de anulação.
Poderia Vossa Eminência nos oferecer alguns insights sobre a maneira
como as mais altas autoridades judiciais da Igreja previnem o abuso da
instituição de anulação? Como devem os leigos resistir à tentação de usar a
anulação como uma “saída de emergência” do casamento indissolúvel?
Cardeal Burke — O Supremo Tribunal da
Signatura Apostólica tem a responsabilidade de supervisionar a administração
correta da justiça na Igreja. Isso inclui a justiça administrada pelos
tribunais matrimoniais, no caso da acusação de nulidade de um casamento por
parte de um ou de ambos os cônjuges. Por meio do processo empregado nos
tribunais matrimoniais, um processo estabelecido na lei universal da Igreja, o
juiz ou juízes chegam a uma decisão sobre a veracidade da alegação de que um
casamento foi nulo desde o início, mesmo que se ele pareceu ter sido um
casamento válido . A lei universal da Igreja também estabelece as bases sobre
as quais uma ou ambas as partes podem fazer tal afirmação. O processo é
direcionado apenas para a descoberta da verdade sobre a reivindicação, pois só
a verdade pode servir ao bem das partes envolvidas. A decisão do tribunal é
corretamente chamada de "declaração de nulidade", não uma
"anulação", de modo a não dar a impressão de que a Igreja está
anulando um casamento válido. A declaração significa que o juiz ou juízes — por
meio de um processo no qual tanto os argumentos a favor da validade do
casamento quanto todos os argumentos a favor da nulidade do matrimônio foram
cuidadosamente ponderados — concluíram com certeza moral que o casamento era
nulo desde o início. Certeza moral significa que o juiz ou juízes, depois de
terem ponderado todos os argumentos — considerando somente a Deus diante de
seus olhos —, não tem nenhuma dúvida razoável quanto à nulidade. O processo
também inclui os meios para as partes buscarem soluções eficazes, se elas
acreditam que a verdade não está sendo obedecida pelo processo.
A ruptura de um
casamento pode ser devida a uma causa distinta da nulidade do consentimento
matrimonial a partir do início do casamento. Por exemplo, ela pode ser devida
ao pecado de uma ou de ambas as partes. Uma parte só deve fazer a alegação de
nulidade do casamento quando estiver convencida de que seu casamento, que ela
pensava anteriormente que era válido, na verdade era inválido.
Além de receber
denúncias sobre possíveis injustiças cometidas nos tribunais locais, o Supremo
Tribunal da Signatura Apostólica também recebe um relatório anual sobre o
estado e a atividade de cada tribunal matrimonial. Depois de estudar o
relatório, envia observações ao tribunal matrimonial, para auxiliá-lo a realizar
mais corretamente o seu trabalho. A Signatura Apostólica também solicita às
vezes uma cópia da decisão definitiva em um caso de nulidade do casamento, a
fim de verificar que a justiça e, portanto, a verdade foi obedecida no processo
que conduziu à decisão. Por outro lado, a Signatura Apostólica tem competência
para conceder certos favores aos tribunais para a administração mais eficaz da
justiça.
Catolicismo — Gostaria de abordar a
questão dos políticos nominalmente católicos, que atuam contra o ensinamento da
Igreja — por
exemplo, apoiando publicamente o aborto ou a legalização de casamentos
"homossexuais". Vossa Eminência enfatiza frequentemente que a esses
políticos não se deve administrar a Santa Comunhão, de modo a evitar o pecado
de sacrilégio. Como os padres devem proceder de forma a garantir que esta
proibição cumpra não só uma punição, mas também uma função corretiva?
Cardeal Burke — A exclusão de receber a
Sagrada Comunhão, dos que persistem no pecado manifesto e grave depois de terem
sido devidamente advertidos, não é uma questão de punição, mas uma disciplina
que respeita o estado objetivo de uma pessoa na Igreja. Do mesmo modo como São
Paulo, no capítulo 11 da primeira Carta aos Coríntios, admoestou os primeiros
cristãos: "Para qualquer um que come e bebe sem discernir o corpo do
Senhor, come e bebe a sua própria condenação" (v. 29), assim também a
Igreja, ao longo dos séculos, admoestou aqueles envolvidos em pecado grave e
manifesto a não se aproximarem para receber a Sagrada Comunhão. No caso de um
político ou outra figura pública que age contra a lei moral em matéria grave e
ainda se apresenta para receber a Sagrada Comunhão, o sacerdote deve repreender
a pessoa em questão e, em seguida, se ele ou ela persiste em se aproximar para
receber a Sagrada Comunhão, o sacerdote deve se recusar a dar o Corpo de Cristo
para a pessoa. A recusa do padre de dar a Sagrada Comunhão é um ato nobre de
caridade pastoral, ajudando a pessoa em questão a evitar sacrilégio e
salvaguardar os outros fiéis do escândalo.
