RIO - Manhã de domingo, igreja cheia. Muitos homens vestem trajes
formais. Mulheres levam véus sobre os cabelos. O silêncio absoluto é
quebrado por um canto gregoriano. O padre passa pelos fiéis a caminho do
altar. Sempre de costas para a audiência, dá início à missa em
inconfundível latim: In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti. A resposta vem em uníssono:
Introibo ad altare Dei, ad Deum qui lætificat juventutem meam
(Entrarei no altar de Deus, o Deus que alegra minha juventude). A cena
evoca imediatamente imagens medievais, mas ocorreu no último dia 13 de
julho, no Centro do Rio de Janeiro. Lá, a antiga Sé do Brasil, atual
Igreja de Nossa Senhora do Carmo, sítio da coroação de João VI e Pedro
I, é palco para uma das muitas missas tridentinas que se espalham pelo
Brasil, numa ressurreição de formas litúrgicas antigas que atrai
incontáveis jovens fiéis. O termo Juventutem, aliás, designa um
movimento de volta às tradições católicas liderado por pessoas de 16 a
34 anos.
— Descobri a missa há uns anos, é um tesouro. Está claro
que tem algo de sagrado aqui. É possível perceber tanto com os ouvidos
quanto com os olhos — arrisca o engenheiro Felipe Alves, de 25 anos.
ORIGENS NO IMPÉRIO ROMANO DO OCIDENTE
A
missa tridentina, ou rito latino, foi normatizada no Concílio de
Trento, em 1570, mas tem bases bem mais antigas, que remontam ao Império
Romano do Ocidente, extinto no século V. O conservadorismo, a
sobriedade e o extremo recolhimento dos fiéis na cerimônia foram
utilizados pela Igreja no século XVI como resposta às reformas
protestantes do Norte da Europa que abalaram as estruturas pontifícias.
Nela,
o único idioma utilizado é o latim, chamado pelos adeptos de “língua
universal da fé”. Enquanto nas missas comuns nos nossos tempos os
católicos se ajoelham apenas uma vez, na antiga esse número salta para
quase dez, incluindo o momento de receber a hóstia. Há intervalos para a
meditação, quando o silêncio chega ao extremo de permitir que se ouça
tudo o que se passa do lado de fora da igreja. Durante quase toda a
cerimônia o padre permanece de frente para a cruz do altar.
Foram
séculos assim, até que o Concílio Vaticano II, na década de 1960,
introduziu inúmeras mudanças, o uso da língua local e o padre de frente
para os fiéis entre elas. Mas o século XXI vive uma intrigante retomada
de tradições conservadoras na Igreja. Em 2007, o agora papa emérito
Bento XVI promulgou a carta “Summorum Pontificum”, em que exaltava a
volta às tradições e o caráter “excepcional” da missa tridentina. Até
então, párocos que quisessem rezar no estilo antigo deveriam pedir
permissão direta à Cúria, no Vaticano. Desde então, a escolha passou a
caber a cada paróquia.
Para o padre Luís Correa Lima, professor de Teologia da PUC-Rio, o mistério por trás da missa tridentina é o que fascina.
—
Tudo nela é meio misterioso. O padre fica de costas, falando em uma
língua desconhecida e seguindo uma liturgia extremamente codificada. Mas
esse rito encanta por ser algo ancestral e imutável, por evocar a
transcendência de Deus. São elementos que fascinam o jovem — opina.
Curiosamente,
a introdução da missa moderna e a ressurreição da antiga têm a mesma
preocupação: tentar estancar a perda de fiéis da maior designação
cristã. Não há números que revelem se a volta ao passado teve algum
efeito nesse sentido. Mas é fato que, amparadas pelos jovens católicos
conservadores, as missas tridentinas crescem país afora. Em 2007, uma
organização independente contabilizou 20 dessas celebrações no
território nacional. Agora, cerca de cem ocorrem com regularidade.
—
Vivemos numa sociedade muito centrada no indivíduo, na qual se valoriza
a autodeterminação e tudo é incerto. Então surgem grupos que evocam o
passado, em que tudo estava respondido pelo religioso — analisa o
historiador Sérgio Coutinho, presidente do Centro de Estudos em História
da Igreja na América Latina (CEHILA).
