sábado, 3 de maio de 2014

Santo Atanásio e a crise da fé no século IV

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Santo Atanásio (295-373) foi simultaneamente o Bispo mais amado e o mais odiado e perseguido do seu tempo. Para os seus defensores, Atanásio era a garantia da ortodoxia católica, o salvador da Fé, um autêntico sucessor dos Apóstolos; para os seus adversários, Atanásio era um orgulhoso, teimoso, intransigente, rebelde, insolente inimigo da paz e da concórdia entre os cristãos.

As perseguições pagãs

Desde o ano 33 houve perseguições contra a Igreja. Primeiro pelos judeus, depois pelos pagãos. Desde o ano 64, até ao 311, no Império Romano, que se estendia sobre três continentes – Europa, África e Ásia – ser cristão era digno da pena de morte, por proibição legal. Estalaram perseguições sangrentas, por vezes locais, outras vezes gerais. Milhares de cristãos: papas, bispos, sacerdotes e fiéis, depois de terem sofrido as mais espantosas privações e torturas, morreram mártires. Milhares de confessores padeceram as calúnias, a confiscação de todos os seus bens, o desterro, a fome, a sede e os trabalhos forçados. Houve também quedas lamentáveis e, inclusive, apostasias. São Cipriano reconhece-o. Foi uma luta de três séculos entre a Igreja Católica e as forças das trevas, que se serviam dos cultos pagãos, dos governos romano e persa e das seitas supostamente cristãs, que já então pervertiam a Bíblia. 
Nesse tempo, a Igreja cumpriu a sua missão pregando e defendendo a pureza da fé, custasse o que custasse. Não quis dialogar com os hereges nem com as autoridades pagãs que propunham o “diálogo inter-religioso”, com condição de colocar Cristo no mesmo nível dos ídolos Júpiter, Apolo, Mitra e os falsos profetas.
De 303 a 311, os Imperadores Diocleciano e Galério quiseram acabar com o Cristianismo, declarando guerra total contra a Igreja. O sangue cristão foi derramado a jorros.(1) Mas Cristo triunfou pelos seus mártires. “As perseguições causaram efeito contrário ao que prosseguiam os seus instigadores. A Igreja desenvolvia-se com o sangue dos mártires.” (2)

O triunfo do Cristianismo

Em 311, Galério, muito doente, deu-se conta, por experiência própria, do poder divino de Cristo, e reconheceu, pela primeira vez, a existência legal do Cristianismo.(3) Em 313, os Imperadores Constantino e seu cunhado e colega Licínio, deram liberdade à Igreja.
Em 324, Constantino é o único Imperador. Declara-se protetor da Igreja; manda construir basílicas em Roma, Constantinopla, Jerusalém; começa a cristianizar o Direito; declara o Domingo festa principal da semana; favorece o clero e a cristianização do Império. Será batizado antes de morrer, em 337.
Para salvar a fé na divindade de Cristo, Santo Atanásio sofreu calúnias, juízos iníquos, perigo de morte, cinco desterros durante 17 anos, ódios de muitos bispos e dos imperadores filiados à heresia, e finalmente a “excomunhão” pelo Papa Libério.(4) Contudo a Igreja proclamou-o santo, Padre da Igreja, Doutor e salvador da fé católica. A história reconhece que, sem a resistência e os sofrimentos heroicos de Santo Atanásio e dos seus companheiros bispos e sacerdotes, assim como do povo fiel, a fé católica teria naufragado no século IV. Naufrágio fomentado, favorecido e imposto ao povo católico por alguns teólogos, bispos e sacerdotes, intrigantes e racionalistas, que haviam tomado o poder na Igreja. Esses intrigantes, que representavam a Igreja oficial, utilizavam sem nenhum escrúpulo o poder do Direito Eclesiástico e Civil para perseguir os católicos fiéis e corromper a fé na divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A história de Santo Atanásio e da sua época ensina-nos que uma crise da fé pode ser provocada por alguns bispos que formem um “poderoso partido moderno” detentor do poder na Igreja. Prova, também, que lutar contra as autoridades oficiais para preservar a fé da contaminação legal, é necessário e meritório.

Parte II

A heresia de Ario antes do Concílio de Nicéia

Mal havia terminado a mais intensa e prolongada das perseguições à Igreja (303-311), quando as forças das trevas mudaram de tática e atacaram a fé mediante a heresia. Ataque mais perigoso, porque, desta vez, os destruidores da fé serão bispos e sacerdotes.
Ario (260-336), influente pároco de Alexandria, no Egito, deu início a uma heresia que negava a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. O herege dizia que Cristo era a primeira das criaturas de Deus e, como todas as demais, tirada do nada. Por ser a primeira criatura, chamava-se-Lhe Filho de Deus, mas não Deus verdadeiro igual ao Pai. Era uma criatura divinizada, mediante a Qual Deus criou as demais coisas, inclusive o Espírito Santo. Com essa blasfêmia, Ario destruía completamente a fé católica. “Atacava a verdadeira natureza do Cristianismo, ao atribuir a Redenção a um deus que não era verdadeiro Deus e que, por isso mesmo, era incapaz de redimir a humanidade. Assim, despojava a fé do seu caráter essencial.” (5)

