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Desde o começo, os jesuítas constituíram grupo internacional; os primeiros membros eram alunos estrangeiros.
Os jesuítas têm uma dívida de gratidão com o Papa Pio VII
Por Thomas Worcester*
Os jesuítas e outros colegas, colaboradores e amigos – e todos aqueles formados nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio – têm uma dívida de gratidão com o Papa Pio VII. Sem este pontífice, é justo dizer que não haveria a Companhia de Jesus hoje, nem escolas jesuítas, faculdades ou universidades; não haveria casas de retiro e nem revistas jesuítas. Pois foi Pio VII quem, no dia 7 de agosto de 1814, restaurou a Companhia de Jesus, cerca de quatro décadas depois de sua supressão pelo Papa Clemente XIV.
Este ano marca o 200º aniversário da restauração. Na verdade, este
aniversário aconteceu em meio a tantos outros acontecimentos válidos de
nota, os quais fornecem um contexto útil para os eventos que a rodearam.
Estes aniversários também apresentam ocasiões excepcionais na escolha
de quais aspectos de um evento histórico são lembrados, quais não são e
de como o são lembrados. Vejamos.
Em 1814, aproximadamente 15 anos depois de dominar a Europa, o
imperador francês Napoleão Bonaparte se viu rodeado pela Quádrupla
Aliança entre a Inglaterra, Áustria, Prússia e Rússia, aliança que
contava com o pelo apoio moral do papado. Durante boa parte das duas
décadas anteriores, a França havia guerreado com o resto da Europa –
estendendo os benefícios da Revolução Francesa, segundo alguns autores;
subjugando através da violência vários Estados e seus povos, segundo
outros. A violência aconteceu também dentro da França: o Reino do Terror
enviou muitos à guilhotina sob suspeita de hostilidade para com a
Revolução – por mais ínfima que fosse.
De 1814, a guerra deu lugar a uma paz relativa na Europa do século
seguinte. Depois da derrota final de Napoleão, em 1815, não haveria
outra guerra europeia geral até a Primeira Guerra Mundial. Foram muitas
as vítimas de Napoleão, incluindo centenas de milhares de seus próximos
soldados, muitos perdidos nas regiões geladas da Rússia. Papas também
estiveram entre as vítimas de Napoleão. Pio VI morreu na França em 1799
como prisioneiro do imperador.
Os cardeais elegeram o Papa Pio VII no ano seguinte, em Veneza, o que
provou ser uma decisão fortuita. Sem a coragem e perseverança de Pio
VII, que reinou de 1800 a 1823, o papado poderia ter desaparecido por
completo na esteira de Napoleão. Em 1801, o papa e o imperador entraram
em acordo onde restauraram o episcopado e as estruturas diocesanas na
França, porém não deixaram lugar para as ordens religiosas masculinas e
femininas. Logo em seguida Napoleão quis mais de Pio VII, incluindo a
dissolução dos Estados papais. O exército francês apreendeu este papa e,
por fim, o levou para França como prisioneiro por sete anos.
Visto como uma espécie de mártir vivo por muitos na Europa, Pio VII
era um sobrevivente da guerra e da intimidação de Napoleão altamente
honrado. Tão logo Pio VII voltou triunfante para Roma em 1818,
apressou-se em restaurar os jesuítas ao redor do mundo. Portanto, os
aniversários da derrota de Napoleão (ou a libertação da Europa da
dominação napoleônica) e da restauração dos jesuítas estão muito ligados
entre si.
Em anos recentes, estudos da história jesuíta desde os fundadores da
ordem, em 1540, à supressão de 1773 se tornaram importantíssimos,
contando com grande número de conferências, teses, artigos e livros
sobre o assunto. Estudos sobre a restauração e sobre a Companhia de
Jesus restaurada continuaram, ao menos até agora, sendo um assunto de
menor preocupação. Poucos jesuítas notáveis dos séculos XIX e XX, como
Pierre Teilhard de Chardin ou Gerard Manley Hopkins, atraíram a atenção.
Estes são exceções.
