[domtotal]
Por Cardeal Odilo Pedro Scherer*
O cuidado da natureza decorre da fé dos cristãos no Deus Criador e do respeito a ele devido.
Na obra da criação, o homem é parceiro de Deus e recebeu o encargo de cuidar e cultivar a terra e a natureza.
|
Na encíclica – Laudato sì. Sobre o cuidado da casa
comum – o Papa Francisco observa que a crise ecológica atual precisa
ser analisada a partir de vários olhares: filosófico, científico,
histórico, religioso... No desenvolvimento de suas reflexões, ele
próprio apresenta essas diversas abordagens, com o auxílio de
especialistas em várias áreas do conhecimento. Como representante de uma
religião, pede que, na explicação e na busca de solução para as
questões ambientais, não se deixe de levar em conta a contribuição que
as religiões têm a oferecer.
A Igreja Católica, aberta ao diálogo com as diversas interpretações
do problema ambiental, deseja oferecer sua contribuição a partir do
olhar da fé cristã, que tento expor aqui, brevemente, baseado na
encíclica. De fato, o cuidado da natureza decorre da fé dos cristãos no
Deus Criador e do respeito a ele devido. A revelação bíblica ensina que
toda natureza existe por obra e graça do Criador, que viu ser “muito
bom” tudo o que fez; também o homem, criado com dignidade inigualável
(cf Gn 1,31).
Na obra da criação, o homem é parceiro de Deus e recebeu o encargo de
cuidar e cultivar a terra e a natureza. Desde logo, fica claro que ele
não é Deus, nem dono do mundo. Mas é bem essa a sua tentação constante,
origem da desordem nas suas relações com a natureza: apossar-se do
mundo, como senhor absoluto de tudo. Custa-lhe reconhecer que “do Senhor
é a terra e tudo o que nela existe” (cf Dt 10,14); e que lhe cabe
respeitar a lei interna à natureza e no mundo, assim disposta pelo
Criador.
O Papa ensina que a Bíblia e a fé cristã não justificam um
antropocentrismo despótico, desinteressado ou desrespeitoso das outras
criaturas (nº 68). Se alguma vez assim apareceu, deveu-se a
interpretações equivocadas do texto sagrado. Diante de Deus, o homem não
é o único ser deste mundo a contar. Também o Catecismo da Igreja
Católica ensina que cada criatura tem um valor próprio, que o homem deve
reconhecer e respeitar, evitando toda relação desordenada com as
criaturas (cf nº 339).
A fé no Deus Criador, único senhor do mundo, levada a sério, previne
contra o risco de adorar outras criaturas ou poderes deste mundo,
atribuindo-lhes um reconhecimento indevido; ou de colocar o homem no
lugar do Criador, para justificar sua ganância e vontade de poder sobre
as demais criaturas.
Afirmar que Deus é Criador não implica em dizer que todas as coisas
existem hoje do mesmo jeito que Deus lhes deu origem: a evolução é um
princípio inerente à natureza e a todos os seres; isso não contradiz a
fé no Criador. No entanto, para a fé cristã, seria pouco admitir que
Deus é apenas uma espécie de princípio ideal da existência de todas as
coisas: a natureza e o universo inteiro não surgiram por necessidade
mecânica e casual, mas por uma vontade pessoal, um ato criador, livre e
soberano que, de alguma forma, se prolonga no tempo e na existência das
coisas. Também a harmonia e a beleza do mundo não podem ser atribuídas
ao acaso. A natureza é fruto da vontade amorosa do Criador: “sim, tu
amas tudo o que existe e nada desprezas do que fizeste; pois se odiasses
alguma coisa, não a terias criado” (cf Sb 11,24).
Mas se, de um lado, a fé judaico-cristã ensina o respeito e a
admiração pela criação inteira, ela separa claramente as coisas: a
natureza não é divina. O mundo e Deus são diversos; Deus transcende o
mundo. Mesmo assim, o Criador quis o homem como seu colaborador no
cuidado do mundo; por isso, o homem não pode ser reduzido a um elemento
“igual” ao resto das criaturas. Ele traz a imagem e semelhança do
Criador, com capacidades que lhe permitem entrar em diálogo e sintonia
com o Criador e de conhecer o seu desígnio amoroso em relação à obra de
suas mãos.
Ao ser humano é permitido interferir livre e responsavelmente na
natureza, para colocá-la ao seu serviço, contanto que respeite a
harmonia disposta pelo Criador. Para tanto, ele pode contar com a ajuda
do mesmo Espírito Criador que, “no princípio”, criou o céu e a terra (cf
Gn 1,1). O homem é capaz de realizar bem a sua missão e de reconhecer
que nenhuma criatura no mundo é supérflua ou sem sentido. A natureza é
como um livro aberto, muito bonito, onde cada elemento narra as
grandezas do Criador. Bento XVI lembrou que a natureza tem uma
“gramática interna”, que o homem precisa decifrar e conhecer, para
melhor compreender o desígnio de Deus Criador sobre toda realidade e
para um “uso sábio” da natureza, não instrumental nem arbitrário (cf
Caritas in veritate nº 48).
O olhar da fé religiosa para a questão ambiental leva a perceber que
as criaturas deste mundo não podem ser vistas como bens sem dono,
disponíveis à posse do primeiro que as encontrar. Somos cuidadores e
usuários deste mundo, enquanto nele existimos: “tudo é teu, Senhor,
amigo da vida!” (Sb 11,26). E porque o Criador é também Senhor do mundo,
vai de consequência que os bens da natureza devem beneficiar todas as
criaturas e nenhuma delas pode ser privada do necessário para existir e
viver.
Isso vale, especialmente para o ser humano: o interesse privado não
pode privar os demais do necessário para viver dignamente. Vai daí que
toda abordagem da questão ecológica também precisa ter em conta a
justiça social e a preservação da dignidade e dos direitos dos mais
desfavorecidos. Neste ponto, o papa Francisco volta à questão, nem
sempre bem aceita por todos, da subordinação do direito à propriedade
privada ao destino universal dos bens deste mundo (cf nº 93). Trata-se
de posição consolidada do ensinamento da Igreja. A natureza é patrimônio
comum da família humana e seus frutos devem beneficiar a todos os que
vivem e os que ainda viverão neste planeta.
CNBB 13-07-2015
*Cardeal Odilo Pedro Scherer é arcebispo de São Paulo (SP).
Nenhum comentário:
Postar um comentário