30 Jun 14
Vaticano, (ACI).-
ACI Digital oferece a seus
leitores e ao público em geral a íntegra em português da entrevista que o
Papa Francisco concedeu recentemente ao jornal italiano Il Messagero,
publicada no domingo 29 de junho, festa dos Apóstolos Pedro e Paulo.
Nesta oportunidade o Santo Padre fala da realidade de Roma, do
comunismo, do papel da mulher na Igreja, da corrupção e a política.
O texto original da entrevista encontra-se aqui.
E então, na partida a Itália x Uruguai. Santo Padre, para quem torcia?
Eu, para nenhum, na verdade. Prometi à presidenta do Brasil (Dilma Rousseff), que seria neutro.
Começamos por Roma?
Você sabia que eu não conheço Roma? Veja só, eu vi a Capela Sistina pela primeira vez quando participei do Conclave que elegeu Bento XVI
(2005). Nem sequer estive nos Museus. O fato é que quando era Cardeal
não vinha muito frequentemente. Conheço Santa Maria Maior porque ia
sempre. E depois São Lorenzo Extra Muros, onde ia para as confirmações
quando estava Dom Giacomo Tantardini. Obviamente conheço Piazza Navona
porque sempre me alojei na Via della Scrofa, ali ao lado”.
Há um pouco de romano no Bergoglio argentino?
Pouco e nada. Eu sou mais do Piamonte, essas são as raízes de minha
família de origem. Ainda estou começando a me sentir romano. Tenho a
intenção de ir visitar o território, as paróquias. Estou descobrindo
pouco a pouco esta cidade. É uma metrópole muito formosa, única, com os
problemas das grandes metrópoles. Uma pequena cidade possui a estrutura
quase inequívoca, uma metrópole, por outro lado, compreende sete ou oito
cidades imaginárias, superpostas juntas, em vários níveis. Também em
níveis culturais.
Penso, por exemplo, nas tribos urbanas juvenis. Ocorre o mesmo em todas
as cidades. Em novembro faremos em Barcelona um congresso dedicado
precisamente à pastoral das metrópoles. Na Argentina promoveu-se
intercâmbios com o México. Descobriram muitas culturas cruzadas, mas nem
tanto devido às migrações, mas porque se tratavam de territórios
culturais transversais, feitos de pertences próprios. Cidades dentre de
uma cidade. A Igreja deve saber responder a este fenômeno.
Por que S.S. desde o começo quis sublinhar tanto as funções de Bispo de Roma?
O primeiro serviço de Francisco foi este: ser o Bispo de Roma. Todos os
títulos do Papa, Pastor universal, Vigário de Cristo, etecetera, são
dados ao Papa precisamente porque é Bispo de Roma. É a eleição
primitiva. As consequências do Primado do Pedro. Se amanhã o Papa
quisesse ser o Bispo de Tivoli, certamente me removeriam.
Há 40 anos, com o Papa Paulo VI, o Vicariato (da diocese de Roma) promoveu o congresso sobre os males de Roma. Dali saiu um quadro da cidade onde os que tinham muito tinham o melhor, e quem tinha pouco, tinha o pior. Hoje, no seu parecer, Quais são os males desta cidade?
São os das metrópoles como Buenos Aires. Estão os mais beneficiados, e
aqueles que estão cada vez mais pobres. Não sabia do congresso sobre os
males de Roma. Estas são perguntas muito romanas, e eu então tinha 38
anos. Sou o primeiro Papa que não participou do Concílio e, naquela
época, para nós a grande luz era Paulo VI. Para mim, a Evangelii
Nuntiandi, sempre será um documento pastoral insuperável.
Existe uma hierarquia de valores a ser respeitada na gestão dos assuntos públicos?
É evidente. Tutelar sempre o bem comum. A vocação para qualquer político
é esta. Um conceito amplo que inclui, por exemplo, a custódia da vida
humana, de sua dignidade. Paulo VI costumava dizer que a missão da
política permanece como uma das mais altas da caridade. Hoje o problema
da política –não falo só da Itália, mas de todos os países, pois o
problema é mundial-, é que se desenvolveu, arruinado pela corrupção,
pelo fenômeno dos subornos.
Lembro-me de um documento que publicaram os bispos
franceses há 15 anos. Era uma carta pastoral titulada: Reabilitar a
política. Confrontava precisamente este argumento. Se não houver um
serviço de base, não se pode sequer entender a identidade da política.
Sua Santidade disse que a corrupção cheira a putrefação. Disse também que a corrupção social é o fruto do coração doente e não só de condições externas. Não haveria corrupção sem corações corruptos. O corrupto não tem amigos, apenas idiotas que lhe são úteis. Poderia explicar-nos melhor isso?
Falei durante dois dias seguidos sobre este tema porque comentava a
leitura da Vinha de Nabor. Eu gosto de falar sobre as leituras do dia.
No primeiro dia confrontei a fenomenologia da corrupção, no segundo dia
sobre como acabam os corruptos. O corrupto, portanto, não tem amigos, só
tem cúmplices.
