[domtotal]
Cinco séculos de ação política baseada na fraude, na violência e na impiedade.
Por Márcia Junges
“Os
termos ‘maquiavelismo’ e ‘maquiavélico’ se impuseram no imaginário
político moderno europeu como sinônimos de uma ação política baseada na
fraude, na violência e na impiedade”, reflete o filósofo português
António Bento(*), na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line.
E acrescenta: “acusar um determinado inimigo político de
‘maquiavelismo’ e estigmatizar publicamente os seus atos como
‘maquiavélicos’, constitui, no fundo, uma simples arma de arremesso
político”. A influência política do pensador florentino, “a despeito de
um desprezo e de um ódio imensos, jamais deixou de se sentir. Pelo
contrário, antes ganhou mais e mais terreno, e, como de certa maneira
não poderia deixar de acontecer, preferencialmente no próprio seio
daqueles que se declaravam seus inimigos políticos”.
Leia a entrevista:
O que são o maquiavelismo e o hipermaquiavelismo?
Uma resposta adequada e, tanto quanto possível, exaustiva, à sua
pergunta mobilizaria certamente uma biblioteca inteira, não uma
biblioteca qualquer, nem sequer uma biblioteca especializada em estudos
sobre Maquiavel, mas uma “biblioteca total”, digamos que à semelhança
daquela “Biblioteca de Babel” concebida por Jorge Luis Borges! Tal a
“reputação” e tamanhas as lendas associadas ao nome Maquiavel!
Mas talvez devamos começar por modificar ligeiramente a pergunta, de
modo a obtermos outro tipo de respostas, respostas que, precisamente,
digam respeito a outro tipo de perguntas: não serão antes os “médicos”
que, a posteriori e analisando de perto a “doença”, agrupam sintomas até
então dissociados (batizando-os, desbatizando-os e rebatizando-os),
compondo um “quadro clínico” novo e original à custa de um sortilégio
extraordinário e de um estranho poder de conotar signos (signos
políticos, no caso de Maquiavel) que um determinado nome próprio possui e
liberta.
Carl Schmitt compreendia Maquiavel como alguém mais do que apenas o autor de O Príncipe. Tendo esse horizonte em vista, que chaves de leitura devem ser tomadas em consideração a partir das outras obras desse pensador, como Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio?
O problema não é pacífico, nem isento de certas paixões, digamos
assim, hermenêuticas. Muito antes de Carl Schmitt, outros autores, não
menos importantes que o jurista alemão, insistiram no duplo aspecto do
ensinamento político de Maquiavel, consoante este é deduzido de O
Príncipe ou de Os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (ou
ainda de Histórias Florentinas).
Afinal, bem vistas as coisas, não teria sido o próprio Maquiavel — de
acordo com uma tradição republicana, liberal, romântica, e até
marxista, de interpretação do seu pensamento — muito pouco
“maquiavélico”, um daqueles instrutores de príncipes que conhecem o jogo
político do Estado e que integralmente o ensinam, ao passo que o
“maquiavelismo” vulgar, esse sim, ensinaria a fazer outra coisa?
Tal é já a opinião do prudente Espinosa , para quem “talvez Maquiavel
quisesse mostrar quanto uma multidão livre deve ter medo de confiar a
sua defesa a um só, o qual, se não for vaidoso nem julgar que pode
agradar a todos, tem de temer revoltas todos os dias, sendo por isso
obrigado a precaver-se e a atraiçoar a multidão em vez de governá-la”.
Em idêntico sentido se pronunciou Jean-Jacques Rousseau : “Fazendo crer
que dava lições aos reis, dava-as bem grandes aos povos. O Príncipe, de
Maquiavel, é o livro dos republicanos”.
Quanto ao ódio que os seus contemporâneos destilaram sobre Maquiavel,
apresentara-o já Trajano Boccalini , na primeira década de seiscentos,
nos seguintes termos: “Os inimigos de Maquiavel consideram-no homem
digno de punição porque revelou como os príncipes governam e, assim,
instruiu o povo; ‘colocou dentes de cães nas ovelhas’, destruiu os mitos
do poder, o prestígio da autoridade, tornou mais difícil governar,
porque os governados podem saber a este respeito tanto quanto os
governantes”.