A Igreja condena a heresia

No ano de 318, Ario começava a provocar muitas discussões por causa da sua heresia, que apresentava nos seus sermões como doutrina da Igreja.
Santo Alexandre, Bispo de Alexandria (312-328), apoiado pelo seu diácono e secretário Santo Atanásio, em um sínodo de mais de cem bispos, realizado em 319, condenou a heresia de Ario como uma inovação contrária à tradição católica. A fé católica sempre afirmou: “Cristo é o Filho de Deus feito Homem para nos salvar, Cristo é consubstancial ao Pai, quer dizer, da mesma substância que o Pai. Deus é Uno em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo”.
Ario rebelou-se, então, abertamente, caluniou o seu bispo e começou a propagar a sua heresia por todos os meios, e a pedir ajuda aos seus companheiros de estudos já bispos, em oposição com as regras eclesiásticas. Santo Alexandre teve que excomungar Ario e os seus partidários: dois bispos, oito sacerdotes e dez diáconos. Foi tomada essa forte medida para conjurar um grave perigo contra a fé. Ario recebeu apoio dentro e fora do Egito. Dentro apoiaram-no os seus amigos e muitas monjas seduzidas pela ciência e pela vida, aparentemente mortificada, do orgulhoso sacerdote. Fora, vários bispos seus amigos, como Eusébio de Nicomédia e Eusébio de Cesaréia, tomaram a defesa da sua heresia e propagaram-na, mas com mais astúcia, para não assustar os incautos.

Uma rede de hereges dentro da Igreja

Eusébio de Nicomédia era um poderoso prelado pela sua influência sobre Constância, irmã de Constantino, pela sua habilidade política e ambição. Para ter mais poder na Igreja, e apesar das regras eclesiásticas, tinha-se feito transferir do Bispado de Beirute para o de Nicomédia (Turquia), então capital imperial. Depois, fez-se nomear Patriarca de Constantinopla, troçando dos cânones da Igreja que ele mesmo havia assinado.
Rapidamente formou-se em favor de Ario uma poderosa aliança, que provocou um incêndio devastador em todo o Oriente do Império Romano. Os membros da rede ariana escreviam, tratavam de ganhar influência e amigos entre os bispos e governantes, e conseguiam-no. A sua ação gerava grande desordem na Igreja.

A resposta católica

Santo Alexandre e o seu secretário também escreviam para advertir os bispos da situação real do herege. Os Patriarcas de Antioquia, terceira Sé da Cristandade, e de Jerusalém, apoiavam Alexandre. Mas a desordem fomentada pelos arianos crescia e debilitava a posição da Igreja perante os pagãos e judeus. Constantino, preocupado com a desordem, enviou a Alexandria Ósio, Bispo de Córdova (Espanha). Ósio apoiou Santo Alexandre, mas não logrou pacificar os espíritos. Ante semelhante incêndio, grandes medidas eram necessárias.

Parte III (Continuação)

O Concílio de Nicéia em 325

No ano de 325, para apagar o incêndio provocado pelos hereges e conservar a paz e a ordem pública, Constantino convocou para a cidade de Nicéia o primeiro concílio de toda a catolicidade. No Concílio, a heresia foi condenada com horror pelos representantes do Papa Silvestre e por uns 300 bispos, menos dois. A fé na divindade de Cristo, sempre crida, foi novamente proclamada: Nosso Senhor Jesus Cristo é Deus igual e consubstancial ao Pai, ou seja, é Deus tendo a mesma substância divina que o Pai (Dz. 125). Ario e os seus cúmplices repeliram o Símbolo da Fé redigido no Concílio. Constantino desterrou-os.

A subversão ariana depois de Nicéia

Com a proclamação do Símbolo de Nicéia, tudo deveria entrar na ordem. Mas o intrigante Eusébio de Nicomédia, se bem que tivesse sido desterrado durante uns tempos por apoiar Ario, logrou conservar a heresia e perturbar todo o mundo cristão, durante meio século no Império Romano, e durante vários séculos fora do Império, através dos povos bárbaros convertidos pelo bispo ariano Ulfilas (311-383).
Com o apoio de seus amigos, ou por convicção ariana, ou por não ter entendido bem a fórmula consubstancial, o astuto Eusébio difundiu o semi-arianismo, cheio de ambiguidades que favoreciam a heresia. Agiu de tal modo que Constantino anistiou Ario em 327. No ano seguinte, Atanásio foi eleito bispo patriarca de Alexandria.
Enquanto Atanásio tratava de pôr ordem na Igreja do Egito, Ario, anistiado, queria regressar ao Egito. O bispo recusou-se a entrar em comunhão com ele, como queria Constantino. Os arianos de fora (os dois Eusébios e os egípcios hereges e cismáticos) começaram a difamar o santo e seus companheiros que guardavam a pureza da fé. Nos anos de 333 e 334, trataram, sem êxito, mediante sínodos, condenar Atanásio. Mas em 335, já queriam sua cabeça a todo custo e, de fato, lograram obter do Imperador o seu desterro na Alemanha.

Morte de Ario em 336

Por ordem de Constantino, enganado, Ario tinha de ser recebido na comunhão católica, desta vez em Constantinopla. O arcebispo, ameaçado de desterro, pediu ajuda ao Céu, orando e jejuando, para preservar a fé de tal contaminação. Deus atendeu sua oração. Na véspera de sua entrada triunfal na Igreja Católica, Ario morreu no banho, de morte repentina e vergonhosa.

