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Por Dom José Antônio Peruzzo*
A experiência bíblica de compaixão é mais que uma elevada afeição humana.
O sofrimento nos coloca ante a crueza da finitude. Mas também nos recorda a infinitude, quase como uma saudade.
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A temática da dor e do sofrimento é uma das mais
recorrentes na história do pensamento, da arte e dos questionamentos
humanos. Assim como o amor, também a dor encontra profundas e criativas
expressões no frasário sapiencial popular, nos provérbios, nas canções,
nos romances, nas páginas de filosofia... A causa, a fonte, o sentido,
até o poder libertador do sofrimento apresentam-se vigorosos nos
parágrafos escritos com sabedoria e profundidade. Mas, por outro lado,
não passam desapercebidas as revoltas, as angústias e inquietações, os
cansaços. Até chegamos a reconhecer que a dor é um dos mistérios da
vida. Porém, os interrogativos permanecem.
O sofrimento nos coloca ante a crueza da finitude. Mas também nos
recorda a infinitude, quase como uma saudade do que nunca tivemos. É
assim que se pode entender o evangelista Marcos no Evangelho deste
domingo (Mc 6, 30-34). Jesus se retirara com os discípulos para um lugar
deserto. Buscavam descanso. Precisavam disso. Foram de barco. Mas, ao
desembarcar, “Jesus viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão por
eles, porque eram como ovelhas que não têm pastor. E começou a
ensinar-lhes muitas coisas”.
O que significa sentir compaixão? Havia sofrimento, desorientação,
indiferença (sem pastor). Não parece que se limitou a sentimentos
pesarosos, como se apenas tivesse pena daquela gente muito carente e sem
rumo. O mero sentimento, ainda que nobre, é sempre fugaz. Parece-se com
algo que passa sem nada inspirar. Não move e nem comove. Seria uma
comiseração refinada, mas sem efeitos, sem aproximação, sem
solidariedade, sem vigor interpelativo.
A experiência bíblica de compaixão é mais que uma elevada afeição
humana. No Antigo Testamento, era uma das mais pronunciadas
características de Deus. Suas compaixões desdobravam-se em respostas de
aproximação reconciliadora ou libertadora. No caso de Jesus, suas
atitudes compadecidas davam a conhecer as inclinações de Deus em favor
daquela gente. Se as multidões eram como “ovelhas sem pastor”, a imagem
está a referir indiferença e frieza ante sua situação. Os gestos do
Senhor compassivo recordavam-lhes que, embora em quadros difíceis, ainda
assim eram preciosos aos olhos do Pai.
Até vale um olhar para a origem etimológica. E aqui é muito pouco o
apelo ao vocábulo latinocom/passio (“padecer com”). É preciso um novo
passo. Para “compaixão” é preciso ir até o grego antigo. Lá a compaixão
está ligada às disposições maternas de conservar a vida. Naquela língua
os termos “compaixão” e “útero” são equivalentes. Assim como o ventre
materno acolhe a vida, envolve-a, protege-a e a faz nascer, algo
semelhante fez o Senhor ao aproximar-se daquelas “ovelhas sem pastor”:
suscitou-lhes a esperança com expressões de amor fraterno. Foi uma
aproximação generativa, isto é, gerou algo.
Quem olha para as manchetes, as escolhas e comportamentos atuais
talvez se deixe convencer de que a compaixão está a perder credenciais
no elenco das qualidades humanas. Afinal, produtividade, eficiência,
competitividade afiguram-se “pobres” de atitudes compassivas.
Entretanto, tendo chegado a Curitiba há poucos meses, sem negar as
durezas da grande metrópole, devo dizer, gratificado, que encontro
muitos testemunhos de compaixão solidária. E percebi que a graça faz um
bem imenso não apenas aos beneficiários. Parece que faz um bem maior aos
compassivos.
CNBB 22-07-2015
*Dom José Antônio Peruzzo é arcebispo de Curitiba (PR).
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