terça-feira, 8 de julho de 2014

Vítima de abusos considera encontro com Papa Francisco uma “experiência de mudança de vida”

IHU - Desde os 8 até os 13 anos, Peter Saunders sofreu abusos sexuais por parte de um familiar, de professor leigo e por dois padres da escola católica em que estudava. Nascido num lar de católicos devotos, foi particularmente difícil para ele lidar com a vergonha, que pode ser parte do motivo pelo qual ele levou 24 anos para reconhecer o que havia acontecido.
A reportagtem é de Inés San Martín, publicada pelo jornal The Boston Globe, 07-07-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Hoje, Saunders, 57, lidera um grupo com sede em Londres chamado Associação Nacional de Pessoas Abusadas na Infância – NAPAC (na sigla em inglês). Nos últimos 19 anos esta associação vem prestando ajuda a outras vítimas no sentido de superarem o sofrimento através de um sistema de apoio.
“Criei o NAPAC porque, quando finalmente me vi pronto para falar sobre o que havia acontecido comigo, percebi que não tinha ninguém que poderia me compreender”, diz Saunders.
Saunders foi uma das seis vítimas de abusos que se encontrou com o Papa Francisco nesta segunda-feira. Ele descreve o encontro como sendo uma “experiência de mudança de vida”.
O entrevistado manifestou um otimismo de que Francisco irá ir até o fim em suas promessas de tolerância zero e responsabilização [nos casos de abusos por parte do clero].
“Eu acredito que ele seja um homem sincero”, afirma, “e acredito que ele seja alguém que quer fazer a coisa de maneira correta”.
Saunders falou em entrevista exclusiva ao The Boston Globe sobre o encontro com o Papa Francisco. O que se segue são excertos da conversa.

Eis a entrevista.

Então o senhor se encontrou com o papa hoje...

Na verdade, me encontrei com ele pela primeira vez ontem à noite. Ele veio ao refeitório quando estávamos jantando. Como qualquer outro mortal faria, ele simplesmente estava enchendo o seu prato para comer. Falei à pessoa que estava sentada próxima de mim: “Lá está o papa!” Ele estava prestes a sair, quando captei seu olhar e acenei para ele, após o que ele se aproximou. Eu estava me beliscando para ver se era verdade: “Isso está realmente acontecendo? Será que o papa está mesmo vindo aqui falar com a gente?” Ele apertou nossas mãos e nos cumprimentou. Eu falei: “Espero que a Argentina vença a Copa do Mundo...”.

E o que ele disse sobre isso?

Ele sorriu... ele quer mesmo que a Argentina vença. Ele não disse em voz alta, mas podíamos ver isso em seus olhos. Ele é um grande fã, porém discreto.

Qual foi o impacto deste primeiro encontro?

Foi divisor de águas. Lembro-me de ir dormir ontem à noite tendo a minha inquietação aliviada. Eu tinha me encontrado com ele; percebi que ele era apenas um alguém como nós desempenhando uma função extraordinária. Não quero falar pelos demais, mas eu acho que deixou a todos nós à vontade com sua informalidade. Ele é tão pé no chão que sequer quis que nos levantemos para cumprimentá-lo. E foi lindo.

O que o senhor pode nos contar sobre hoje de manhã?

Fomos à missa em sua pequena capela. Havia poucas pessoas aí. A sua homilia, ou sermão como dizemos, foi fantástica. Nela, o papa disse todas as coisas certas. Depois da missa e de receber a comunhão do papa, tiramos uma fotografia oficial. Esta foi provavelmente a única parte formal de todo o momento. Apertei sua mão e lhe dei um pequeno tapa no ombro. Foi legal.
Ele me concedeu algo que o primeiro-ministro, o vice-primeiro-ministro e todos os demais ministros do Reino Unido nunca concederam: tive a oportunidade de ter um diálogo com ele, sem limites, sem intermediários, apenas ele e eu... e um intérprete, visto que não falo espanhol e que ele não se sente confortável em inglês. Para mim foi um momento daqueles de mudar a nossa vida.

O que o senhor estava pensando?