Triunfo do arianismo (337-381)

Todavia, a morte do herege não afetou muito o seu partido, porque o chefe real da seita era o bispo Eusébio de Nicomédia.
Depois da morte de Constantino em 337, os “católicos oficiais”, hereges de fato, puderam converter Constâncio, filho de Constantino, à sua seita, e com o apoio do Imperador, expulsar os bispos católicos, tomando seu lugar. Em grande parte da Igreja Católica, desde 335 até 381, os hereges tinham conseguido tomar posse dos templos, basílicas, catedrais e conventos.
Por exemplo, Constantinopla estava nas mãos dos arianos desde o ano 351. A pequena comunidade católica sob o mando de São Gregório Nazianzeno (330-390), durante os anos 378-380, celebrava Missa numa casa particular transformada em capela.
A meta dos arianos era tomar o poder da Igreja por dentro e impor a sua “fé ariana” a toda a cristandade. O próprio Papa Libério foi desterrado durante dois anos, até que assinasse uma fórmula de fé ambígua e excomungasse Santo Atanásio (Dz. 138). Os bispos católicos, os sacerdotes e fiéis importantes, foram maltratados, sobretudo caluniados como se fossem malfeitores e, finalmente, desterrados. Para ocupar o lugar dos bispos católicos desterrados, nomeavam-se sistematicamente bispos arianos ou semi-arianos (hoje dir-se-ia conservadores!), para não afugentar o povo que, todavia, guardava a fé católica. Os costumes cristãos pervertiam-se por culpa dos novos bispos, que eram indignos.
Em muitos lugares, os pagãos e os judeus apoiavam os “católicos oficiais”, quer dizer, os hereges. Os bispos e imperadores arianos – Constâncio e Valente – perseguiam os verdadeiros católicos, que eram considerados como cismáticos, orgulhosos, “faltando à caridade, à obediência, à comunhão eclesiástica”, e perturbadores da paz na Igreja. A única falta dos supostos cismáticos era não aceitar umas fórmulas de compromisso, fórmulas ambíguas, fruto das novidades heréticas que punham em perigo a fé católica.
A heresia apoderando-se do governo civil e religioso, tornada justiça e verdugo, atuou sem piedade contra os verdadeiros católicos. Utilizou todos os meios para destruir a fé católica no homoousios (consubstancial), definido em Nicéia. Ameaças, calúnias, mentiras, falsos testemunhos, ilegalidades, violação dos cânones e regras da Igreja: tudo isso foi utilizado contra Santo Atanásio, contra seus amigos e contra os fiéis. Mas Deus não abandona nunca nem a sua Igreja, nem os confessores da fé. Nos tempos de crise, sempre há santos varões, escolhidos por Deus, que se levantam para proclamar integralmente a fé católica, sofrer por ela e salvá-la das garras da heresia que, despudoradamente, se proclama “ortodoxia católica”. Santo Atanásio foi o maior destes homens de Deus.

Parte IV

Santo Atanásio, protagonista da resistência católica e alvo dos arianos

No século IV, a fé católica conheceu o maior perigo da sua existência. O sacerdote Ario, apoiado por bispos poderosos, negava a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta heresia, apesar de ter sido condenada no Concílio de Nicéia (dogmático) em 325, pôde apoderar-se dos maiores bispados da Cristandade, e submeter por algum tempo o Papa Libério. Alguns bispos, “excomungados” pela seita ocupante da Igreja, salvaram a fé católica. Os condenados de ontem – Atanásio, Hilário, Eusébio de Verselli e Eustáquio – são hoje santos e os seus poderosos inimigos – teólogos em voga no seu tempo – foram declarados destruidores da fé.

Os Arianos

Os arianos, que formavam um poderoso partido dentro da Igreja, utilizavam todos os meios (ameaças, calúnias, injustiças, crimes, leis da Igreja e do Estado) para desterrar os bispos católicos. Em poucos anos, apoderaram-se dos maiores bispados do Oriente. Só restava o Egito. O perigo era grande. Fazia falta um santo para o enfrentar.

Santo Atanásio (295-373)

Esse santo era Atanásio, jovem bispo de 33 anos que, para salvar a fé católica, lutou durante 45 anos contra os “bispos oficiais” e quatro Imperadores.

Sua formação

Atanásio nasceu cerca de 295 em Alexandria do Egito. Recebeu, no seio da Igreja, uma sólida formação em filosofia e teologia. Em breve a vida ascética o atraiu para junto de Santo Antão Abade. Tendo-o descoberto, Santo Alexandre ordenou-o diácono e nomeou-o secretário episcopal, por volta do ano de 318.
Desde o início da crise, Atanásio opôs-se com energia à heresia que se apresentava como doutrina católica. Acompanhou seu bispo ao Concílio de Nicéia em 325, durante o qual esteve ativo nos bastidores como teólogo. Depois do Concílio foi o salvador da fé católica.

Patriarca

Em 328, apesar da sua pouca idade, foi eleito e consagrado Arcebispo e Patriarca de Alexandria, que era a segunda Sé da Cristandade. Atanásio tinha já fama de defensor intransigente da fé contra as inovações verbais destinadas a modificar a fé de Nicéia.
Os poucos bispos arianos que estiveram no Concílio, tinham assinado os decretos para não serem condenados como hereges. Mas esperavam a oportunidade para anular a doutrina de Nicéia. Quando se apresentou a ocasião, mediante a calúnia e a injustiça, destituíram os bispos das cidades importantes e tomaram seu lugar. Depois, concentraram todas as suas forças contra Atanásio, que “era o defensor mais temido de Nicéia, e por isso, era necessário eliminá-lo” (6) para triunfar em todo o Oriente, antes de atacar o Ocidente.