Ligado à ala progressista
da Igreja, Coutinho entende que os fiéis da missa tridentina são
conservadores em tudo, inclusive politicamente:
— Eles creem que o
Concílio Vaticano II não deveria ter acontecido, pois teria aberto
demais a Igreja. Querem uma fuga do mundo, encontrar formas tradicionais
de se viver. É como se quisessem que o passado voltasse.
Responsável
por rezar a missa tridentina aos domingo na igreja do Centro do Rio, o
padre Bruce Judice discorda. Segundo ele, dois dos princípios pregados
em sua celebração são o respeito às diferenças e a orientação para que
os fiéis não se fechem em círculos católicos isolados.
— Sempre
dizemos que este não é o único modo de rezar. Não somos contra o
Concílio Vaticano II — esclarece o padre, de 35 anos. — O que há, sim, é
uma sede de espiritualidade entre os jovens. Há quem procure ioga,
meditação, natureza... E há quem busque a missa tridentina.
Foi
esta última a escolha do adolescente Eduardo Salomão, de 15 anos. Ele
aprendeu latim sozinho e quer ser padre. Aos domingos, vai a uma missa
tridentina e a outra contemporânea:
— Claramente prefiro a
tridentina. Já cheguei a ser tachado de maluco. O rito contemporâneo não
é para mim. No antigo, a meditação, o silêncio e a beleza encantam.
Bárbara
Soares descobriu o rito pela internet. Foi no quase extinto Orkut que a
estudante de Letras conheceu outros jovens adeptos da tradição. Ela
ficou tão encantada com as primeiras celebrações que não parou mais de
frequentar as missas. Numa delas, conheceu seu marido. Hoje, já casada
aos 20 anos, Bárbara vai à igreja com o véu sobre os cabelos e defende a
vestimenta:
— Ele mostra a dignidade da mulher, exalta seu caráter sagrado.
Ela
segue a linha de centenas de integrantes oficiais do Juventutem no
Brasil. Fundado em 2004, na Suíça, o movimento teve um primeiro encontro
internacional em 2005, na Alemanha, e, desde então, tem crescido e sido
cada vez mais representado nas Jornadas Mundiais da Juventude. Ano
passado, milhares deles vieram ao Rio de Janeiro. E, pela internet,
muitos se já se articulam para a próxima edição do evento católico, em
2016, na Polônia. Em fóruns internacionais do movimento pela internet
são comuns discussões relacionadas à liturgia católica e também a
assuntos ligados a direitos civis, com muitos dos seus membros
condenando uniões entre pessoas do mesmo sexo e o direito ao aborto, por
exemplo.
ORTODOXOS MANTÊM USO DE GREGO E ÁRABE
Engana-se
quem pensa que o ritual tridentino é o único dentro do catolicismo que
busca a retomada de tradições ancestrais. A poucas quadras da antiga Sé
carioca, na paróquia greco-melquita de São Basílio e de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro, em plena Saara, histórico lar dos primeiros
imigrantes sírios e libaneses católicos ortodoxos, os idiomas usados em
ritos conservadores são o grego e o árabe. A igreja melquista, espremida
entre prédios na rua República do Líbano, é o primeiro templo católico
oriental do Brasil, fundado em 1941. Apesar de ainda ter forte conexão
com a comunidade sírio-libanesa, a missa tem um público crescente de
jovens e de pessoas curiosas.
Lá se celebra a missa bizantina,
tradição que começou ainda no século V numa região onde onde se estendem
parte dos territórios da Turquia, de Israel e da Palestina. Assim como
no rito latino, o sacerdote reza de costas para o público. A música, a
liturgia e as vestimentas remetem à cultura medieval dos católicos
orientais.
— O rito chama a atenção dos jovens, eles se sentem bem
pela beleza das orações. Hoje em dia os fieis estão a procurar as
tradições em resposta aos tempos tão conturbados em que vivemos. Devemos
voltar sempre às origens — diz o monsenhor George Khoury, da paróquia
de São Basílio.
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