A Companhia no contexto
Claro que a história jesuíta não se desdobrou de forma isolada do
resto do mundo. Em 1214, nasceu o futuro rei Luís IX da França, um rei
que iria liderar cruzadas à Terra Santa, um rei destinado a ser
canonizado santo. Foi o ancestral de muitos monarcas franceses, alguns
dos quais eram grandes apoiadores da Companhia de Jesus e alguns dos
quais certamente não eram. E 2014 também é um ano de aniversário na
Grã-Bretanha. Em 1714, o Eleitor de Hanover sucedeu a rainha Ana como
Jorge I, monarca da Inglaterra e Escócia, e com ele veio a garantia de
uma sucessão protestante que continua até hoje.
Que a Companhia de Jesus sobreviveu a tudo após sua supressão pelo
Papa Clemente XIV deveu-se, em grande parte, à Catarina, a Grande, quem,
assim como Jorge I, foi uma protestante alemã que se tornou monarca
fora das terras germânicas. Como czarina do Império Russo, Catarina se
recusou a permitir que o documento papal de supressão fosse publicado em
seus territórios, fazendo assim possível que os jesuítas continuassem o
seu trabalho em escolas e em recrutar novos membros para si.
Sob a Casa de Hanover, os jesuítas na Inglaterra e seu império
acabaram prosperando de tal forma superou aquilo que eles tinham
condições de fazer sob os Tudors ou Stuarts. Uma das lições da história
jesuíta é que seus amigos e apoiadores, ou ao menos as pessoas dispostas
tolerá-los, podem ser encontrados em lugares surpreendentes e que
algumas figuras que se poderia esperar serem fortes apoiadores da
Companhia de Jesus nem sempre são assim.
Muitos dos vários aniversários que marcam este ano estão relacionados
com a guerra, com a guerra europeia ou outras. Nos Estados Unidos,
estamos marcando o sesquicentenário da Guerra Civil; este ano, o
fundador do Cemitério Nacional Arlington, de 1864, vem recebendo atenção
especial. Também lembramos o 50º aniversário da aprovação dos Direitos
Civis de 1964.
Tais aniversários podem ajudar a desencorajar a idealização do
passado, incluindo o passado jesuíta, como se este tivesse sido uma era
dourada tão somente. Pois o passado jesuíta inclui a existência de
escravos e outros atos de aquiescência com o que, hoje, vemos como
abusos terríveis dos direitos humanos.
Não obstante, um outro aniversário de guerra está diante de nós: o
centenário do início daquilo que se tornaria a Primeira Guerra Mundial.
Como este momento será lembrado? Uma exposição em andamento na National
Portrait Gallery, em Londres, apresenta uma seleção de fotografias da
Grande Guerra que mostram rostos confiantes e mesmo triunfantes de
líderes militares, mas também rostos cansados e desmoralizados de
feridos e cicatrizados. Em Paris, pelo contrário, há uma exposição de
fotografias publicadas no jornal Excelsior entre 1914 e 1918 que mostram
muita coragem e determinação, com muito pouco para sugerir que a
vitória alguma vez estivesse em dúvida. A guerra pode ser lembrada de
muitas e diferentes formas.
A história dos jesuítas é, entre outras coisas, a história de um
antídoto potencial para antagonismos nacionais e para a guerra que estes
resultam. Desde o começo, os jesuítas constituíram um grupo
internacional, pois os primeiros membros eram todos alunos estrangeiros
em Paris. Uma vez aprovada pelo Papa Paulo III em 1540, a Companhia de
Jesus em breve se tornou ainda mais internacional, na medida em que
Francisco Xavier rumava para a Ásia e outros jesuítas se espalhavam ao
redor do globo. Os jesuítas cruzaram (ou transgrediram) todos os tipos
de fronteiras: geográficas, políticas, culturais, linguísticas,
religiosas. Muitos dos mais famosos jesuítas a trabalhar na Ásia de
língua portuguesa eram italianos, enquanto que não poucos jesuítas
alemães trabalhavam na América Latina.
Por volta de 1700, os monarcas portugueses, espanhóis e franceses
queriam se ver livres dos jesuítas, pois com sua maneira internacional
de proceder, incluindo uma relação próxima com o papado, estes
religiosos não mais se enquadravam no modelo de Igreja em que os chefes
de Estado controlavam a Igreja em seus territórios. Os monarcas
católicos do século XVIII também queriam o controle da educação em seus
países, e os jesuítas eram vistos como um grande obstáculo nesse
sentido.