Sua personalidade

“A figura de Atanásio apresentava alguns caracteres que nos permitem descrevê-lo como um homem tremendamente enérgico e firme, que soube pôr essas qualidades do seu caráter ao serviço da verdade católica. Dos seus escritos desprende-se força e vigor; jamais recuará perante o adversário, mas, antes pelo contrário, cresce diante dele e emprega todos os recursos necessários para fazer triunfar a verdade, expressa na fé de Nicéia.(...) Quando se vê envolto em polêmica em que a fé está em jogo, é um adversário temível.
“Todavia, dizer isto não é dizer tudo; Quasten, na sua Patrologia, assinala como ‘apesar da sua irreconciliável hostilidade com o erro, e não obstante o valor com que lhe fazia frente, possuía a qualidade, rara em semelhante caráter, de ser capaz, ainda que no mais árduo combate, de usar de tolerância e moderação com os que se tinham desencaminhado de boa fé’. Por outro lado, se bem que seja certo que nos seus escritos polêmicos faça gala, com frequência, de uma força por vezes agressiva, a leitura serena das suas obras revela um homem de grande humanidade, um verdadeiro pastor, cujo principal defeito é, para desgraça de seus inimigos, a sua intransigência com o erro.
“Há outro traço que não queremos deixar de assinalar, é a sua abnegação total, o enorme autodomínio que exercitou durante toda sua vida e que contribuiu decisivamente para forjar a sua personalidade de santo. Se com alguém foi violento, foi sobretudo consigo mesmo; os desmedidos ataques que sofreu durante toda a sua vida, tanto da parte dos seus irmãos no episcopado como da autoridade civil, não serviram para o fazer dobrar no seu empenho de servir a Igreja de Cristo: a sua fidelidade valeu-lhe passar quase vinte anos afastado, pela força, do exercício do seu ministério. O amor à verdade pôde mais que toda a violência sofrida diretamente no seu corpo, pelo que passou à História como Pai da Ortodoxia e Coluna da Igreja”, que “extraía a sua força de uma contemplação assídua”, disse São Gregório Nazianzeno.

Um concílio condena o santo: 1º desterro (335-337)

Os chefes do partido ariano, que queriam a cabeça de Atanásio, juntaram-se em 335 no Concílio de Tiro (Líbano), com alguns bispos católicos intoxicados pelas calúnias arianas. A presença dos católicos manipulados, era mais uma segurança para o êxito da operação antiatanasiana.
Os acusadores eram egípcios cismáticos, e os juízes eram os arianos e os seus títeres católicos. Quando Santo Atanásio chegou ao Concílio com 49 bispos egípcios, foi admitido como acusado e os seus companheiros foram repelidos “por não terem sido formalmente convocados”.
Acusavam Atanásio dos seguintes crimes políticos e religiosos:
- querer esfaimar os da capital, guardando no Egito o trigo destinado a Constantinopla;
- quebrar o cálice e destruir o altar de Isquiras, um sacerdote cismático;
- matar o Bispo Arsênio e fazer magia com o seu cadáver. Como prova, os arianos mostravam ao Concílio as mãos cortadas e secas de Arsênio; etc.
Acerca do cálice e do altar, as autoridades civis e o próprio Isquiras reconheceram a inocência de Atanásio. O suposto defunto foi descoberto e apresentado ao Concílio com as suas duas mãos.
Mas não importavam as provas de Atanásio, posto que a sua condenação estava decretada. O Santo, insultado pelo povo fanatizado e diante da injustiça episcopal, fugiu (porque o porto e os caminhos estavam guardados pelos arianos) e dirigiu-se a Constantinopla para pedir justiça a Constantino.
Entretanto, Eusébio de Nicomédia enviou ao Egito bispos do seu partido para um novo “inquérito”. Ali, os testemunhos oculares e favoráveis a Atanásio foram recusados. Depois do “inquérito”, Atanásio foi condenado pelo Concílio “segundo os cânones”.
Após muitas insistências do Santo, Constantino chamou bispos “juízes” à capital para um novo julgamento. Diante de Constantino, os hereges apresentaram unicamente acusações políticas, e lograram fazer condenar o Santo e desterrá-lo para Tréveris (Alemanha).
O Concílio de Tiro foi qualificado de “bandidagem”. Com habilidade, os arianos lograram acusar e condenar Atanásio, com base num plano puramente disciplinar. Nunca se atreveram a atacá-lo em nenhuma questão dogmática.
Este “julgamento” perseguirá Atanásio durante toda sua vida e várias vezes será desterrado por causa deste iníquo julgamento.(7)

Fim do 1º desterro (337)

Com a morte de Constantino, em 337, os seus três filhos, Constantino II, Constante e Constâncio, repartiram o Império e decidiram o regresso dos desterrados. Atanásio regressou como triunfador. Santo Antão saiu do deserto para ir a Alexandria apoiar Atanásio. Os bispos egípcios também apoiaram Atanásio no Concílio de 338, anulando a condenação de Tiro, confirmando a posição católica e escrevendo ao Papa São Júlio (337-352) e a todos os bispos da Igreja Católica. Em pouco tempo, Atanásio transformou outra vez o Egito em um baluarte da fé católica.
Mas o intrigante Eusébio queria a todo custo afastar Atanásio de Alexandria e controlar todo o Oriente. Enviou uma delegação a Roma com os documentos do Concílio de Tiro, para acusar Atanásio e reconhecer Pisto, um ariano, como bispo de Alexandria. Atanásio também enviou a Roma uma delegação, para se defender. Em um debate contraditório na presença do Papa Júlio, os emissários arianos foram vencidos pelos de Atanásio. Depois da sua derrota em Roma, os arianos apoderaram-se do espírito de Constâncio, que governava o Oriente, e condenaram Atanásio em 339, no Concílio de Antioquia.