Você acredita que se fala tanto de corrupção porque os meios de
comunicação insistem neste tema ou porque efetivamente se trata de um
mal endêmico e grave?
Não, infelizmente o fenômeno é mundial. Há chefes de estado na prisão
precisamente por isso. Perguntei-me muito sobre isto, e cheguei à
conclusão que muitos males crescem sobre tudo durante as mudanças de
época. Estamos vivendo mais que uma época de mudanças, mas uma mudança
de época. E portanto, trata-se de uma mudança de cultura, precisamente
desta fase emergem coisas assim. A mudança de época alimenta a
decadência moral, não só na política, mas também na vida financeira ou
social.
Também os cristãos parecem não brilhar por seu testemunho…
O ambiente é o que facilita a corrupção. Não digo que todos sejam
corruptos, mas acredito que é difícil permanecer honestos nesta
política. Falo de todo o mundo, não só da Itália. Penso também em outros
casos. Às vezes há pessoas que queriam fazer as coisas mais claras, mas
depois se encontram com dificuldades, e é como se fossem fagocitados
por um fenômeno endêmico, a altos níveis, transversais. Não porque seja
esta a natureza da política, mas sim porque em uma mudança de época, as
tensões para uma certa deriva moral se tornam fortes.
O que mais o assusta: a pobreza moral ou material de uma cidade?
Asduas me assustam. Um faminto, por exemplo, posso ajudá-lo para que não
tenha mais fome, mas se tiver perdido o trabalho e não encontra outra
ocupação, isso já é outra pobreza. Ele já não tem dignidade.
Possivelmente possa ir à Cáritas e levar para casa um pouco de
mantimentos, mas experimenta uma pobreza muito grave que arruína o seu
coração. Um Bispo auxiliar de Roma me contou que muitas pessoas vão aos
refeitórios populares em segredo, cheios de vergonha, e levam para casa a
comida. Sua dignidade se empobreceu e vivem em um estado de prostração.
Pelas grandes ruas de Roma vê-se mulheres de apenas 14 anos, frequentemente obrigadas a prostituir-se no meio do descuido geral, enquanto que no metrô vê-se crianças mendigando. A Igreja é ainda fermento para a massa? Sente-se impotente como Bispo ante esta degradação cultural?
Sinto dor. Sinto uma enorme dor. A exploração de crianças me faz sofrer.
Também na Argentina ocorre o mesmo. Para alguns trabalhos manuais se
utiliza crianças porque têm as mãos menores pequenas. Mas elas também
são exploradas sexualmente em hotéis. Uma vez me advertiram sobre uma
rua de Buenos Aires onde havia garotinhas, prostitutas de 12 anos.
Informei-me e efetivamente era sim. Isto me feriu. Mais ainda ao ver que
eram abordadas por automóveis de grande cilindrada conduzidos por
idosos. Podiam ser seus avós. Subiam a menina ao carro, davam-lhe 15
pesos que depois eram usados para comprar drogas, uma dose. Para mim as
pessoas que fazem isto com meninas são pedófilos. Acontece também em
Roma. A cidade eterna que deveria ser um farol no mundo é um espelho da
degradação moral da sociedade. Penso que são problemas que se resolve
com uma boa política social.
O que pode fazer a política?
Responder limpamente. Por exemplo, com os serviços sociais que permitam
que as famílias entendam e tenham acompanhamento para sair de situações
difíceis. O fenômeno indica uma deficiência do serviço social na
sociedade.
A Igreja está trabalhando muitíssimo…
E deve continuar fazendo-o. Precisamos ajudar as famílias em dificuldade, uma tarefa árdua que requer esforço comum.
Em Roma cada vez menos jovens vão à igreja, não batizam seus filhos, não sabem nem sequer fazer o sinal da cruz. Que estratégia serviria para mudar esta tendência?
A Igreja deve sair às ruas, procurar às pessoas, ir às casas, visitar as
famílias, ir às periferias. Não ser uma Igreja que só recebe, mas que
oferece.
E os párocos devem então colocar chifres nas ovelhas (ndt: referindo-se a que os cristãos devem ser encorajados pelos párocos a serem mais agressivos no anúncio da Boa Nova)…
(Risadas) Obviamente. Estamos em uma época de missão há dez anos. Devemos insistir nisso.
Preocupa-lhe a cultura da não-natalidade na Itália?
Acredito que é preciso trabalhar mais pelo bem comum da infância. Pôr
sobre a família um compromisso, às vezes não é suficiente com um
salário, não se chega ao fim do mês. Existe o medo de perder o trabalho
ou de não poder pagar mais o aluguel. A política social não ajuda. A
Itália tem uma taxa de natalidade muito baixa, a Espanha também. A
França vai um pouco melhor, mas também é baixa. É como se a Europa,
cansou-se do papel de mãe e preferisse o de avó. Muito depende da crise
econômica e não só de uma deriva cultural sobrecarregada no egoísmo e no
hedonismo. O outro dia eu lia uma estatística sobre os critérios do
gasto da população em nível mundial. Depois da alimentação, vestidos e
remédios, três vozes necessárias, seguem a estética e os gastos com os
animais domésticos.
As crianças importam menos que os animais?
