[domtotal]
1ª Leitura: (Nm 214b-9) O sinal salvador levantado diante do povo
– A rebeldia do povo tinha sido punida com a praga das serpentes no
deserto. Pela intercessão de Moisés, Deus providencia um sinal salvador:
uma serpente de metal fundido levantada numa haste: quem levanta com fé
os olhos para ela é libertado da praga das serpentes. * 21,8 cf. Sb
16,5ss; Jo 3,13-17; 12,32-33; 19,37.
Salmoresponsorial: (Sl,78[77],1-2.34-35.36-37.38) Punição do povo no deserto.
Evangelho: (Jo 3,13-17) O Filho do homem levantado – Jesus pertence ao âmbito de Deus, ele é o Filho do Homem que vem do alto (cf. Dn 7,13-14). Em sua crucificação, levantado ao alto, ele é um sinal da salvação pelo amor de Deus, como a serpente de bronze levantada por Moisés no deserto (cf. 1ª leitura). 3,14 cf. Nm 21,8-9. 3,16 cf. 12,32; Rm 5,8;8,32;1Jo 4,9.
Como a festa da Transfiguração, também a da Santa Cruz é intensamente celebrada na Igreja Oriental. Ambas as festas participam da mesma atmosfera: a presença da glória divina no sofrimento e morte de Jesus na cruz, mistério percebido com profunda sensibilidade pelos cristãos orientais e muito valioso também para nós. Tenha-se diante dos olhos os ícones ou crucifixos com o Cristo glorioso comuns na Igreja Oriental. A liturgia renovada deu a estas festas, juntamente com a da Epifania, um destaque especial, com vistas exatamente à comunhão com as Igrejas Orientais, que, além de significar a unidade, é também um grande enriquecimento para o Ocidente materialista e secularista.
A origem da festa remonta à dedicação das basílicas do Gólgota e do Santo Sepulcro, construídos pelo imperado Constantino, em 13 de setembro de 335, sendo que dia seguinte se mostrava os restos da Santa Cruz.
O fio central da liturgia de hoje é o simbolismo da elevação na cruz como elevação na glória, desenvolvido por João no evangelho (Jo 3,13-17; cf. tb. 12,32-33 e 19,37, lembrando Zc 19,37: “Contemplarão aquele que traspassaram”). A 1ª leitura vê este simbolismo prefigurado no episódio da serpente de bronze que Moisés levantou diante dos olhos dos hebreus para esconjurar a praga das serpentes (possivelmente lembrança de um antigo culto, cf. 2Rs 18,4). O tema da elevação/exaltação, inspirado por Is 52,13 (o Servo Padecente, 4º cântico do Servo) preside também à 2ª leitura, sendo que aqui a exaltação é contrabalançada pelo rebaixamento (esvaziamento, quenose) no sofrimento infligido àquele que nem deveria considerar apropriação injusta a forma divina (Fl 2,6-11). Observe-se que neste maravilhoso texto o rebaixamento não é a encarnação na existência humana, mas a forma de servo/escravo em que essa encarnação é vivida por Jesus.
Olhando o conjunto dos textos somos levados a penetrar mais profundamente neste mistério, que constitui a intuição principal do evangelho de João: o dom da vida de Jesus, morrendo por amor fiel até a morte, na cruz, é a manifestação da glória, isso é, do ser de Deus que aparece: pois “Deus é amor” (1Jo 4,8-9), a tal ponto que Jesus, na hora de assumir a morte na cruz, pode dizer: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9).
Mas essa manifestação da glória de Deus no amor de Cristo que dá sua vida por nós na cruz tem consequências práticas para nós: “Jesus deu a vida por nós; por isso nós também devemos dar a vida pelos irmãos” (1Jo 3,16). Também o hino citado por Paulo na 2ª leitura está num contexto semelhante: Jesus esvaziado como escravo e exaltado como Senhor é o exemplo dos que se reúnem em seu nome, para que considerem os outros mais importante que a si mesmos e tenham em si o mesmo pensar e sentir dele (2,1-5).
O canto da entrada lembra Gl 6,14: “Que eu me glorie somente na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo”. As palavras seguintes, “o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (v. 15), alimentaram entre os cristãos de antigamente um desprezo pelo mundo. Não é, contudo, com desprezo da realidade terrestre que devemos olhar a cruz, mas como sinal de salvação. Para Paulo, para João, para nós, a cruz é sinal de salvação. Por isso, o mundo não tem mais o mesmo significado. Só conseguimos dar-lhe pleno valor na medida em que ele é marcado pela cruz de Cristo, o sinal da vida doada em amor até o fim.
A Glória na Cruz
No Brasil, “Terra da Santa Cruz”, convém contemplar a cruz de Cristo. Não para recair no dolorismo de tempos idos, quando se pensava que quanto mais sofrimento, mais regalia no céu. E que Jesus teve de sofrer na cruz para “pagar” a Deus. A liturgia de hoje nos ensina a olhar para a cruz num outro sentido: como manifestação do próprio ser de Deus, que é amor. A cruz não é um instrumento de suplício que Deus aplica a seu filho (por nossa culpa), mas o sinal de quanto o Pai e o Filho nos amam – o Filho instruído pelo Pai (“obediente até a morte”, 2ª leitura). Nada de sádica exigência de sangue, só amor até o fim (cf. Jo 13,1; 19,28-30).
Ninguém jamais viu Deus (Jo 1,18). Portanto, não temos nenhuma razão para pensar que ele seja um Deus cobrador, castigador. O único retrato de Deus que temos é Jesus (Jo 1,18). Mas esse retrato só ficou pronto na hora em que Jesus ia dar sua vida pelos que o seguiam, os que acolhiam sua palavra, e pelos que através deste a iam acolher: na véspera da morte: “Quem me viu, tem visto (= tem diante dos olhos) o Pai” (Jo 14,9). Nestas poucas palavras resume-se toda a existência humana de Jesus, sua pregação ao povo e aos discípulos, seus gestos de amor e de libertação, coisas que ele não quis negar, como também não renegou seus amigos, na hora do perigo da morte. Amou até o fim (Jo 13,1) e por isso, rompendo com os poderes deste mundo e vencendo-os pelo amor, morreu a morte dos escravos e rebeldes, na cruz.
Essa cruz é, portanto, o estandarte sobre o qual se eleva e se exibe ao mundo o próprio ser de Deus, seu amor que é sua glória. Ela atrai a si o olhar de todos que procuram a salvação (Jo 12,32-33). E assim como há uma relação uma relação entre o sinal de salvação para o qual levantam os olhos (cf. 1ª leitura, a serpente levantada), assim também enxergamos no Cristo elevado na cruz o mal do qual ele nos cura: o sofrimento que nosso desamor causa a ele e a todos nós. Aniquilado pelo pecado do mundo, ele mostra no seu corpo e sangue o infinito amor do Pai que nos quer salvar (evangelho).
Contemplar a cruz não é afundar no dolorismo, mas reconhecer o amor de Deus que salva o mundo do desamor.
(O Roteiro Homilético é elaborado pelo Pe. Johan Konings SJ – Teólogo, doutor em exegese bíblica, Professor da FAJE. Autor do livro "Liturgia Dominical", Vozes, Petrópolis, 2003. Entre outras obras, coordenou a tradução da "Bíblia Ecumênica" – TEB e a tradução da "Bíblia Sagrada" – CNBB. Konings é Colunista do Dom Total. A produção do Roteiro Homilético é de responsabilidade direta do Pe. Jaldemir Vitório SJ, Reitor e Professor da FAJE)
Nenhum comentário:
Postar um comentário