2º desterro: Roma (339-346)

Em Antioquia, os arianos sagraram como bispo Gregório da Capadócia, e enviaram-no para Alexandria, para que tomasse o lugar de Atanásio, que tinha sido “condenado”. Supondo que a decisão da “bandidagem” de Tiro fosse justa, as regras da Igreja exigiam que o clero e o povo de Alexandria e os bispos do Egito elegessem o sucessor de Atanásio, e não os arianos de fora. Gregório foi considerado pelos católicos como intruso. Quando entrou em Alexandria, teve que ser acompanhado pelo exército. Só os poucos arianos, judeus e pagãos o aclamaram. Durante vários dias houve motins, com feridos e mortos. O governador teve que arrancar as igrejas, uma por uma, das mãos dos católicos “atanasianos” e pô-las à disposição do intruso. Atanásio, antes de ir para o desterro, escreveu uma carta a todos os bispos católicos, dizendo-lhes: “ ‘Aqui está a comédia que Eusébio representa! Aqui está a intriga que ele urdia desde há muito tempo, que ele logrou fazer triunfar, graças às calúnias com que assedia o Imperador. Mas isto não lhe basta; quer a minha cabeça; trata de assustar os meus amigos, através de ameaças de desterro e de morte. O que não é razão para me dobrar perante a iniquidade; pelo contrário, devo defender-me e protestar contra as monstruosidades de que sou vítima.
“Se, enquanto residis na vossa igreja e governais o vosso povo de maneira impecável, de repente vos chegasse um sucessor, por ordem expressa – suportá-lo-íeis vós? Não vos indignaria? Não gritaríeis vingança? Bom! Eis que chegou o momento de vos sublevardes, por medo de que, pelo vosso silêncio, este mal se estenda em pouco tempo a todas as igrejas, e que as nossas cátedras de doutrina se transformem em objeto de tráfico e comércio.’
“Santo Atanásio não se equivocava: tinha visto e denunciara o autor responsável por estas façanhas, o personagem eclesiástico mais influente de então: Eusébio de Nicomédia.”(8)
Santo Atanásio logrou iludir a vigilância dos seus adversários, e foi para Roma. Ali encontrou muitos bispos desterrados; deu a conhecer aos romanos a vida dos padres do deserto, implantando na Europa a vida monástica.

Santo Atanásio reabilitado

Os eusebianos tinham pedido a convocação de um Concílio. Mas, quando abriu o Concílio de Roma, em 340, não quiseram participar, porque não o podiam manipular. No Concílio, foram analisados os documentos da “bandidagem” de Tiro, e Atanásio apresentou a sua defesa. “Deram-se conta que a sua deposição foi o resultado de uma odiosa maquinação e que a eleição do seu sucessor tinha sido feita com desprezo de todas as regras canônicas.” (9) O Concílio anulou as decisões do “Concílio” de Tiro, reabilitou Atanásio e os demais bispos, vítimas da raiva herética. Contudo, Atanásio não pôde regressar ao Egito senão em 346.

A vingança de Eusébio

Eusébio que, violando os cânones da Igreja, se havia apoderado em 339 da Sé de Constantinopla, considerava-se como Papa do Oriente. Organizou também um Concílio em Antioquia, em 341, e fez condenar Atanásio pela terceira vez.
Os bispos do partido de Eusébio não suportavam ser tratados de arianos. Eram semiarianos, ou seja, conservadores manipulados pelos hereges arianos. Na sua nova profissão de fé, repeliam com cuidado os “exageros” de Ario, mas também as fórmulas católicas. Redigiam símbolos de fé, mas com vocabulário bíblico e ambíguo. Diziam verdades católicas, mas não com o vocabulário católico, que fechava o caminho para a heresia.

Atanásio reabilitado: Concílio de Sárdica (342-343)

Em 343 morreu Eusébio de Nicomédia, chefe da seita ocupante da Igreja do Oriente. Sob a influência do Papa Júlio e do Imperador do Ocidente, Constante, Constâncio aceitou a reunião de um Concílio em Sárdica (Sofia). Quando os bispos arianos e os manipuladores viram Atanásio no Concílio, foram para Filipólis fazer outro concílio, excomungando Atanásio, o Papa Júlio e os demais bispos.
O Concílio de Sárdica voltou a promulgar o Símbolo de Nicéia e a reabilitar Santo Atanásio, que pôde regressar ao Egito somente em 346. A sua entrada solene em Alexandria teve todo o aspecto de apoteose. A cidade inteira, todos os bispos do Egito e os monges se colocaram em bloco a seu lado.
De 346 a 356, Santo Atanásio pôde reorganizar a cristandade do Egito, escrever muito e enviar missionários à Etiópia. Quando Constâncio ficou como único Imperador, os arianos lograram desterrar Santo Atanásio e, inclusive, conseguiram tomar o poder em toda a Igreja, a ponto de obrigar o Papa Libério a excomungá-lo, em 357.

