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O texto póstumo de Jacques Dupuis, publicado agora como livro, nos oferece hoje a mais argumentada caça às "ambiguidades" e aos "erros" da Dominus Iesus,
que pretendia barrar o caminho para uma retomada das teses conciliares e
fechar o passo para o diálogo inter-religioso. Questão a ser reaberta,
questão aberta pela memória de um jesuíta que espera pela reabilitação.
A opinião é do filósofo e escritor italiano Giancarlo Bosetti, diretor e cofundador da revista bimestral Reset, de cultura e política. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 04-12-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Um livro póstumo força a que se reabra o dossiê de Jacques Dupuis, o teólogo católico belga do pluralismo religioso, tratado e "notificado" como um herege pelo cardeal Ratzinger, então prefeito da fé.
Era o ano 2000, o mesmo ano, os mesmos dias em que saía a declaração Dominus Iesus, o documento pontifício mais criticado das últimas décadas, aclamado apenas pelos "ateus devotos".
Dupuis morreu aos 81 anos de idade, em 2004, desfalecendo no restaurante da Universidade Gregoriana, deprimido com as acusações de heresia. Dupuis
ficou amargurado por ter se tornado o alvo de um procedimento da
inquisição e por ser a "besta negra" justamente daquele texto com que a
Igreja recuava diante do diálogo com as outras religiões, e humilhado
pela suspensão de ensino.
O livro que agora aparece em italiano pela editora EMI (as católicas
Edições Missionárias Italianas) foi organizado pelo seu editor e amigo
norte-americano William Burrows e contém dois longos textos de autodefesa, do próprio condenado, contra a "notificação" (a sentença da Congregação para a Doutrina da Fé) e de acusação contra a Dominus Iesus, que foi pedido que Dupuis compartilhasse, como prova da bondade do seu arrependimento.
O humilde teólogo belga não aceitou compartilhar e assinar uma
primeira versão da sentença, que o acusava de "graves deficiências" e
dedicou os últimos anos para redigir esses escritos.
Depois, ele assinou uma segunda versão da notificação (curvando-se às
exigências "políticas" de uma situação que o envergonhava), em que o
crime era diminuído a "notáveis ambiguidades". Essa movimentada troca de
textos envolveu o Papa Wojtyla em uma das páginas mais inglórias na trajetória de Ratzinger.
O título italiano diz Perché non sono eretico [Por que não sou herético], o inglês, Jacques Dupuis Faces the Inquisition [J.
D. enfrenta a Inquisição]. O primeiro, mais prudente do que o segundo,
no entanto, reflete a perplexidade de um teólogo, que Burrows define como "revisionista", mas ortodoxo, por não ter sido entendido e nem mesmo propriamente "lido" pelo cardeal Ratzinger.
Este, infelizmente, teria se confiado – escreve o autor, a quem o
futuro pontífice lhe confiaria isso pessoalmente, olhando-o nos olhos –
aos juízos e aos escritos do secretário de Estado, Tarcisio Bertone, e do consultor da Congregação, Angelo Amato, duas figuras-chave do papado de Bento XVI.
O segunda, que foi depois promovido a cardeal e atualmente é prefeito da Congregação para as Causas dos Santos, é geralmente considerado como o autor da Dominus Iesus.
Dupuis sempre foi consciente da dificuldade do seu
empreendimento teológico. O seu objetivo era o de retomar o tema, por
excelência plural, das doses de verdade e de possível salvação
concedidas fora da Igreja e aos não cristãos, de retomá-lo a partir de
onde o Concílio Vaticano II o havia deixado, com a declaração Nostra Aetate (1965).
A sua Igreja, como a de João XXIII e de Paulo VI,
"não rejeita nada do que é verdadeiro e santo" nas outras religiões e
reconhece nelas "um raio daquela verdade que ilumina todos os homens".
Ideias reforçadas pela longa experiência asiática: ele passara 36 anos na Índia.
Você não pode viver – dizia ele – em contato com a fé de milhões e
milhões de seres humanos devotos aos seus ritos, dotados de moral e de
sentido do pecado, e depois imaginar para eles nada mais do que a
condenação, porque não passaram a fazer parte da Igreja Romana, uma
oportunidade da qual três quartos da humanidade nem mesmo tomou
consciência.
A teologia do diálogo permanecia para ele estreitamente dentro de uma
visão "cristocêntrica" da salvação, certamente distinta da perspectiva
"eclesiocêntrica", da qual ele não encontrou as bases nos textos
sagrados e que considerava como fruto maligno do medo.
E ele produziu nestas páginas um trabalho fascinante, também para os não crentes. A imponente obra de Dupuis, à qual foi destinada a censura do tribunal vaticano, é Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso [Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso] (Ed. Queriniana, 1997).
Não é apenas teologia, é também uma história do pensamento,
inteiramente percorrida através da busca do princípio de salvação desde
os primeiros alexandrinos até os nossos dias. Dupuis identifica passagens luminosas, como em Orígenes de Alexandria,
que, fortalecido pelo seu platonismo, imaginava para todo o gênero
humano uma restituição ou reabilitação final; detinha-se sobre as
páginas de De Pace Fidei, de Nicolau de Cusa,
humanista, mas também poderoso cardeal do século XV, que imagina um
concílio celeste em que todas as fés do mundo encontravam um acordo
sobre a unicidade da religião "na variedade dos ritos".
Para De Cusa, naquele sonho, as religiões eram
diferentes porque Deus tinha mandado diversos profetas em diversos
tempos e com diversas linguagens, mas, substancialmente, eram
"complementares".
A ousadia, certamente suspeita de heresia, não escapava de Dupuis e nem mesmo de outro teólogo reformador como Urs Von Balthasar, que escreveu que o movimento de De Cusa foi tão "aventuroso que só podemos nos surpreender pelo fato de não ter sido posto no Índex".
O próprio Dupuis nos conta isso, mantendo-se
distante de um possível pecado de indiferença ou equivalência, mas isso
não o impede de abordar o tema mais relevante que, para um cristão,
assim como para qualquer fiel de todas as religiões, representa a
aparição e a proximidade de tantas religiões diferentes.
Ao examinar a amplitude da perspectiva da salvação na teologia cristã, Dupuis vê três etapas históricas: uma primeira, em que o princípio extra Ecclesiam nulla salus é afirmado em todo o seu exclusivismo, o de um cristianismo minoritário e sitiado, no Império Romano antes de Constantino;
uma segunda, com uma abertura limitada para as outras religiões, como
revelação primordial; uma terceira, em que se captam valores positivos
nas outras religiões como preparatórios.
E, depois, vê aquela que parece ser a tarefa de hoje, não só para a
teologia cristã, mas também para a das outras fés: responder à pergunta
"que significado têm as outras tradições no desígnio divino?". E esse é o
terreno do desafio para a "teologia das religiões" ou "teologia
pluralista". Aquele terreno que os autores da Dominus Iesus imaginavam
cancelar ou "ordenar", no sentido de "subordinar", inteiramente à
hierarquia de verdades ditada pela doutrina vaticana.
O texto póstumo de Dupuis também nos oferece hoje a
mais argumentada caça às "ambiguidades" e aos "erros" daquele documento
que pretendia barrar o caminho para uma retomada das teses conciliares e
fechar o passo para o diálogo inter-religioso. Questão a ser reaberta,
questão aberta pela memória de um jesuíta que espera pela reabilitação.
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