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A vida é complexa, e também ela exige uma humildade heroica para admitir que nem tudo é preto e branco.
Por Nicholas Collura*
No rescaldo do Sínodo deste mês de outubro, me vi perguntando se Mateus 19,1-9, a passagem mais citada pelos opositores da proposta do cardeal Walter Kasper sobre a Comunhão para os católicos divorciados e recasados, é tão claro assim como parece. Em primeiro lugar, os fariseus perguntaram se o divórcio era lícito “por qualquer motivo”, o que nenhum dos progressistas do Sínodo estava tentando defender.
Em segundo lugar, Jesus fala da decisão de se casar, mas nada diz sobre o que fazer mais tarde, depois que a contrição toma o seu curso, depois que os filhos nascem, que o amor cresce e que abandonar o segundo casamento tornar-se-ia um ato de violência em si.
Em terceiro lugar, Jesus não responde à interrogação dos fariseus com um claro sim ou não; ele adverte não à lei mas ao significado espiritual do casamento, derivado das Escrituras. A sua abordagem pastoral nos convida a pôr o legalismo de lado e considerar a visão da pessoa humana que subjaz a práxis moral inteira do Evangelho.
Em quarto lugar, Jesus faz uma exceção aos casamentos que são “ilegais”. Isto parece fornecer a base para a ideia católica da anulação – embora Jesus tivesse em mente os casos de “porneia” (imoralidade sexual), que não está, em geral, entre os motivos que a Igreja aceita para emitir anulações. São os tradicionalistas, então, os que estão além das especificações (ambíguas) de Jesus, e não os progressistas.
No entanto, são a quinta e sexta observações que, de fato, prenderam a minha atenção.
Após Jesus perguntar aos discípulos o que Moisés pensava, estes têm a presença de espírito para perguntar por que Moisés ensinou isto: é por causa da “dureza” dos corações israelitas, diz Jesus. Nós também deveríamos perguntar por que Jesus responde da forma como faz. Além do divórcio, será a dureza de coração um alvo implícito da instrução de Jesus aqui?
Dias atrás assisti a um vídeo bizarro de recrutamento para o sacerdócio diocesano no qual seminaristas esportistas comparam a dureza dos atletas profissionais com o heroísmo exigido dos padres. O vídeo tensiona esta analogia improvável a ponto de uma paródia. Será que alguém de nós realmente iria querer que os nossos pastores se parecessem como os seminaristas deste vídeo aqui?
(Por outro lado, uma adorável homenagem ao sacerdócio produzida e postada na internet pela Arquidiocese de Boston parece acertar em cheio.)
O primeiro vídeo me lembra de um diálogo que tive com um padre maravilhoso, que transbordava cordialidade, sinceridade e hospitalidade. Ele disse uma única coisa que me deixou tão perplexo, que não tive meios de questioná-la. “A nossa próxima geração de padres”, disse ele, “deve ser de sacerdotes viris. Queremos homens verdadeiros. Queremos John Wayne em colarinho clerical”.
Há outras imagens do sacerdócio, como aquela de Kasper, conhecido como o “cardeal sorridente” pelo seu sorriso onipresente. Por que, então, valorizar o machismo, que frequentemente anda de mãos dadas com a intransigência em relação à doutrina (e que está na base do tabu da homossexualidade que Kasper observou, de forma certa ou não, na África)?
Não duvido da sinceridade das crenças das pessoas, mas todas estas estão vinculadas aos desejos – e penso que alguns católicos conservadores realmente desejam o heroísmo. Eles querem provar que são fortes o suficiente para carregar nos ombros as exigências da fé, mas quando veem outras pessoas se dando bem com aquilo que se parece uma frouxidão moral, o significado e o valor dos rigores sacrificiais autoimpostos acabam ficando ameaçados.
Não obstante, estes medos revelam uma incompreensão daquilo que significa ser forte. O cristianismo tem a ver com paradoxos, e a dureza cristã, paradoxalmente, tem a vez com suavidade, sensibilidade. Pois é realmente muito difícil passar a vida sem ficar calejado pelos golpes e pela violência do mundo. É, na verdade, muito difícil lidar com as ambiguidades morais.
Nas palavras de Dom Bruno Forte, principal autor das polêmicas passagens sobre a homossexualidade na semana passada: “Rejeitar algo é fácil, mas reconhecer e dar valor a tudo o que é positivo, até mesmo quando se lida com experiências (ambíguas), é um exercício de honestidade intelectual e caridade espiritual”.
Talvez Moisés permitia o divórcio porque as pessoas eram demais duras para tentar serem gentis com seus cônjuges, para enfrentar o destino da infertilidade, para aceitar o declínio da beleza física, para imaginar, depois de tantos obstáculos, que os seus casamentos ainda têm esperanças de florescerem. Numa cultura marcada pelo divórcio, e onde a separação pode não ser uma decisão mútua, as pessoas casadas podem ansiar para que a Igreja afirme a possibilidade e o valor de um compromisso para a vida toda – para que condene a dureza dos corações. Esta é a Igreja, e o Evangelho, que eu amo.
Porém a vida é complexa, e também ela exige uma humildade heroica para admitir que nem tudo é preto e branco. Exige-se uma compaixão heroica para partilhar a dor das pessoas cujos casamentos, apesar dos melhores esforços, não estão mais em sintonia com os nossos próprios ideais. Exige-se uma sensibilidade heroica para se superar a visão estreita de masculinidade e feminilidade que a nossa cultura impõe, e para escavar o que quer que esteja em nossa psique que nos faça desconfortáveis com as sexualidades alternativas.
Isto, pelo menos, é o que vem à mente enquanto reflito sobre as palavras de Jesus sobre a dureza de coração. E vocês leitores, o que surge em suas orações?
National Catholic Reporter, 24-10-2014.
*Nicholas Collura é teólogo. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
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