Notas:

(1) Lactâncio, Sobre a Morte dos Perseguidores, Sevilha, Apostolado Mariano, 1990.
(2) Luís de Wohl, Fundada sobre Rocha, Breve História da Igreja, Arcaduz, Madrid, 1988, p. 48.
(3) Lactâncio, Sobre a Morte dos Perseguidores, cap. 33-34.
( 4) Denzinger-Hunermann, O Magistério da Igreja, Herder, Barcelona, 1999, nº 138.
( 5) Johannes Quasten, Patrologia, T. II, A Idade de Ouro da Literatura Patrística Grega. BAC Madrid, 1985, p. 11.
(6) Llorca G. – Villoslada – Laboa, História da Igreja Católica, T.1, Idade Antiga, BAC, Madri, 1990, p.394.
(7) L. A. Sanchez Navarro na sua introdução Contra os Pagãos de Atanásio, Cidade Nova, Madri, 1992, p.13-14.
(8) Ian M. Szymusiak, Duas Apologias, Nascentes Cristãs, Paris, 1987, p.21.
(9) Fiche e Martin, História da Igreja, T.III, p.120.

II.

“De todas as heresias que afligiram a Igreja desde sua origem até Lutero, não houve nenhuma mais grave, mais extensa, maior, mais perigosa para a fé do que a dos Arianos” (1)
Com efeito, os partidários do sacerdote herege Ário tinham-se apoderado do governo da Igreja, e queriam praticar um cristianismo filosófico, sem mistérios, esvaziando a Fé de seu conteúdo, ao negar a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas Deus suscitou santos bispos para liberar sua Igreja dessa heresia.

Causas do triunfo católico

O valor, a abnegação, a sabedoria e o trabalho intelectual de santo Atanásio, santo Hilário e seus companheiros prepararam o terreno para libertar a Igreja da heresia transformada em “doutrina oficial”. A liturgia, o povo e os monges desempenharam também o seu papel; e por fim os imperadores católicos subtraíram à heresia sua principal força: a do Estado.

Valentia e desinteresse pessoal

Frente aos bispos arianos, havia bispos decididos a morrer pela defesa da Fé Católica, proclamada no Concílio de Nicéia de 325. Estes bispos, Atanásio, Hilário, Lucífero de Cagliari, e outros, de nada tinham medo. Todos foram perseguidos e desterrados e, no ano de 357, Santo Atanásio chegou a ser excomungado pelo Papa Libério. Sem a sua heroica resistência, a heresia ter-se-ia apoderado completamente da Igreja. Santo Atanásio e seus companheiros foram os perturbadores de uma paz feita mediante fórmulas ambíguas e concessões doutrinais indevidas, que tratavam de unir arianos e semiarianos, num acordo de base a mais indeterminada possível.
Estes bispos tiveram a valentia de recusar, custasse o que custasse, a falsificação da Fé Católica, realizada pelas próprias autoridades da Igreja.
Devido à propaganda ariana, as afirmações trinitárias sempre cridas e reafirmadas em Nicéia contra a heresia, não foram assimiladas rapidamente. “A sua marcha vitoriosa [da ortodoxia católica] deve creditar-se, sobretudo, à tenacidade de Atanásio, que durante meio século sustentou, por vezes solitariamente, o combate a favor do Concílio. (2) (...) A forte personalidade de Santo Atanásio (...) não somente assegurou a vitória da Fé na divindade total do Filho, mas também conseguiu que ficasse fora da dúvida a Unidade d’Esse Filho com o Homem Jesus, Uno, e que Ele mesmo é o Filho eterno de Deus e o Homem Jesus”. (3)
No tempo da crise ariana, ser bispo era muito perigoso. Os bispos tinham duas soluções: sofrer as maiores crueldades, ou trair a própria consciência. O valente Atanásio, que sofreu cinco desterros em dezessete anos, dizia: “Devemos imitar os Santos Padres e persuadirmo-nos de que, se os abandonarmos, não seremos dignos de comunhão com eles. Temos de seguir São Paulo, que não oferecia a carne e o sangue, mas a Fé. No dia do Juízo, cada um deverá prestar contas dos fiéis que lhe foram confiados. Devemos aconselhar segundo o Evangelho, e não segundo o mundo. Cada um deve lutar no posto em que foi colocado; porque a coroa não será dada segundo as circunstâncias, mas segundo as obras” (4). Fidelidade, valor, perseverança, misericórdia, prudência: tais foram algumas das virtudes de Santo Atanásio, que foi um “verdadeiro homem de Deus, brilhante trombeta da verdade (...) intrépido defensor do Verbo, objeto de todo gênero de ataques”, diz São Gregório Nazianzeno (5). No Ocidente, Santo Hilário de Poitiers cultivava as mesmas virtudes.
Depois dos Concílios de Arles (353) e de Milão (355), quando Constâncio quis impor a heresia a todo o Império, Santo Hilário compreendeu que se impunha a resistência aberta, à custa de sua tranquilidade e de seus interesses pessoais (6), atitude que muitos bispos não secundaram. Dizia: “Somos católicos e não queremos ser hereges; somos cristãos e não queremos ser arianos; não se pode pretender conciliar coisas contraditórias; reunir o que é oposto, juntar o verdadeiro e o falso. Fazer com que o dia e a noite, a luz e as trevas existam ao mesmo tempo (7).