Catolicismo — A política do Presidente dos
Estados Unidos em relação à civilização cristã se torna cada vez mais
agressiva. Vossa Eminência nota algum sintoma de reações católicas contra essa
política? Em caso afirmativo, o que são elas; em caso negativo, por quê?
Cardeal Burke — É verdade que as políticas do
Presidente dos Estados Unidos da América se tornaram cada vez mais hostis à
civilização cristã. Ele parece ser um homem totalmente secularizado, que
promove agressivamente políticas anti-vida e anti-família. Agora ele quer
restringir o exercício da liberdade de religião à liberdade de culto, ou seja,
ele sustenta que se é livre para agir de acordo com sua consciência dentro dos
limites de seu lugar de culto; mas que, uma vez que a pessoa deixa o lugar de
culto, o governo pode obrigá-la a agir contra a sua consciência retamente
formada, mesmo na mais grave das questões morais. Tais políticas teriam sido
inimagináveis nos Estados Unidos até 40 anos atrás. É verdade que muitos fiéis
católicos, com uma liderança forte e clara de seus bispos e sacerdotes, estão
reagindo contra a crescente perseguição religiosa nos EUA. Infelizmente tem-se
a impressão de que uma grande parte da população não tem plena consciência do
que está ocorrendo. Em uma democracia, tal falta de consciência é mortal. Isso
leva à perda da liberdade, a qual um governo democrático existe para proteger.
A minha esperança é de que cada vez mais meus concidadãos, à medida que
perceberem o que está acontecendo, insistirão em eleger líderes que respeitem a
verdade da lei moral, uma vez que ela é respeitada nos princípios fundadores da
nossa nação.
“As políticas do
Presidente dos EUA se tornaram hostis à civilização cristã. Ele parece ser um
homem secularizado, que promove políticas anti-família”
|
Catolicismo — Há alguma esperança de que a
má tendência na legislação dos EUA relativa à proteção da vida possa ser
revertida? Os ativistas pró-vida são capazes de agir eficazmente neste assunto?
Por que a tática adotada pelos abortistas foi tão eficaz e como ela pode ser
combatida com sucesso?
Cardeal Burke — Há esperança de que as más
leis anti-vida dos Estados Unidos possam ser derrubadas, e de que o movimento
que impulsiona ainda mais essa legislação possa ser resistido. O movimento
pró-vida nos Estados Unidos tem trabalhado desde 1973 para reverter a decisão
injusta do Supremo Tribunal Federal que derrubou as leis estaduais que proíbem
o aborto provocado. É verdade que a decisão do Supremo Tribunal continua de pé,
mas também é verdade que o movimento pró-vida tem crescido, tornando-se cada
vez mais forte nos Estados Unidos, ou seja, cada vez mais os cidadãos,
especialmente os jovens, têm sido despertados para a verdade sobre o grave mal
do aborto provocado.
Há uma série de razões
pelas quais a legislação anti-vida e as decisões dos tribunais têm prevalecido
nos Estados Unidos até o presente. As forças da secularização têm sido e
continuam poderosas, e são apoiadas pela maior parte da mídia de massa. Houve
uma catequese gravemente defeituosa nos Estados Unidos durante várias décadas,
a qual deixou adultos e jovens mal equipados para defender a verdade da lei
moral. Houve também a tendência da Igreja de ser tímida quanto ao seu dever
solene de defender a verdade no fórum público, juntamente com uma interpretação
errônea da cláusula de não-estabelecimento da Constituição dos Estados Unidos.
Dita cláusula proíbe uma religião oficial, ou religião de Estado, nos EUA, mas
não proíbe a Igreja de testemunhar publicamente a verdade. A falsa
interpretação é geralmente chamada de "separação entre Igreja e
Estado" e restringiria a atividade da Igreja exclusivamente aos assuntos
eclesiásticos. Estes são alguns dos fatores que têm favorecido os movimentos
anti-vida e anti-família nos EUA.
“É verdade que a decisão do Supremo Tribunal continua de pé, mas também é verdade que o movimento pró-vida tem crescido cada vez mais nos EUA” |
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