IHU - Desde os 8 até os 13 anos, Peter Saunders
sofreu abusos sexuais por parte de um familiar, de professor leigo e por
dois padres da escola católica em que estudava. Nascido num lar de
católicos devotos, foi particularmente difícil para ele lidar com a
vergonha, que pode ser parte do motivo pelo qual ele levou 24 anos para
reconhecer o que havia acontecido.
A reportagtem é de Inés San Martín, publicada pelo jornal The Boston Globe, 07-07-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Hoje, Saunders, 57, lidera um grupo com sede em Londres chamado Associação Nacional de Pessoas Abusadas na Infância – NAPAC
(na sigla em inglês). Nos últimos 19 anos esta associação vem prestando
ajuda a outras vítimas no sentido de superarem o sofrimento através de
um sistema de apoio.
“Criei o NAPAC porque, quando finalmente me vi
pronto para falar sobre o que havia acontecido comigo, percebi que não
tinha ninguém que poderia me compreender”, diz Saunders.
Saunders foi uma das seis vítimas de abusos que se encontrou com o Papa Francisco nesta segunda-feira. Ele descreve o encontro como sendo uma “experiência de mudança de vida”.
O entrevistado manifestou um otimismo de que Francisco irá ir até o fim em suas promessas de tolerância zero e responsabilização [nos casos de abusos por parte do clero].
“Eu acredito que ele seja um homem sincero”, afirma, “e acredito que ele seja alguém que quer fazer a coisa de maneira correta”.
Saunders falou em entrevista exclusiva ao The Boston Globe sobre o encontro com o Papa Francisco. O que se segue são excertos da conversa.
Eis a entrevista.
Então o senhor se encontrou com o papa hoje...
Na verdade, me encontrei com ele pela primeira vez ontem à noite. Ele
veio ao refeitório quando estávamos jantando. Como qualquer outro
mortal faria, ele simplesmente estava enchendo o seu prato para comer.
Falei à pessoa que estava sentada próxima de mim: “Lá está o papa!” Ele
estava prestes a sair, quando captei seu olhar e acenei para ele, após o
que ele se aproximou. Eu estava me beliscando para ver se era verdade:
“Isso está realmente acontecendo? Será que o papa está mesmo vindo aqui
falar com a gente?” Ele apertou nossas mãos e nos cumprimentou. Eu
falei: “Espero que a Argentina vença a Copa do Mundo...”.
E o que ele disse sobre isso?
Ele sorriu... ele quer mesmo que a Argentina vença. Ele não disse em voz alta, mas podíamos ver isso em seus olhos. Ele é um grande fã, porém discreto.
Qual foi o impacto deste primeiro encontro?
Foi divisor de águas. Lembro-me de ir dormir ontem à
noite tendo a minha inquietação aliviada. Eu tinha me encontrado com
ele; percebi que ele era apenas um alguém como nós desempenhando uma
função extraordinária. Não quero falar pelos demais, mas eu acho que
deixou a todos nós à vontade com sua informalidade. Ele é tão pé no chão
que sequer quis que nos levantemos para cumprimentá-lo. E foi lindo.
O que o senhor pode nos contar sobre hoje de manhã?
Fomos à missa em sua pequena capela. Havia poucas
pessoas aí. A sua homilia, ou sermão como dizemos, foi fantástica. Nela,
o papa disse todas as coisas certas. Depois da missa e de receber a
comunhão do papa, tiramos uma fotografia oficial. Esta foi provavelmente
a única parte formal de todo o momento. Apertei sua mão e lhe dei um
pequeno tapa no ombro. Foi legal.
Ele me concedeu algo que o primeiro-ministro, o
vice-primeiro-ministro e todos os demais ministros do Reino Unido nunca
concederam: tive a oportunidade de ter um diálogo com ele, sem limites,
sem intermediários, apenas ele e eu... e um intérprete, visto que não
falo espanhol e que ele não se sente confortável em inglês. Para mim foi
um momento daqueles de mudar a nossa vida.
O que o senhor estava pensando?
No final da missa, fiquei muito, muito emocionado.
Me vi pensando sobre minha mãe e meu pai, em particular o meu pai. Ele
morreu há 19 anos e nunca soube o que aconteceu comigo quando eu era
criança. Não sei como isso o afetaria caso descobrisse, pois ele era
bastante devoto à Igreja. Acho que ele era tão devotado à Igreja quanto a
minha mãe.