Além da valentia dos bispos, houve outras causas que asseguraram o triunfo da Fé Católica:

A Liturgia cimentava a resistência à heresia e transmitia ao povo o dogma católico que os bispos hereges negavam de modo privado, mas que afirmavam em público, atribuindo outro sentido às palavras.
Os monges, especialmente no Egito, foram os melhores aliados de Santo Atanásio para manter o povo na Fé.
O povo católico, frequentemente, rechaçava a comunhão com os bispos hereges, e permanecia fiel aos bispos desterrados. Por essa razão se ausentava de seus templos e assistia à missa em casas particulares.
Os imperadores católicos Graciano e Teodósio ajudaram os católicos a libertarem-se da heresia, reconhecendo publicamente a sua Fé na Santíssima Trindade.
Os hereges manifestaram o que eram, com o seu triunfo nos Concílios de Rimini e Constantinopla (359-360). Isso abriu os olhos de muitos semiarianos, que se aproximaram dos atanasianos e adotaram a Fé de Nicéia.

A própria divisão dos arianos em várias seitas foi o que os debilitou.

O trabalho intelectual também teve um grande papel para dissipar as trevas do erro. Santo Atanásio e Santo Hilário, pelos seus escritos, tinham demonstrado a falsidade da heresia, fortalecendo os católicos. Santo Hilário escrevera uma obra em doze tomos acerca da Trindade. Após uma luta de cinquenta anos, o arianismo dividiu-se em diversas seitas e foi completamente superado pelos católicos, no campo teológico: São Basílio, seu irmão São Gregório de Nissa, seu amigo São Gregório Nazianzeno e Santo Efrém, no Oriente; Santo Ambrósio, São Jerônimo, São Dâmaso e Mário Victorinus, no Ocidente.

O Concílio dos Confessores (362)

Sabedoria e misericórdia

No ano de 361 morreu Constâncio, protetor da heresia. Ficou como único Imperador Juliano o Apóstata, ex-aluno dos arianos. O Apóstata utilizou toda a força do Império para restabelecer o paganismo e debilitar o cristianismo. Para aumentar a desordem na Igreja, permitiu o regresso dos bispos católicos desterrados.
Apenas regressado à Alexandria, Santo Atanásio tratou de reparar as ruínas espirituais que os arianos tinham causado. Reuniu 21 bispos em concílio. Lucífero de Cagliari fez-se representar por dois diáconos. Nesse Concílio dos Confessores (da Fé) estabeleceram-se os princípios da solução da crise, que anos depois seriam para os bispos como uma luz.
Este concílio tomou decisões parecidas às que Santo Hilário havia tomado no ano de 360, no concílio de Paris.
No Concílio dos Confessores houve rigoristas que pediam a excomunhão de todos aqueles clérigos que se haviam comunicado com os arianos (quase todos os bispos tinham caído no Concílio de Rímini, em 359). Santo Atanásio e a maioria dos bispos adotaram uma posição misericordiosa e realista, melhor do que a de rigor imprudente.

As decisões do Concílio

O Concílio tomou as seguintes decisões: (8)

1.Não repelir os semiarianos por uma questão de vocabulário, se eles admitissem a realidade da Fé Católica (esses bispos, nos Concílios arianos, acrescentavam notas para tranquilizar a sua consciência).
2.Todos os que, por violência ou ignorância, tinham caído subscrevendo fórmulas ambíguas ou errôneas sem aceitar o arianismo, podiam ser perdoados e conservar suas funções no clero.
3.Os chefes e defensores do partido herético podiam, se arrependidos dos seus erros, ser aceitos na Igreja, mas sem esperança de fazer parte do clero.
4.A condição para que todos os hereges ou lapsi (os caídos) fossem admitidos na Igreja era que lançassem o anátema sobre a heresia de Ário e seus partidários, e reconhecessem a Fé de Nicéia como a única verdadeira e o Símbolo de Nicéia como o melhor.
O papa Libério adotou as mesmas resoluções e tratou de as aplicar na Itália, mas houve rigoristas que não aceitaram as decisões de Santo Atanásio.

Santo Atanásio frente aos rigoristas imprudentes

Santo Atanásio, que sempre buscou o bem comum da Igreja, escreveu uma carta doutrinal aos fiéis de Antioquia para esclarecer a doutrina católica e repelir o cisma. Tinha a mesma maneira de considerar os semiarianos, adotada por Santo Hilário, o qual dizia: “Os semiarianos que querem reunir-se aos católicos devem ser tratados como homens que saem de uma grave enfermidade: não estão nem completamente enfermos, nem completamente sãos; é preciso tratá-los com mansidão e cuidado” (9).
Fazia o possível para atrair os semiarianos. Multiplicavam-se as conversões. No ano de 366, por sua influência, “59 bispos semiarianos dirigiram-se ao Papa Libério e foram recebidos no seio da Igreja” (10). Aprovava São Basílio, que não exigia muito, a princípio, dos que tinham caído. Se estes aceitavam o mais importante, estava bem assim, porque depois, com a ajuda de Deus, entenderiam melhor as coisas. Tinham que aceitar a Cristo consubstancial ao Pai, e ao Espírito Santo não como uma criatura (11).
Quando São Basílio foi acusado de ser misericordioso, Santo Atanásio defendeu-o: “Fiquei muito surpreendido com a audácia dos que se atreveram a caluniar o nosso mui amado Bispo Basílio, esse verdadeiro servidor de Deus”. (12)