No final da missa, fiquei muito, muito emocionado. Me vi pensando sobre minha mãe e meu pai, em particular o meu pai. Ele morreu há 19 anos e nunca soube o que aconteceu comigo quando eu era criança. Não sei como isso o afetaria caso descobrisse, pois ele era bastante devoto à Igreja. Acho que ele era tão devotado à Igreja quanto a minha mãe.
Pensei o quanto ele ficaria tocado se soubesse que seu filho estaria a três metros do Santo Padre, ouvindo a sua pregação e, em seguida, receber a Sagrada Comunhão. Acho que meu pai ficaria muito feliz com isso. Orgulhoso não é a palavra certa, mas ele estaria muito feliz.
Foi a morte de meu pai que me fez perceber que eu não poderia mais continuar escondendo as coisas. Até esse momento, eu nunca tinha compreendido o impacto que os abusos que sofri em todos aqueles anos tiveram sobre mim. A questão física, o abuso sexual, isso acabou há anos, mas isso tudo continua em meus pensamentos como se fosse ontem. Acho que este papa compreende isso de que estou falando.

O senhor disse que o papa falou as coisas certas. Poderemos dizer que ele e a Igreja estão fazendo as coisas certas?

Posso falar apenas sobre o que a Igreja Católica tem feito no Reino Unido, porque é onde eu conheço de perto. Eles vêm fazendo um grande trabalho para garantir que as crianças estejam protegidas, que é o objetivo principal. Sei que estão tendo bastante cuidado na escolha de quem eles permitem ao sacerdócio.
Mas ainda há muito trabalho que precisa ser feito. Ainda há pessoas vindo ao NAPAC dizendo-nos das más experiências que tiveram com a Igreja. Me parece estar quase enraizado o fato de que a Igreja tenha mais interesse em se autoproteger do que em ser transparente. A maneira para se mudar esta percepção é através da ação.

Muitos críticos afirmam que Francisco demorou muito para ter este encontro, que ele não fez o suficiente para lutar contra os abusos sexuais do clero e que há, ainda, muitas questões a serem resolvidas. Qual sua opinião?

Sei de muitas pessoas que estão muito, muito zangadas com a Igreja por causa da experiência que tiveram. Não vou negar-lhes a experiência que tiveram. As pessoas têm o direito de ficarem com raiva caso tenham sido tratadas de forma errada. Durante o meu trajeto pessoal, desde que tornei público os abusos sofridos, encontrei bastante apoio de muitas pessoas, incluindo o apoio de muitos católicos.
Provavelmente você conhece a SNAP [sigla em inglês para a Rede de Sobreviventes de Pessoas Abusadas por Padres, principal grupo de defesa de vítimas nos EUA]. Participei de três das últimas quatro conferências anuais deles e me encontrei com algumas pessoas que, o que é muito compreensível, estão muito zangadas com o que lhes ocorreu e com a resposta que tiveram da Igreja local. Compreendo isso perfeitamente. Mas, assim como aconteceu comigo, muitas das pessoas que vão para as conferências da SNAP ainda são católicas devotas, que apoiam aqueles que se desapontaram tristemente.
Como resultado de ter sido ferido por tantas pessoas quando fui criança, acabo desconfiando de certos grupos de pessoas. Quando vejo alguém em vestes clericais, dou um passo para trás e me protejo tomando o controle. Enquanto criança tiraram muita vantagem de mim e isso está gravado na minha cabeça. Mas, com o Papa Francisco hoje pela manhã, não tive nenhuma pitada de desconforto. Ele está à frente da Igreja faz um ano, e eu não consigo imaginar a quantidade de trabalho que ele tem. Alguns justificarão uma posição crítica dizendo que ele não tem feito muita coisa, ou que não tem agido tão rapidamente deveria, porém eu acho que ele é um homem sincero. Eu acredito que ele seja alguém que quer fazer a coisa de maneira correta.
Não creio que a pessoa com a qual eu me encontrei hoje seja alguém que queira me desapontar. Ele é um tipo diferente de papa. Ele com certeza é um papa do povo. Certamente é isso o que um padre deveria ser, um alguém do povo.
Sei que vou atrair algumas críticas ao falar sobre isso, mas esta não será a primeira vez. As pessoas podem fazer qualquer coisa, menos negar-me a minha fé. Nesta manhã pedi ao papa para ele instruir seus padres e bispos a trabalharem com as autoridades civis quando haver algum perigo potencial às crianças. Ele balançou a cabeça em concordância com isso. O papa não disse muita coisa, mas acho que ele sabe o que lhe estava sendo dito. Confio nele, e posso apenas esperar que ele não venha a trair esta confiança.

O senhor descreveu este encontro como uma experiência de mudança de vida. De forma geral, qual a importância deste momento do Papa Francisco com estas seis pessoas?

