IHU - Existe o julgamento e o Inferno
que dele pode derivar? Ou seja, existe uma lógica do mundo à qual a
liberdade deve prestar contas? Ou esse dia não virá e não haverá
julgamento, porque não existe lógica maior do que o homem, e o mundo é
apenas dos poderosos e dos astutos?
A análise é do teólogo italiano Vito Mancuso, professor da Universidade de Pádua, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 13-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Existe o inferno? E, se existe, quais são os critérios para ser nele
encerrado ou dele escapar? São essas as duas grandes questões levantadas
pelo poderoso discurso do Papa Francisco no dia 11 de
junho, quando levantou alto a sua voz contra quem "vive no mal, blasfema
contra Deus, explora os outros, tiraniza-os, vive apenas para o
dinheiro, a vaidade, o poder"; quando alertou contra "colocar a
esperança no dinheiro, no orgulho, no poder, na vaidade"; quando disse
que os corruptos não serão felizes "do outro lado" e que para eles "será
difícil ir ao encontro do Senhor"; quando trovejou contra aqueles que
"fabricam armas para fomentar as guerras", dizendo que "são mercadores
de morte e fazem mercadoria de morte". Contra esses operadores de
iniquidade, o papa proclamou que "um dia tudo acaba, e terão que prestar
contas a Deus".
Palavras que me recordaram a mão levantada de Frei Cristoforo na casa do Pe. Rodrigo e o seu célebre "virá um dia" do capítulo sexto de Os noivos.
Mas realmente virá esse dia? Existe o julgamento e o Inferno que dele
pode derivar? Ou seja, existe uma lógica do mundo à qual a liberdade
deve prestar contas? Ou esse dia não virá e não haverá julgamento,
porque não existe lógica maior do que o homem, e o mundo é apenas dos
poderosos e dos astutos?
Bem longe de remeter a lúgubres e grotescos cenários com diabos e
tridentes ardentes, a existência do Inferno remete ao sentido geral do
mundo: se ele é, em última análise, governado por uma lógica do bem e da
justiça à qual a liberdade deve responder (tornando-se responsável) ou
não, porque há apenas o arbítrio e a vontade de poder dos indivíduos em
competição entre si.
Platão já alimentava a convicção de que o além reserva "algo muito melhor para os bons do que para os maus" (b, 63 C), e Kant,
por sua vez, afirmou: "Não encontramos nada que já desde agora possa
nos fornecer informações sobre o nosso destino em um mundo futuro se não
o juízo da nossa consciência, aquele que o nosso estado moral presente
nos permite julgar de maneira racional" (O fim de todas as coisas).
Todas as grandes religiões ensinam que a alma será julgada: os
egípcios, mediante a imagem da psicostasia ou da pesagem da alma
(retomada também na Idade Média cristã); o zoroastrismo
e o Islã, mediante o símbolo da ponte escatológica tão fina quanto um
fio de cabelo, sobre a qual as almas sobrecarregadas pelo pecado
precipitam sem escapatória; o hinduísmo e o budismo, mediante o conceito
de karma, que determina as sucessivas reencarnações.
O cenário, portanto, é o mesmo: 1) há uma lógica que estrutura o fazer-se do mundo; 2) a liberdade humana é chamada a responder a ela; 3) a qualidade da resposta determina o juízo que lhe espera, quando a liberdade desaparecer diante da lógica cósmica; 4)
o juízo pode ter um resultado negativo. O que o cristianismo chama de
Inferno, laicamente, é o fracasso, no sentido de que a liberdade pode
fracassar, e uma existência inteira pode se revelar desperdiçada.
Referindo-se a corruptos, traficantes de seres humanos, comerciantes
de morte e, em geral, a todos aqueles cuja interioridade é habitada pela
avidez e pela cobiça, o Papa Francisco
nada mais fez do que reafirmar a soberania do bem e da justiça (que um
cristão chama de Deus) neste mundo e a consequente responsabilidade que
dela brota, a de configurar a vida à altura desse nobre ordenamento.
Naturalmente, disso não se segue absolutamente a segurança na existência do Inferno-Paraíso
e de Deus; tudo isso continuará sendo sempre e apenas objeto de fé.
Segue-se disso, em vez, uma pergunta para cada pessoa responsável: o
amor pelo bem e pela justiça que, às vezes, se acende em nós é apenas um
desejo personalíssimo ou é a manifestação de uma lógica maior à qual
pertencemos originalmente?
Chego à segunda questão levantada pelo profético discurso do papa, a
dos critérios que, no juízo final, determinam a perdição ou a salvação. A
tradição cristã afirma, por um lado, que nos salvamos graças à fé, por
outro, graças ao bem realizado. Mas a quem cabe o primado: à fé
professada ou ao bem praticado? E quem irá para o Inferno: os não
crentes ou os iníquos?
Ainda hoje, alguns cristãos defendem o primeiro polo da alternativa
ressaltando a irrelevância da dimensão ética para o destino final,
jogado inteiramente na adesão ao "escândalo" da fé de que falava São Paulo, exemplificada pelo conhecido ditado de Lutero, que convidava até a pecar, mas a acreditar ainda mais (pecca fortiter sed fortius crede).
O papa, no dia 11, disse exatamente o contrário: irão ao Inferno os
iníquos, os corruptos, quem vive apenas para o dinheiro e faz mal ao
próximo. É o pensamento de Jesus, que aparece no Evangelho com os
critérios do juízo final baseados não na adesão doutrinal, mas na
prática do bem: "Eu estava com fome, e vocês me deram de comer; eu
estava com sede, e me deram de beber..." (Mt 25, 35-42).
Essa também é uma convicção universal. Para me limitar à religião do antigo Egito, na pesagem da alma do defunto, o contrapeso era a pena da deusa Maat, personificação da Justiça. Mas ainda mais notável é a semelhança entre o trecho evangélico citado e uma passagem do Livro dos Mortos: "Eu satisfiz Deus com o que ele ama. Dei pão ao faminto, água ao sedento, vesti o nu, um barco a quem não tinha".
Essas palavras remontam a 1.500 anos antes de Cristo.
De textos como esse emerge a verdade do cristianismo, verdade como
universalidade que todas as religiões alcançar e que nunca faltou aos
homens. E é falando essa linguagem que o Papa Francisco alcança todos aqueles que amam a justiça, independentemente da fé ou do povo a que pertençam.
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