De que modo Maquiavel e Hobbesproblematizam a questão da natureza humana e do absolutismo? Como tais compreensões repercutem na política ocidental?
A questão do “absolutismo”, se tomarmos este conceito no seu estrito
significado histórico e político, só se põe a partir do momento em que
Jean Bodin , primeiro, e Thomas Hobbes, depois, definem e formulam, cada
um, evidentemente, à sua maneira, o conceito jurídico-político de
“soberania”. Creio que cometeríamos um anacronismo se porventura
começássemos a falar impropriamente de “soberania” e de “absolutismo” em
Maquiavel.
Que um paradigma político imunitário governa hoje de maneira
transversal e capilar as relações humanas globais no seu conjunto,
comprova-o o fato de a modulação afetiva e o controle da intensidade do
medo se terem tornado um assunto político de interesse público. Cada vez
mais, a “sociedade do risco” em que nos movemos é permanentemente
ameaçada pelo pânico ante toda a espécie de potenciais catástrofes
(ambientais, ecológicas, epidêmicas, terroristas, políticas, econômicas,
etc.) que devem ser cientificamente prevenidas.
Como observa Frédéric Neyrat : “A biopolítica contemporânea é
imediatamente uma imunopolítica de tendência paranoica, que desconfia de
fronteiras que se tornam cada vez mais indelimitáveis. […] É, com
efeito, impossível compreender os objetivos proclamados da biopolítica
sem interrogar a sua ‘outra cena’, o seu fantasma de imunização
absoluta, de proteção total”.
Em que sentido as constatações políticas de Maquiavel ecoam nas concepções políticas de Nietzsche , como na grande política, na vontade de poder e na transvaloração dos valores?
Creio, sinceramente, que em absolutamente nenhum sentido.
Efetivamente, não creio que se possa, e menos ainda deva, misturar o sol
materialista de Florença com o nevoeiro metafísico de Bayreuth… Isto,
claro, ressalvando embora toda a genuína admiração de Nietzsche por
Maquiavel: “A minha recriação, a minha predileção, a minha cura de todo o
platonismo foi sempre Tucídides . Tucídides e, talvez, O Príncipe, de
Maquiavel, me são mais afins pela determinação incondicional de não se
deixar iludir em nada e de ver a razão na realidade — não na ‘razão’, e
menos ainda na ‘moral’…”, confessa o “cabeça-de-dinamite” (Ernst Jünger)
em O Crepúsculo dos Ídolos.
Nesse sentido, como o “estatuto da mentira na Filosofia Política” pode ser compreendido se pensarmos a partir da perspectiva de Maquiavel e Nietzsche?
São, com certeza, perspectivas distintas as de Maquiavel e de
Nietzsche em torno da “mentira”, em geral, e, sobretudo, a respeito da
“mentira política”, em particular. Contudo, há que sublinhar igualmente a
existência de afinidades e de semelhanças. No caso de Nietzsche
estamos, por um lado, perante uma teoria artística da mentira, que faz
do poder do falso uma magnificação do “mundo enquanto erro”,
transformando a vontade de enganar num ideal estético superior e, por
outro, diante de uma teoria pragmática da linguagem.
Num ensaio de 1873, intitulado Acerca da verdade e da mentira no
sentido extramoral, Friedrich Nietzsche elabora uma teoria da verdade
que está muito próxima de algumas modernas teorias pragmáticas da
linguagem. Em primeiro lugar, a verdade é aí valorizada porque é útil
para a comunidade, boa para a sociedade, e não porque corresponda a um
efetivo conhecimento das coisas.
Em segundo lugar, a linguagem, enquanto instrumento privilegiado do
conhecimento, é fundamentalmente uma estrutura de dissimulação, um
mecanismo de apropriação e de captura da realidade, e não uma espécie de
espelho da realidade. O ponto de partida desta concepção nietzscheana
da linguagem é que a verdade não é valorizada por interesses, em
primeiro lugar, científicos, ou éticos, em geral, mas por sujeitos
interessados na sobrevivência e numa vida comunitária, social, estável.
