[domtotal]
Só se liberta quem se doa, quem transforma sua vida em oferta a Deus e ao próximo.
Por Dom Alberto Taveira Corrêa*
Deus nos criou com o dom maravilhoso e desafiador que é a liberdade.
Ele se arrisca a encontrar inclusive respostas negativas ao seu projeto
de amor e felicidade para a humanidade. Seu contato com a humanidade,
expresso em toda a História da Salvação, inclui um elemento importante, o
chamado, apelo, a vocação. A aventura humana pede este confronto de
duas liberdades, que podem construir, ao longo dos anos, fecundo
relacionamento, cujos frutos contribuem para o crescimento do Reino de
Deus, sem excluir as possíveis crises de amadurecimento, já que somos
respeitados nos passos a serem dados.
Um homem de nome Amós, vindo do ambiente rural (Am 7, 12-15), cuja
experiência foi descrita pela Liturgia nesse final de semana, é
convocado por Deus, para exercer a missão de profeta, com palavras
provocadoras e exigentes, em tempos de crise política e religiosa. Deus
chama quem ele quer e do jeito que quer, desenraizando, quando
necessário, a pessoa do próprio ambiente, concedendo-lhe palavras
acertadas que suscitam mudança e conversão. A resposta ao chamado
poderia ser negativa, mas a hombridade do homem simples e corajoso pede
um compromisso corajoso. Não dá para voltar atrás!
Jesus chamou doze (Mc 6, 7- 13), setenta e dois, centenas e milhares
para o seguirem e serem enviados. Houve gente que disse não (Cf. Mc 10,
17-22), entre os que o seguiram houve deserções, traição, negação
vergonhosa, pecados! A todos ele faz propostas semelhantes e
desproporcionais às capacidades humanas: não levar nada para o caminho,
despojamento total, expulsar demônios, curar os enfermos, anunciar a
chegada do Reino de Deus. Até hoje é assim, nos diversos dons,
ministérios e carismas que são concedidos a todo o povo de Deus. Existe o
chamado e as pessoas continuam respondendo, mesmo em meio a tantas
mudanças no mundo. E quem o segue deve acolher condições exigentes:
"Entrai pela porta estreita! Pois larga é a porta e espaçoso o caminho
que leva à perdição, e são muitos os que entram! Como é estreita a porta
e apertado o caminho que leva à vida, e poucos são os que o encontram"
(Mt 7, 13-14). O que acontece? Por que este "incômodo" que é seguir
Jesus continua a se realizar, malgrado toda uma onda que aparentemente
conduz a estradas diversas?
É claro que nosso ângulo de visão é fruto de nossa fé. Estamos
convencidos de algumas realidades fundamentais! Fomos feitos por Deus,
não somos obra do acaso, por ele somos amados e o mundo não é o espaço
dominado pela maldade, mas terra de Deus, pensada por ele para a nossa
felicidade, tanto que a Bíblia descreve poeticamente a Criação, falando
de um Paraíso! Num mundo de pessoas que apenas pensam em vestir-se bem,
outras querem a ociosidade, tantas rejeitam a verdade ou querem criticar
todas as coisas, há gente que prefere os valores do Paraíso e o
preferem, como santos do porte de um São Filipe Neri, sobre o qual é
muito conhecido um filme chamado "Prefiro o Paraíso". Renunciam a
grandes carreiras, homenagens, sucesso a qualquer custo. Agrada-lhes
outra coisa, o Paraíso! É que o projeto de Deus contempla valores
diferentes dos que costumeiramente encontramos como a partilha, a
sensibilidade diante das situações dolorosas dos outros, a atenção, a
coragem para tomar iniciativas de serviço à sociedade, a superação da
impureza e da ganância. Trata-se de preferir o Paraíso, o jeito de Deus
ver as coisas!