Embora alguns historiadores argumentem que a arrogância jesuíta
desempenhou um papel significativo na supressão da Companhia de Jesus – e
isto pode mesmo ter tido alguma influência –, o fator mais importante
foram as agendas centralizadoras das monarquias católicas, agendas que
buscaram tornar a Igreja subordinada ao Estado. A pressão intensa dos
monarcas sobre o Papa Clemente XIV foi a causa imediata da supressão em
1773.
A Companhia global
Em 2014, a Igreja Católica continua a marcar o 50º aniversário do
Concílio Vaticano II (1962-1965), encontro ecumênico que ainda importa,
em muitos aspectos, inclusive como no de demonstração (e de um ímpeto)
de um catolicismo genuinamente global no serviço da paz mundial.
Uma Igreja global, não vinculada a algum país, língua ou cultura em
particular, nem a alguma estrutura política, é algo que os jesuítas
promoviam já no século XVI. Porém as facilidades para realizar viagens
hoje e o acesso à internet tornaram isto muito mais viável do que nunca.
Em 1964, o Papa Paulo VI inaugurou o modelo de um papa itinerante ao
viajar à Terra Santa. O Papa Francisco recentemente marcou o 50º
aniversário desta viagem com uma outra viagem a muitos dos mesmos
lugares visitados, falando e rezando pela paz e reconciliação no Oriente
Médio, a despeito dos prognósticos que negam esta esperança.
Pelo fato de vir da Argentina, o Papa Francisco também chama a
atenção para a América Latina. O ano de 2014 marca um outro aniversário
significativo para os jesuítas: o 25º aniversário do martírio, em 1989,
ocorrido em El Salvador de seis jesuítas junto de uma trabalhadora
doméstica e sua filha. Em especial, desde o Vaticano II, os jesuítas vêm
claramente articulando uma visão de humanidade em que a dignidade
humana e os direitos humanos transcendem as classes sociais e
econômicas, as identidades raciais e étnicas e as fronteiras nacionais e
políticas.
Trata-se de uma visão que custou a vida de muitos deles. Se a
situação em El Salvador melhorou nos últimos anos, o custo de ser
companheiros de Jesus, como os jesuítas se chamam, permanece. Os
jesuítas não devem viver numa bolha protetora, em algum lugar à parte
dos eventos duros, confusos e violentos do mundo, não obstante o quão
atraente uma bolha assim pode às vezes parecer. No mundo, e engajados
nas lutas por um mundo mais justo, os jesuítas foram vulneráveis a
ataques de muitos tipos e assim continuam sendo.
No de século XVIII, poucos esperariam ou iriam prever a restauração
universal da Companhia de Jesus. No entanto, ela aconteceu. Eu dou um
curso aqui nos EUA, no College of the Holy Cross, sobre o papado no
mundo moderno, começando por volta de 1500. Costumava dizer a meus
alunos que jamais iríamos ver um papa jesuíta. Eu estava errado e
repensei, felizmente, algumas coisas relacionadas ao papado e aos
jesuítas. Digo a mim mesmo para estar aberto para mais surpresas ainda.
Neste ano de tantos aniversários, talvez o Papa Francisco, por seu
exemplo, palavras e ações, pode ajudar os jesuítas, seus colegas,
colaboradores, amigos e mesmo todo mundo a avançarem no sentido de
reimaginar e repensar quem são e quem desejam ser no século XXI e além.
Ao buscar em São Francisco de Assis o seu nome como bispo de Roma, Jorge
Mario Bergoglio, SJ, já nos mostrou como podemos nos atentar sobre uma
figura do passado no intuito de recriar e revigorar quem nós somos e
apresentou muitos exemplos de como podemos tornar o serviço aos pobres e
a promoção da paz centrais em nossas vidas.
Instituto Humanitas/Unisinos
Thomas
Worcester, SJ, é professor de história na College of the Holy Cross, em
Worcester, Massachusetts, e especialista em história religiosa e
cultural. Editou, ao lado de James Corkery, a obra “The Papacy Since
1500: From Italian Prince to Universal Pastor (2010)” [O papado desde
1500: De um príncipe italiano a um pastor universal]. É o editor geral
do “The Cambridge Encyclopedia of the Jesuits” [Enciclopédia Cambridge
dos Jesuítas] (Cambridge University Press).
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