O papa não se encontrou apenas com estas seis vítimas. Ele tem 77 anos de idade, o que significa que já se encontrou com centenas de vítimas de abusos sexuais, não necessariamente nas mãos de sacerdotes. Ele com certeza rezou muitas missas que contavam com vítimas de abusos sexuais entre os presentes. Esta foi a primeira vez no sentido oficial. Rezo para que ele esteja enviando uma mensagem para cada bispo e diocese ao redor do mundo, dizendo para estes jamais acobertarem algo do tipo.
Um sermão, do tipo que foi dado pelo Papa Francisco nesta manhã, deveria ser lido em cada comunidade no mundo todo. Sei que isso iria tocar o coração de muitas pessoas que, por sua vez, iriam tocar o coração de outras a ponto de se sentirem inspiradas a voltarem para a Igreja.

Por que o senhor acha que foi escolhido para se encontrar com o papa?

Sei que não fui escolhido porque eles achavam que eu seria uma boa aposta de relações públicas. Não sei por que fui escolhido, mas posso adivinhar. Me tornei conhecido entre os líderes católicos na Inglaterra. Estive num programa de rádio logo após uma entrevista com o arcebispo de Westminster, e eu fui bastante crítico com ele, bastante crítico mesmo. Eles não me escolheram porque eu seria uma aposta segura, muito pelo contrário. Eu jamais vou saber por que fui escolhido, mas acho que Deus tem algo a ver com isso.

Quando leu na imprensa que o papa estaria indo se encontrar com vítimas de abusos sexuais, o senhor imaginou que poderia estar no grupo?

Claro que não! Lembro que passou pela minha cabeça: “Espero que ele se encontre com pessoas de verdade”. Sei por experiência própria que ele, de fato, se encontrou. Com toda honestidade, posso dizer que sentei e olhei nos olhos de um homem verdadeiro, que acontece de ser o papa. Encontrei um cara honesto, sincero, cheio de amor – e isso já é o suficiente para mim, porque nenhum de nós é perfeito.
Muitas pessoas, quando descobriram que eu estaria no grupo, disseram: “Meu amigo, não pense que você não mereça isso, pois você merece”. Como muitas vítimas dos abusos, cresci pensando que eu não merecia nada. Sempre tive a sensação de que se algo de bom acontece comigo, ele vem com um preço. Um dos que me abusaram contou-me, quando eu ainda era criança, que eu jamais seria alguma coisa na vida. Isso era uma mentira, mas cresci pensando nisso. Durante as últimas semanas, estive me beliscando para saber: isso o que estava acontecendo era verdade? E era mesmo. Eu me encontrei com ele.

O que o senhor nos diz sobre a Associação Nacional de Pessoas Abusadas na Infância – NAPAC?

Esta ideia me ocorreu há 19 anos, quando meu pai morreu e quando eu não tinha ninguém para conversar [sobre os abusos]. Pensei, como muitos o fazem, que eu era o único a quem isso tinha ocorrido. Nas semanas, meses e anos que se seguiram desde a criação desta organização, encontrei milhares ao redor do mundo que sofreram todo tipo de abusos, incluindo abusos sexuais.
Não estivemos aí apenas pelas vítimas de abusos sexuais. Estivemos em nome daqueles que foram abusados fisicamente, emocionalmente... todas as formas de abuso tendem a se misturar com uma outra forma. Abuso sexual é violência física, e nós nos recuperamos dos machucados em nossos corpos, mas nossa mente não se recompõe como o nosso corpo. Uma das coisas que estamos fazendo no Reino Unido é tentar ter um encontro com o ministro da Saúde para pedir-lhe que inclua um tratamento melhor às pessoas com transtornos mentais. Nunca perguntamos aos que sofrem de depressão por que eles estão assim; simplesmente damos-lhes remédios.
Pensou-se a NAPAC como um lugar para as pessoas conversarem. Não fornecemos tratamento psiquiátrico. Tínhamos alguns grupos de apoio, mas não temos mais dinheiro para mantê-los. Então, temos uma linha gratuita com os telefones tocando o dia todo. Deveríamos ser enormes, mas o que queremos fazer é formar as pessoas dentro do sistema de saúde, de forma que, no final, a NAPAC não seja mais necessária. Esta é, no fim das contas, a minha esperança.

É uma grande esperança…

É mesmo. Mas nunca se sabe… Há 19 anos eu sonhava em me encontrar com o papa, e eu me encontrei. Eu estive nesta casa. Então, nunca se sabe.

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