O Apóstolo São Paulo usa expressões que podem abrir os horizontes de
nossa compreensão da realidade humana e dos desígnios de Deus para
todos: "Deus nos escolheu em Cristo, antes da fundação do mundo, para
sermos santos e imaculados diante dele, no amor. Conforme o desígnio
benevolente de sua vontade, ele nos predestinou à adoção como filhos,
por obra de Jesus Cristo, para o louvor de sua graça gloriosa, com que
nos agraciou no seu bem-amado" (Ef 1, 4-6). Nós fomos escolhidos, antes
do mundo ser criado, para sermos santos e imaculados, diante dele, no
amor. Ninguém foi feito para o egoísmo ou para o pecado. Optar pela
maldade é possível, mas é processo de autodestruição, e Deus não fez
ninguém para ser infeliz!
Aqui tocamos num ponto delicado. Há um destino traçado, do qual não
podemos fugir? Será que não posso escolher jogar tudo para o alto,
considerando-me livre para fazer o que quiser? Só posso ser feliz em
Deus? São perguntas desafiadoras e incômodas! Só Deus é capaz de propor
aos seres humanos um caminho de felicidade e continuar a amá-los, se
manipular sua liberdade, mesmo se eventualmente voltarem as costas para
ele. Só o Pai do Céu é capaz de enviar seu Filho amado, que foi até o
mais profundo da rejeição de Deus, quando, em nome da humanidade
arrasada, gritou na Cruz o abandono: "Quando chegou o meio-dia, uma
escuridão cobriu toda a terra até às três horas da tarde. Às três da
tarde, Jesus gritou com voz forte: “Eloí, Eloí, lemá sabactâni? – que
quer dizer “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste" (Mc 15, 33-34).
Tendo descido por amor ao ponto mais baixo, Jesus Cristo nos abriu o
caminho da vida e da liberdade, visitando todas as situações humanas,
para preenchê-las apenas de amor.
Nesta “viagem”, com a qual conheceu tudo o que é humano, concedeu
capacidades às pessoas, chamou, convocou, atraiu e enviou: “A cada um de
nós foi dada a graça conforme a medida do dom de Cristo. Por isso, diz a
Escritura: ‘Subindo às alturas, levou cativo o cativeiro e distribuiu
dons aos seres humanos’. Que significa ‘subiu’, senão que ele desceu
também às profundezas da terra? Aquele que desceu é o mesmo que subiu
acima de todos os céus, a fim de encher o universo” (Ef 4, 7-10). Para
resgatar o escravo, fazendo-o livre e fiel, ele se fez escravo,
entregou-se até à morte, e morte de Cruz!
O caminho da liberdade passa pela entrega. Só se liberta quem se doa,
quem transforma sua vida em oferta a Deus e ao próximo! Quem se guarda
condena a si mesmo à esterilidade e à tristeza, e este não é o plano de
Deus! O dom da liberdade se efetiva quando as pessoas saem de si mesmas.
Pode acontecer que alguém até esteja preso, como ocorreu e ocorre com
tantos homens e mulheres que se sacrificam por Deus e pelo próximo, mas
estas são pessoas livres, porque são fiéis a Cristo. Acima das eventuais
circunstâncias, “pela fé, conquistaram reinos, exerceram a justiça,
foram contemplados com promessas, amordaçaram a boca dos leões,
extinguiram a violência do fogo, escaparam ao fio da espada, recobraram
saúde na doença, mostraram-se valentes na guerra, repeliram os exércitos
estrangeiros. Mulheres reencontraram os seus mortos pela ressurreição.
Outros foram torturados ou recusaram ser resgatados, para chegar a uma
ressurreição melhor. Outros ainda sofreram a provação dos escárnios,
experimentaram o açoite, as cadeias, as prisões, foram apedrejados,
serrados ou passados ao fio da espada, levaram vida errante, vestidos
com pele de carneiro ou pelos de cabra, oprimidos, atribulados, sofrendo
privações. Eles, dos quais o mundo não era digno” (Hb 11, 33-38). Que
Deus continue a chamar, em nosso meio, pessoas desse quilate!
*Dom Alberto Taveira Corrêa é arcebispo metropolitano de Belém do Pará.
Nenhum comentário:
Postar um comentário