Pensei o quanto ele ficaria tocado se soubesse que seu filho estaria a
três metros do Santo Padre, ouvindo a sua pregação e, em seguida,
receber a Sagrada Comunhão. Acho que meu pai ficaria muito feliz com
isso. Orgulhoso não é a palavra certa, mas ele estaria muito feliz.
Foi a morte de meu pai que me fez perceber que eu não poderia mais
continuar escondendo as coisas. Até esse momento, eu nunca tinha
compreendido o impacto que os abusos que sofri em todos aqueles anos
tiveram sobre mim. A questão física, o abuso sexual, isso acabou há
anos, mas isso tudo continua em meus pensamentos como se fosse ontem.
Acho que este papa compreende isso de que estou falando.
O senhor disse que o papa falou as coisas certas. Poderemos dizer que ele e a Igreja estão fazendo as coisas certas?
Posso falar apenas sobre o que a Igreja Católica tem feito no Reino
Unido, porque é onde eu conheço de perto. Eles vêm fazendo um grande
trabalho para garantir que as crianças estejam protegidas, que é o
objetivo principal. Sei que estão tendo bastante cuidado na escolha de
quem eles permitem ao sacerdócio.
Mas ainda há muito trabalho que precisa ser feito. Ainda há pessoas vindo ao NAPAC
dizendo-nos das más experiências que tiveram com a Igreja. Me parece
estar quase enraizado o fato de que a Igreja tenha mais interesse em se
autoproteger do que em ser transparente. A maneira para se mudar esta
percepção é através da ação.
Muitos críticos afirmam que Francisco demorou muito para ter este encontro, que ele não fez o suficiente para lutar contra os abusos sexuais do clero e que há, ainda, muitas questões a serem resolvidas. Qual sua opinião?
Sei de muitas pessoas que estão muito, muito zangadas com a Igreja
por causa da experiência que tiveram. Não vou negar-lhes a experiência
que tiveram. As pessoas têm o direito de ficarem com raiva caso tenham
sido tratadas de forma errada. Durante o meu trajeto pessoal, desde que
tornei público os abusos sofridos, encontrei bastante apoio de muitas
pessoas, incluindo o apoio de muitos católicos.
Provavelmente você conhece a SNAP [sigla em inglês para a Rede de Sobreviventes de Pessoas Abusadas por Padres,
principal grupo de defesa de vítimas nos EUA]. Participei de três das
últimas quatro conferências anuais deles e me encontrei com algumas
pessoas que, o que é muito compreensível, estão muito zangadas com o que
lhes ocorreu e com a resposta que tiveram da Igreja local. Compreendo
isso perfeitamente. Mas, assim como aconteceu comigo, muitas das pessoas
que vão para as conferências da SNAP ainda são católicas devotas, que apoiam aqueles que se desapontaram tristemente.
Como resultado de ter sido ferido por tantas pessoas quando fui
criança, acabo desconfiando de certos grupos de pessoas. Quando vejo
alguém em vestes clericais, dou um passo para trás e me protejo tomando o
controle. Enquanto criança tiraram muita vantagem de mim e isso está
gravado na minha cabeça. Mas, com o Papa Francisco hoje
pela manhã, não tive nenhuma pitada de desconforto. Ele está à frente
da Igreja faz um ano, e eu não consigo imaginar a quantidade de trabalho
que ele tem. Alguns justificarão uma posição crítica dizendo que ele
não tem feito muita coisa, ou que não tem agido tão rapidamente deveria,
porém eu acho que ele é um homem sincero. Eu acredito que ele seja
alguém que quer fazer a coisa de maneira correta.
Não creio que a pessoa com a qual eu me encontrei hoje seja alguém
que queira me desapontar. Ele é um tipo diferente de papa. Ele com
certeza é um papa do povo. Certamente é isso o que um padre deveria ser,
um alguém do povo.
Sei que vou atrair algumas críticas ao falar sobre isso, mas esta não
será a primeira vez. As pessoas podem fazer qualquer coisa, menos
negar-me a minha fé. Nesta manhã pedi ao papa para ele instruir seus
padres e bispos a trabalharem com as autoridades civis quando haver
algum perigo potencial às crianças. Ele balançou a cabeça em
concordância com isso. O papa não disse muita coisa, mas acho que ele
sabe o que lhe estava sendo dito. Confio nele, e posso apenas esperar
que ele não venha a trair esta confiança.
O senhor descreveu este encontro como uma experiência de mudança de vida. De forma geral, qual a importância deste momento do Papa Francisco com estas seis pessoas?