Trata-se de outro fenômeno de degradação cultural. Isto é porque a
relação afetiva com os animais é mais fácil, mais previsível. Um animal
não é livre, enquanto que ter um filho é uma coisa complexa.
O Evangelho fala mais aos pobres ou aos ricos para convertê-los?
A pobreza está no centro do Evangelho. Não se pode entender o Evangelho
sem entender a pobreza real, tendo em conta que existe também uma
pobreza belíssima do espírito: ser pobre perante Deus porque Deus te
preenche. O Evangelho se dirige indistintamente a pobres e ricos. E fala
tanto de pobreza como de riqueza. Não condena para nada aos ricos, mas
sim as riquezas quando se tornam objetos de idolatria. O deus dinheiro, o
bezerro de ouro.
Sua Santidade tem fama de ser um Papa comunista, populista. A revista The Economist, que lhe dedicou uma capa, afirma que fala como Lenin. Identifica-se com isto?
Eu digo apenas que os comunistas nos roubaram a bandeira. A bandeira dos
pobres é cristã. A pobreza está no centro do Evangelho. Os pobres estão
no centro do Evangelho. Se olharmos Mateus 25, o protocolo sobre o qual
seremos julgados: tive fome, tive sede, estive no cárcere, estive
doente, nu. Ou olhemos as Bem-aventuranças, que é outra bandeira. Os
comunistas dizem que tudo isto é comunista. Sim, como não, vinte séculos
depois. Então quando falamos de comunistas, nós poderíamos virar e
dizer: então vocês são cristãos! (risadas)
Se me permitir uma crítica…
Claro.
Você possivelmente fala pouco das mulheres e quando fala confronta o argumento só do ponto de vista maternal, a mulher esposa, a mulher mãe, etecetera. E as mulheres já dirigem estados, multinacionais, exércitos. Na Igreja, segundo você, que lugar ocupa as mulheres?
As mulheres são o mais formoso que Deus criou. A Igreja é mulher. Igreja
é uma palavra feminina. Não se pode fazer teologia sem esta feminidade.
Disto você tem razão, não se fala o suficiente. Estou de acordo que se
deve trabalhar mais sobre a teologia da mulher. Eu já disse e se está
trabalhando neste sentido.
Não entrevê uma certa misoginia de fundo?
O fato é que a mulher foi tirada de uma costela… (risadas). Brinco, eu
só estava brincando. Estou de acordo que é necessário aprofundar mais na
questão feminina, do contrário não se pode entender a Igreja em si
mesma.
Podemos esperar de você decisões históricas, tipo uma mulher chefe de dicastério, não falo do clero…
(Risadas). Bom, muitas vezes os sacerdotes acabam sob a autoridade das beatas de igreja…
Em agosto S.S. irá a Coréia. É a porta para a China? Está apontando para a Ásia?
Irei à Ásia duas vezes em seis meses. À Coréia em agosto para encontrar
aos jovens asiáticos. Em janeiro ao Sri Lanka e Filipinas. A Igreja na
Ásia é uma promessa. A Coréia representa muito, tem uma história muito
bonita, durante dois séculos não teve sacerdotes e o catolicismo avançou
graças aos leigos. Houve também mártires. Quanto à China, trata-se de
um desafio cultural grande. Maior. E depois está o exemplo de Matteo
Ricci, que fez tanto bem…
Para onde está indo a Igreja de Bergoglio?
Graças a Deus não tenho nenhuma Igreja, sigo a Cristo. Não fundei nada.
Do ponto de vista do estilo não mudei comparado a como eu era em Buenos
Aires. Sim, possivelmente alguma coisa pequena, porque é devido, mas
mudar na minha idade teria sido ridículo. Em meu programa, por outro
lado, sigo o que os cardeais
pediram durante as congregações gerais antes do Conclave. Vou nessa
direção. O Conselho dos oito cardeais, um organismo externo, nasce daí.
Haviam pedido para ajudar a reformar a Cúria. Algo por outro lado nada
fácil, porque damos um passo, mas logo ocorre algo que mostra que falta
isso ou aquilo, e se primeiro era um dicasterio depois se converte em
quatro... Minhas decisões são o fruto das reuniões Pré-Conclave. Eu não
tenho feito nada sozinho.
Isto é uma aproximação democrática…
Foram as escolhas dos cardeais. Não sei se se trata de uma aproximação
democrática, diria que foi mais sinodal, ainda que esta palavra para os
cardeais não seja a apropriada.
Que deseja aos romanos pela festa dos padroeiros São Pedro e Paulo?
Que continuem sendo bons. São muito simpáticos. Vejo-os nas audiências e
quando vou às paróquias. Espero deles que não percam a alegria, a
esperança, a fé não obstante as dificuldades. Também o ‘romanaccio’
–dialeto romano-, é bonito.
Wojtyla tinha aprendido a dizer em dialeto romano. ‘nos amemos os uns aos outros, nos ofereçamos a outros’. Você aprendeu alguma frase em romano?
Por enquanto poucas, ´Campa e fa’ campa´ -viva e deixe viver- (termina o Papa com risadas).
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