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Se faltar discernimento, prevalecerá a disputa entre religião e fé e não o encontro entre ambas.
Por Dom José Antônio Peruzzo*
Impressiona o elevado grau de religiosidade disseminada por toda a
parte. Desde os tempos do iluminismo se anunciava o fim da religião.
Contudo, por mais que a genialidade humana seja pródiga em sua força
inventiva, quando tudo estaria a sugerir que a família humana seria mais
feliz e justa, ainda assim enumeram-se as contradições da história.
Homens e mulheres, carentes e abastados, parecem sempre mais inquietos.
Uns pela falta, outros pelo excesso. E Deus é sempre lembrado. Em muitos
casos, infelizmente, até para legitimar a violência.
É muito comum confundir experiência religiosa com experiência de fé.
Também se fazem verdadeiros hibridismos entre religião e
espiritualidade. Embora sejam questões conexas, se faltar discernimento,
prevalecerá muito mais a disputa entre religião e fé do que o encontro
entre estas duas dimensões. A religião refere-se ao sagrado, ao
inacessível, dotado de onipotência. A pessoa religiosa se expressa com
ritos e cultos. Faz suas ofertas e apresenta seus pedidos. Em muitas
situações envolve um grande fascínio. Tem forte componente emotivo.
Também faz parte da experiência religiosa a adesão a um corpo doutrinal.
Mas ainda não chega a ser uma vivência de encontro com um Deus amoroso.
Neste sentido, até as nossas novenas, vez por outra, podem carecer de
maiores discernimentos. Elas correm o risco de serem apenas exercícios
de religiosidade, o que é ambíguo.
A experiência de fé tem fundas raízes na religião. Mas traz consigo
alguns elementos diferenciadores. A fé pede atitudes de relação, de
confiança, de obediência. Não se trata de relação submissa, nem
confiança cega. Tampouco se pensa em obediência fanatizada. Na
experiência de fé conta muito, decisivamente, a liberdade pessoal.
Compreendamos o sentido de “obediência”. Vem do latim ob-audire. A
primeira parte (ob) é prefixo que indica “diante de”, “por causa de”.
Audire quer dizer ouvir. Daí o termo obediência.
Agora voltemos à fé. Homem ou mulher de fé não é aquele(a) que tem
certezas intelectuais. Tampouco é fé aquela atitude psicológica parecida
com pensamento positivo. Estas são virtudes humanas, mas que ainda não
integram ou constroem relações de confiança. Tem fé quem se dispõe
aderir e vincular sua liberdade em favor de alguém que confere sentido à
vida presente e futura. Porque adere também ouve, também ora, também
obedece (ob-audire). Claro, a fé tem uma dimensão religiosa porque
comporta abrir-se à eternidade, ao infinito, ao onipotente. Mas mais do
que aspectos de ritos, valem os vínculos de relação.
Agora podemos retomar a frase do evangelho. O mais sério problema dos
discípulos não era o vento tempestuoso. Não era a ameaça das ondas. Era
a sua pouca confiança. O mar agitado era poderoso. O vento forte era
ameaçador. Aos discípulos parecia mais lógica a certeza vinda de um
milagre expectado do que a confiança na força, na autoridade e na
palavra que de Jesus tinham ouvido. Eles eram homens religiosos. Mas
ainda não tinham fé. O vento e o mar se curvaram ante a voz de Jesus. Os
discípulos, porém, se apavoraram.
Segue que para chegar a ser uma pessoa de fé o caminho a percorrer
não é o das elaborações filosóficas. Não são os raciocínios complicados
que me levam à obediência a Deus. Se se trata de relação e de confiança,
então a disposição à oração é o passo primeiro. É por isso que
encontramos no mesmo evangelho de Marcos uma sublime oração de súplica:
“Senhor, vem em socorro à minha fé” (Mc 9,24).
CNBB 08-07-2015
*Dom José Antônio Peruzzo é arcebispo de Curitiba (PR).
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