Na verdade, celebrar a festa da Mãe de Deus outra coisa não
é que celebrar o mistério do próprio Cristo. Afinal, o Mistério de Cristo é o
único mistério cristão e Maria está inserida neste mistério.
Nós ouvimos as leituras e percebemos que o centro de todas
elas é o Cristo. Por que a Igreja hoje não nos apresenta leituras que possam
indicar mais a figura de Maria? Por que não ouvimos um Apocalipse 12 etc.? Por
um motivo simples. Esta festa que hoje celebramos quer nos apresentar o
mistério do Cristo. É uma festa antiga e não é como as nossas modernas festas
marianas, que nos apresentam Maria desvinculada do Mistério de seu Filho. Hoje
olhamos para a Mãe de Deus e entendemos através desse antiquíssimo título que
ela recebeu quem é Jesus.
Esta festa se insere no ciclo do Natal porque ela nos
apresenta o realismo da encarnação. De fato, ao encarnar-se no seio da Virgem o
Cristo assumiu verdadeiramente a natureza humana. Ele, que existia como Deus,
possuindo um modo de existir totalmente diverso do nosso, assumiu a nossa
natureza, o nosso modo de existir. O Cristo, desde o momento em que se encarnou
no seio da Virgem Maria reuniu em si essas duas naturezas: a divina e a humana.
Ele é homem, sem deixar de ser Deus. Ele é Deus, sendo também homem, uma vez
que assumiu a nossa natureza. Se dissermos que Maria não é Mãe de Deus estamos
separando as duas naturezas de Cristo. E em Cristo as duas naturezas não se
confundem, mas estão plenamente unidas e são inseparáveis. É o mistério da
bondade divina.
Estando infinitamente distante de nós pela sua natureza,
quis descer à nossa condição mortal. Todavia, quando Cristo assume a nossa
natureza humana algo acontece conosco. Os Padres da Igreja chamavam o Mistério
da Encarnação de “Admirável intercâmbio” ou “Admirável comércio”. O comércio na
antiguidade era baseado num sistema de trocas. Alguém oferecia o que era seu e
recebia de outrem aquilo de que necessitava. Cristo realizou um “divino
comércio” conosco. Ele tomou a nossa natureza, humana, caída, corruptível,
sujeita à morte e deu-nos participar da sua natureza, divina, imortal. Ele se
abaixou, para que fôssemos elevados com Ele. Maria é Mãe de Deus porque ela
gera o Verbo feito carne. Maria não gerou somente o corpo de Jesus, ou a sua
humanidade, porque não há como separar em Cristo as duas naturezas. Maria foi a
porta aberta para esse mistério como canta hoje o hino das Laudes “Eis do
Senhor a porta aberta, de toda a graça portadora. Passou o Rei, e permanece fechada,
como sempre fora.”
As leituras que hoje ouvimos nos apontam para esse mistério.
Na primeira leitura temos a bênção de Aarão. Deus mandou que Aarão abençoasse
os filhos de Israel com essas palavras. Nessa fórmula de bênção vemos de modo
antecipado a verdadeira bênção do Pai para nós, que é o Cristo. Em Cristo, Deus
voltou o seu rosto para nós. Em Cristo recebemos a paz. A paz é um dom do
Messias. Ela não é mera ausência de guerra. A paz verdadeira só existe quando
os corações humanos estão voltados para Deus e se deixam iluminar pelo sol que
nasce das alturas. Nós podemos hoje até atualizar a palavra do salmista e dizer
que Deus já nos deu, em Cristo, a sua graça e a sua bênção. Sim, a sua face já
resplandeceu sobre nós.
