[unisinos]
O papa Francisco lançou dias
atrás, conversando com os fiéis na praça São Pedro, uma nova provocação à
Igreja conservadora ao afirmar que “há casos em que a separação
(matrimonial) é inevitável”. Estava abrindo uma brecha no dogma do
divórcio?
O comentário é de Juan Arias, jornalista, publicado por El País, 01-07-2015.
Os cristãos começam a acostumar-se às provocações do papa Francisco,
que continua lançando pedras para remover as posições atávicas de
retrocesso da Igreja, que não se coadunam com as necessidades de um
mundo que mudou.
Francisco parece lançar essas pedras no lado da
imobilidade religiosa com a maior das inocências e acaba surpreendendo
pelo que contêm de revolucionário. Começou a fazer isso ao abordar o
tema dos homossexuais, tabu para a Igreja, quando disse que quem é ele
para julgá-los se Deus não o fazia.
Voltou com tudo ao recordar aos bispos que no mundo de hoje “existem
formas diferentes de família”, dando a entender que a Igreja não pode
deixar de lado o drama de milhões de casais que um dia decidiram
separar-se e até formar um novo lar, e que acabaram sendo execrados pela
Igreja, que lhes negou os sacramentos.
Até no tema mais delicado do aborto Francisco
recordou que os sacerdotes precisam saber interpretar com misericórdia a
dor de algumas mulheres que decidem desfazer-se da maternidade
vitimadas por profundos dramas pessoais.
Francisco conhece o drama de milhões de divorciados
católicos que desejariam poder continuar participando dos sacramentos
sem serem proscritos nem condenados pela Igreja. Ou que atormentados por
uma crise matrimonial desejariam romper seu compromisso. Conhece também
a hipocrisia de certas sentenças do Tribunal da Rota Romana, que possui o poder de anular casamentos.
Sabe muito bem Francisco que muitas pessoas
importantes, ricas e famosas conseguiram de forma discutível a anulação
do casamento por parte do tribunal eclesiástico. A Igreja afirma que não
se trata de uma separação, mas de demonstrar que para aquele
matrimônio, às vezes de anos, faltou algum requisito na hora de ser
contraído e, portanto, era inválido.
Francisco sabe, porém, que a casuística da Igreja ao
longo do tempo foi sendo enriquecida de motivos que foram facilitando a
anulação, como a “falta de discernimento” de um dos cônjuges ou a
“dificuldade de ser fiel no matrimônio”. As crônicas incluem até casos
de separação de casais por não ter sido consumado o casamento, apesar de
terem tido vários filhos.
Francisco sabe que a Igreja nunca admitirá o
divórcio civil, pois considera o matrimônio religioso indissolúvel. Não
ignora ao mesmo tempo que hoje quase a metade dos casamentos já se
romperam pelo menos uma vez, inclusive entre os católicos.
O que o Papa fez? Lançar uma de suas provocações. Sem pronunciar a
palavra “divórcio”, que causa horror à Igreja conservadora, falou de
“separação”. E justificou um possível divórcio dos cristãos com estas
palavras: “Há casos em que a separação é inevitável, às vezes até
moralmente necessária, para afastar os filhos da violência e da
exploração”.
Francisco se referiu às “feridas produzidas na
convivência familiar”. Segundo ele, que gosta de ressaltar a realidade
da vida e das coisas sem petrificá-las com fórmulas dogmáticas, trata-se
daqueles casos nos quais a relação, “em vez de expressar amor, fere os
afetos mais queridos, provocando profundas feridas entre o marido e a
mulher”.
Quem acaba pagando o preço mais alto por essas violências familiares?
Os filhos, diz Francisco. Por tudo isso, segundo o Papa, às vezes essa
separação conjugal, chame-se ou não divórcio, pode ser “inevitável e
moralmente necessária”.
Já é objeto de estudo na Igreja e fora dela a forma escolhida pelo
jesuíta para abordar e revisar algumas verdades impostas pela Igreja ao
longo dos séculos. Francisco não ataca diretamente
verdades consideradas dogmas de fé ou de moral. Ele o faz de forma
oblíqua, olhando não para a lei escrita, mas para a realidade de cada
caso concreto da vida.
Nisso ele se parece com o profeta de Nazaré quando
provocado pelos fariseus, que levaram até ele uma mulher surpreendida em
adultério e o lembraram de que a lei judaica mandava lapidá-la. Jesus
não nega a lei nem diz que precisa ser abolida. Ele se concentra naquele
caso concreto, chama a atenção para a hipocrisia dos acusadores, muitos
deles provavelmente mais adúlteros do que aquela mulher, e os provoca
dizendo que aquele que “estiver livre de pecado” pode começar a
apedrejá-la. O Evangelho conta que “todos se foram, a começar pelos mais
velhos”. Jesus salvou a vida da mulher adúltera sem condená-la e sem
atacar a lei.
Passo a passo, pedra a pedra, Francisco vai criando
sua revolução na Igreja, dando primazia ao Evangelho da misericórdia e
da compreensão da realidade humana, em vez das frias condenações e
anátemas.
Tudo isso no estilo do Evangelho que proclama a primazia do perdão
sobre a severidade da lei e que recorda que Jesus, de quem a Igreja não
poderá nunca se separar sem trair suas origens, veio “para os doentes e
não para os sãos”, para “os pecadores e não para os justos”.
Francisco deixou saber que já não vai viver muito.
Tomará esteja enganado. A Igreja e o mundo necessitam com urgência
das provocações e do exemplo de vida pobre e despojada desse Papa
compassivo em um mundo no qual os poderes – tanto o político como o
religioso – apodrecem enfermos de corrupção com sede de castigos e
vinganças.
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