Convém sublinhar que não se trata, para Nietzsche, de pôr em dúvida a
vontade de verdade, embora ele nos venha lembrar que os homens, de
fato, não amam, naturalmente, a verdade, e que muitas vezes, mais do que
os seus erros, são os seus interesses e a sua estupidez que os separam
da verdade. Com muita seriedade, Nietzsche aceita pensar este problema
colocando-se, de boa fé, no próprio terreno em que o problema é posto:
no terreno moral. Assim, Nietzsche procura antes pensar o que a verdade
pode significar como conceito, que tipo de forças e que espécie de
poderes se apropriam dela. Quanto a Maquiavel, o problema da mentira
surge associado à necessidade de dissimulação/simulação intrínseca ao
político e, por vezes, à estritamente necessária inobservância da
palavra dada. Com efeito, no capítulo XVIII de O Príncipe, o secretário
florentino observa o seguinte:
“Quão louvável seja num príncipe o manter a palavra dada e viver com
integridade e não com astúcia, qualquer um o entende. No entanto, vê-se
pela experiência do nosso tempo terem feito grandes coisas aqueles
príncipes que tiveram em pouca conta a palavra dada e que souberam, com a
astúcia, dar a volta aos cérebros dos homens; e no fim superaram
aqueles que se fundaram na sinceridade. Não pode, portanto, um senhor
prudente, nem deve, observar a palavra dada quando tal observância se
volta contra ele e se extinguiram os motivos que o fizeram prometer. E,
se os homens fossem todos bons, este preceito não seria bom. Mas, porque
eles são ruins e não a observariam para contigo, tu também não a tens
de observar para com eles, nem faltarão jamais a um príncipe motivos
legítimos para mascarar a inobservância”.
Finalmente, há que referir, ainda que necessariamente de forma muito
breve e alusiva, às reflexões de Hannah Arendt , uma admiradora confessa
do pensamento de Maquiavel, sobre a mentira política moderna. Não foi
há muito tempo que a autora de TruthandPolitics (1967) chamou a nossa
atenção para o carácter ativo e afirmativo da mentira, para o fato de
“as mentiras, desde que utilizadas como substitutos de meios mais
violentos, poderem ser consideradas como instrumentos relativamente
inofensivos no arsenal da ação política”.
Que a política e a verdade sempre estiveram em más relações e que a
boa fé jamais foi incluída na classe das virtudes políticas, é algo bem
conhecido e mesmo um lugar comum. Com efeito, o segredo, os
arcanaimperii, o engano, a falsificação deliberada e a mentira descarada
são usados como meios legítimos para alcançar fins políticos desde os
primórdios da história documentada. Não por acaso, Hannah Arendt
lembra-o constantemente: “As mentiras foram sempre consideradas
necessárias e justificáveis, não apenas à profissão do político e do
demagogo, mas também à do homem de Estado.
Por que será assim? O que é que isto representa, por um lado, para a natureza e a dignidade da esfera política, e, por outro, para a natureza e a dignidade do domínio da verdade e da boa-fé?”
Um dos pontos interessantes da argumentação de Hannah Arendt neste
ensaio prende-se com o reconhecimento da existência de uma transformação
ou mutação na história da mentira. Uma mutação simultaneamente na
história do conceito de mentira e na história da própria prática do
mentir. Segundo Arendt, a mentira teria modernamente atingido o seu
limite absoluto, tornando-se agora “completa e definitiva”.
Ao contrário de Oscar Wilde , que no seu O Declínio da Mentira
diagnostica uma agonia da mentira e lamenta que os políticos, os
advogados, e mesmo os jornalistas, saibam cada vez menos mentir e
cultivem cada vez menos a mentira, Arendt considera preocupante o
crescimento hiperbólico da mentira na arena política moderna: “A
possibilidade da mentira completa e definitiva, ainda desconhecida nas
épocas anteriores, é o perigo que decorre da moderna manipulação dos
fatos.