Os pastores, no evangelho, louvam e glorificam a Deus pela
palavra que haviam recebido do anjo. “Hoje nasceu para vós um Salvador”. Sim,
aquele que nasceu é o nosso Salvador. Devemos nos encher de alegria. O nome que
Ele recebe, um nome profético, já anunciado pelo anjo, é portador daquilo o que
Ele realizará. Jesus, Deus Salva. Somente em Jesus temos a salvação. Às vezes
achamos que é coisa de crente dizer que só Jesus salva. Muitas vezes nós
cristãos católicos temos uma fé relativista. Achamos que não somente Cristo,
mas também outros falsos deuses podem nos salvar. Queremos ter uma “fé” aberta,
mas de tão aberta acaba deixando de ser fé. Nós cremos sim que também não
cristãos podem se salvar. Só Deus conhece o mistério pelo qual essas pessoas
não se converteram e Ele sonda o coração de cada um. Todavia, mesmo os que se
salvam sem se tornarem cristãos pelo batismo, são salvos por Cristo. Só Jesus
salva! E por que só Jesus salva? Por que salvação não é essa vida melhorada.
Não é uma casa no céu de frente para a melhor nuvem. Salvação é participar da
vida do próprio Deus. Algo que não nos é devido segundo a natureza e que só
podemos receber por pura graça e misericórdia de Deus. Por isso a salvação é
sempre graça. Por que por mais que alguém se comportasse bem não conseguiria
salvar-se a si mesmo. É isso o que São Paulo quer dizer quando fala que Deus
enviou o seu Filho sujeito à Lei para resgatar os que eram sujeitos à Lei.
Paulo não está contra a Lei. Ele mesmo continuará praticando a Lei naquilo o
que nela há de se essencial. Todavia, Paulo que mostrar ao povo, ao seu povo,
que a Lei indica o caminho da salvação, mas que ela por si só não salva
ninguém. A Lei preparou o caminho para que os homens pudessem, não sem muito
esforço, manter-se no caminho de Deus até que se completasse o tempo previsto e
o Cristo viesse. A Lei ensina aos homens a como viverem segundo o plano de
Deus, segundo a sua natureza humana. A Lei ensina como os filhos devem viver,
mas não nos torna filhos. Somente o Filho único de Deus pode nos comunicar a
sua filiação. Nele não estamos mais sujeitos à Lei. Em que sentido? Devemos
agora jogar fora os mandamentos, as normas, os ensinamentos, a doutrina? Claro
que não. Nele não estamos mais sujeitos à Lei, porque percebemos agora que não
é a prática da Lei que nos salva, mas a fé em Jesus Cristo que nos divinizou
pela sua encarnação. E nós, se somos filhos no Filho, com muito mais amor
vivemos os mandamentos, as normas, os ensinamentos, a doutrina, não como Lei
fria e externa, não como condição para que Deus goste de nós, mas reconhecendo
nos mandamentos de Deus uma carta de amor de um Pai apaixonado que em tudo quer
que seus filhos sejam felizes. E esse é um Pai diferente. Ele pode sim nos
indicar o caminho da felicidade, porque Ele o conhece. Afinal ele nos fez.
E qual é a prova de que somos filhos? A prova é que Deus
enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho que clama Abá, ó Pai! Um
chamamento de intimidade. A quanto tempo essa palavra se afastou de nossa boca.
Talvez, quando éramos pequeninos dizíamos “paizinho”, “papai”. Mas crescemos, e
essa palavra vai se afastando de nós. E temos que de novo ser crianças num
outro nível. Ser crianças diante de Deus, diante do Pai, e nos lançarmos
confiantes em seus braços, como o Filho fez na cruz. No Filho nos tornamos
filhos e herdeiros, herdeiros do reino celeste. Para lá se orienta toda a nossa
vida.
Concluindo meus irmãos, que a Palavra que hoje recebemos
entre em nossos corações como entrava no coração de Maria. Por duas vezes Lucas
diz no evangelho da infância que Maria guardava a Palavra em seu coração.
Quando Simeão lhe profetiza a dor e agora quando ouve as maravilhas que os
anjos haviam dito a respeito do seu Filho. Maria guarda a Palavra e a medita em
seu coração. O Espírito vem sobre ela e faz com que ela entenda, aos poucos, o
sentido da palavra ouvida. Que nós também hoje aqui reunidos recebamos uma
porção dobrada do Espírito do Senhor, que a Palavra encontre em nosso coração
morada e que a meditemos no mais íntimo de nós, pedindo a Deus que nos faça
compreendê-la plenamente.
Texto: Padre Fábio Siqueira
Vice-diretor das Escolas de
Fé e Catequese Mater Ecclesiae e Luz e Vida
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