O papa não se encontrou apenas com estas seis
vítimas. Ele tem 77 anos de idade, o que significa que já se encontrou
com centenas de vítimas de abusos sexuais, não necessariamente nas mãos
de sacerdotes. Ele com certeza rezou muitas missas que contavam com
vítimas de abusos sexuais entre os presentes. Esta foi a primeira vez no
sentido oficial. Rezo para que ele esteja enviando uma mensagem para
cada bispo e diocese ao redor do mundo, dizendo para estes jamais
acobertarem algo do tipo.
Um sermão, do tipo que foi dado pelo Papa Francisco
nesta manhã, deveria ser lido em cada comunidade no mundo todo. Sei que
isso iria tocar o coração de muitas pessoas que, por sua vez, iriam
tocar o coração de outras a ponto de se sentirem inspiradas a voltarem
para a Igreja.
Por que o senhor acha que foi escolhido para se encontrar com o papa?
Sei que não fui escolhido porque eles achavam que eu
seria uma boa aposta de relações públicas. Não sei por que fui
escolhido, mas posso adivinhar. Me tornei conhecido entre os líderes
católicos na Inglaterra. Estive num programa de rádio
logo após uma entrevista com o arcebispo de Westminster, e eu fui
bastante crítico com ele, bastante crítico mesmo. Eles não me escolheram
porque eu seria uma aposta segura, muito pelo contrário. Eu jamais vou
saber por que fui escolhido, mas acho que Deus tem algo a ver com isso.
Quando leu na imprensa que o papa estaria indo se encontrar com vítimas de abusos sexuais, o senhor imaginou que poderia estar no grupo?
Claro que não! Lembro que passou pela minha cabeça:
“Espero que ele se encontre com pessoas de verdade”. Sei por experiência
própria que ele, de fato, se encontrou. Com toda honestidade, posso
dizer que sentei e olhei nos olhos de um homem verdadeiro, que acontece
de ser o papa. Encontrei um cara honesto, sincero, cheio de amor – e
isso já é o suficiente para mim, porque nenhum de nós é perfeito.
Muitas pessoas, quando descobriram que eu estaria no grupo, disseram:
“Meu amigo, não pense que você não mereça isso, pois você merece”. Como
muitas vítimas dos abusos, cresci pensando que eu não merecia nada.
Sempre tive a sensação de que se algo de bom acontece comigo, ele vem
com um preço. Um dos que me abusaram contou-me, quando eu ainda era
criança, que eu jamais seria alguma coisa na vida. Isso era uma mentira,
mas cresci pensando nisso. Durante as últimas semanas, estive me
beliscando para saber: isso o que estava acontecendo era verdade? E era
mesmo. Eu me encontrei com ele.
O que o senhor nos diz sobre a Associação Nacional de Pessoas Abusadas na Infância – NAPAC?
Esta ideia me ocorreu há 19 anos, quando meu pai
morreu e quando eu não tinha ninguém para conversar [sobre os abusos].
Pensei, como muitos o fazem, que eu era o único a quem isso tinha
ocorrido. Nas semanas, meses e anos que se seguiram desde a criação
desta organização, encontrei milhares ao redor do mundo que sofreram
todo tipo de abusos, incluindo abusos sexuais.
Não estivemos aí apenas pelas vítimas de abusos sexuais. Estivemos em
nome daqueles que foram abusados fisicamente, emocionalmente... todas
as formas de abuso tendem a se misturar com uma outra forma. Abuso
sexual é violência física, e nós nos recuperamos dos machucados em
nossos corpos, mas nossa mente não se recompõe como o nosso corpo. Uma
das coisas que estamos fazendo no Reino Unido é tentar
ter um encontro com o ministro da Saúde para pedir-lhe que inclua um
tratamento melhor às pessoas com transtornos mentais. Nunca perguntamos
aos que sofrem de depressão por que eles estão assim; simplesmente
damos-lhes remédios.
Pensou-se a NAPAC como um lugar para as pessoas
conversarem. Não fornecemos tratamento psiquiátrico. Tínhamos alguns
grupos de apoio, mas não temos mais dinheiro para mantê-los. Então,
temos uma linha gratuita com os telefones tocando o dia todo. Deveríamos
ser enormes, mas o que queremos fazer é formar as pessoas dentro do
sistema de saúde, de forma que, no final, a NAPAC não seja mais necessária. Esta é, no fim das contas, a minha esperança.
É uma grande esperança…
É mesmo. Mas nunca se sabe… Há 19 anos eu sonhava em
me encontrar com o papa, e eu me encontrei. Eu estive nesta casa.
Então, nunca se sabe.
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