Uma consagração problemática

O Bispo Lucífero de Cagliari exigia a deposição de todos os culpados, incluindo os que tinham caído por debilidade (13). Além disso, não reconhecia as ordenações dos convertidos. Não via nenhuma diferença entre hereges e vítimas de hereges. “De um caráter tão veemente como o seu, podia-se esperar qualquer sacrifício pela Fé de Nicéia. Mas ele não chegou a enxergar, depois de um exame ponderado e atento, os complexos ingredientes da controvérsia ariana. Quando foi enviado para o exílio, diferentemente de Hilário, Lucífero não pensou em aproveitar o contato com os centros principais de debate para compreender melhor os seus fins, mas exacerbou mais a sua atitude, contando, qualificando, sem mais, como ariano radical, qualquer adversário da ortodoxia nicena. Ainda mais, não poupou críticas violentas à atitude conciliatória e clarividente de Hilário, que tratava de minorar os contrastes entre os anti-arianos do Oriente (não nicenos) e os anti-arianos do Ocidente (nicenos), com o propósito de organizar uma frente comum contra a heresia (...). Há que reconhecer que, no seu conjunto, a sua atuação (de Lucífero) fez mais mal do que bem à causa da ortodoxia” (14). No ano de 362, em vez de assistir ao Concílio dos Confessores, Lucífero foi a Antioquia consagrar o sacerdote Paulino como bispo da pequena comunidade nicena, o que foi um erro, já que o bispo do lugar, Melécio, anteriormente semiariano, havia aceito a fé de Nicéia, e por isso tinha sido desterrado pelos arianos. A consagração feita por Lucífero aumentou a desordem, atrasou a reconciliação entre os católicos e envenenou a vida da Igreja durante anos.

O Concílio de Constantinopla (381)

Finalmente, apesar das perseguições do Imperador ariano Valente (de 364 a 376), e apesar do triunfo ariano durante meio século, aproximava-se o triunfo final do catolicismo.
Santo Atanásio e Santo Hilário tinham preparado bem o caminho. São Basílio, Santo Ambrósio e São Melécio, o Papa São Dâmaso e muitos outros santos, iam dar o golpe final à mentira ariana. Com a morte de Valente, em 378, os arianos perderam o protetor de sua seita. O general espanhol Teodósio, Imperador em 379, apoiou os católicos. Em 381, o Concílio de Constantinopla reafirmou a Fé Católica proclamada em Nicéia em 325. Os princípios decididos no Concílio dos Confessores deram nesse momento os seus frutos. Em pouco tempo o arianismo, dividido em várias seitas opostas entre si e neutralizadas pelo Imperador Teodósio, desapareceu do Império Romano.

Conclusão

Graças a sua valentia, um grupo de bispos católicos pôde salvar a fé e a Igreja do caos da heresia. Em tempos de crise são os valentes que, com prudência e caridade, podem solucionar os problemas. Os intransigentes, sem estas qualidades, provocam mais dano do que bem. Os conservadores que não proclamam a fé tal como deve ser, são a longo prazo tão perigosos como os hereges. A história da crise ariana mostra que os bispos tíbios ou perversos podem favorecer o erro e impô-lo ao povo como doutrina católica. Ensina-nos igualmente como até um Papa, pressionado por bispos poderosos, abusando de seu poder, pode equivocar-se, excomungando o melhor defensor da Fé Católica, ainda que essa injusta condenação nada valha. Mostra, finalmente, que a resistência prudente à autoridade que se equivocou no caminho é necessária e, inclusive, meritória. Os casos de Santo Atanásio e Santo Hilário dão testemunho disso.

Padre Michel Boniface

(1) Jean Adan Moehler, Athanase le Grand et l’Eglise de son Temps, Bruxelas, 1841, T. 2, p.225. Adiante: Moehler, tomo e página.
(2) Mysterium Salutis, Manual de Teologia como História da Salvação, Cristiandad, Madri, 1980, T. Iglesia, p. 344. Adiante, MS.
(3) MS, p. 346.
(4) Moehler, T. 2, p. 130-134.
(5) São Gregório Nazianzeno, Panegírico de Santo Atanásio, em Moehler, T. 1, p. XVI0-XVII.
(6) Dictionnaire de Théologie Catholique, artigo Hilário, T. VI, col. 2390.
(7) Moehler, T. 2, p. 127.
(8) Charles Joseph Heffele, História dos Concílios segundo os Documentos originais, Lertouzey et Ané, Paris, T. I, p. 964.
(9) Moelher, T. 2, p. 220.
(10) Lorea-G. Villoslada-Labao, História da Igreja Católica, Idade Antiga, BAC, Madri, 1996, p. 426.
(11) Moelher, T. 2, p. 243-244.
(12) Idem, id. Id.
(13) J. M. Mayeur Ch. E I. Pietri, História do Cristianismo, Desclée, Paris, 1995, T. 2, p. 359.
(14) Manlio Simonetti, Hilário de Poitiers e a crise Ariana no Ocidente: Polemistas e Hereges, in Institutum patristicum augustinianum, Patrologia, T. 3, A idade de Ouro da Literatura Patrística Latina, BAC, Madri, 1993, p. 78.

Fonte: http://beneditinos.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=29&Itemid=37

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