Mesmo no mundo livre, onde o governo não monopolizou o poder de
decidir e de dizer o que é ou não é da esfera da fatualidade,
gigantescas organizações de interesses generalizaram uma espécie de
mentalidade de raison d’État, outrora confinada ao domínio dos negócios
estrangeiros, e, nos seus piores excessos, às situações de perigo
iminente e atual”.
Neste ensaio, Arendt esboça a problemática da efetividade e da
performatividade de uma mentira cuja estrutura e acontecimento estariam
ligados, de maneira essencial, ao conceito de “ação”, e, mais
precisamente, ao conceito de “ação política”. É este um motivo presente
logo nas primeiras páginas de Lying in Politics.
Foi apenas no século XIX que se proferiu de modo veemente o vaticínio da morte de Deus, através do último homem que Nietzsche assenta na praça do mercado. Contudo, as bases desse deicídio já vinham sendo construídas antes do filósofo alemão. Nesse sentido, é correto compreender Maquiavel como um dos pilares não só do laicismo, mas de um fenômeno ainda mais profundo como o niilismo?
Tem-se abusado em demasia dos conceitos de “laicismo”,
“secularização”, “niilismo”… Não posso agora entrar na sua discussão,
mas recordo que num um texto escrito nos anos 40 do século XX,
intitulado O fim do maquiavelismo, Jacques Maritain , reatualizando sob a
forma de um tolerante humanismo cristão os velhos argumentos dos
autores católicos da Contrarreforma contra Maquiavel, insiste na
“perversidade” do secretário florentino ao sublinhar que ele ensinou os
homens não apenas a fazer o mal, mas a fazê-lo de consciência tranquila:
“O que era simples fato, com toda a fraqueza e inconsistência que,
mesmo no mal, é própria das coisas acidentais e contingentes, depois de
Maquiavel ficou sendo direito, com toda a firmeza e solidez próprias das
coisas necessárias. Esta é a perversão maquiavélica da política, que
emerge do fato da “tomada de consciência” maquiavélica do comportamento
político médio da humanidade. A responsabilidade histórica de Maquiavel é
a de ter aceitado, reconhecido e adotado como regra o fato da
imoralidade política e de ter declarado que a boa política, a política
conforme sua natureza e seus autênticos fins, é, por essência, uma
política não moral”.
Mais próximo de nós no tempo, um autor da envergadura de Leo Strauss
chama a atenção para o caráter violentamente anticristão da doutrina de
Maquiavel, para a sua moralidade diabólica e sem escrúpulos. Maquiavel
teria sido um ateu consciente empenhado em subverter e destruir o
cristianismo. Maquiavel teria sido o primeiro filósofo político moderno,
alguém que, tendo iniciado a revolução contra a tradição do pensamento
político ocidental, iniciaria também o declínio da própria civilização
ocidental. Tudo o que agora posso laconicamente dizer — sem, contudo,
justificar a minha posição — é que esta não é, de todo, a minha opinião.
O que "O Príncipe” moderno deveria aprender com a obra do pensador florentino?
Para que possamos responder a esta pergunta é preciso que saibamos
exatamente a que ponto o “Estado de direito” hodierno se afastou
realmente de Maquiavel. É necessário que avaliemos primeiro, e
escrupulosamente, o que nos custa esse afastamento, o que pagamos,
enfim, por ele. É necessário, por isso, que saibamos até onde, de
maneira talvez insidiosa, Maquiavel se aproximou de nós e do nosso
“Estado de direito”.
É, pois, necessário que o próprio “Estado de direito” apure o que há
ainda de maquiaveliano naquilo que lhe permite pensar-se e definir-se
contra Maquiavel. Por fim, é necessário ainda que se avalie em que
medida o protesto moral do “Estado de direito” contra Maquiavel não será
talvez ainda uma armadilha que o próprio Maquiavel lhe estendeu — uma
armadilha de onde ele, Maquiavel, maliciosamente o espreita e observa.
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