O Saque de Roma, Francisco Javier Amérigo (séc. XIX), Museu do Prado, Madrid |
Corrispondenza Romana, 2-12-2015
A
Igreja vive uma época de desvio doutrinário e moral. O cisma é
deflagrado na Alemanha, mas o Papa não parece dar-se conta do alcance do
drama. Um grupo de cardeais e de bispos propugna a necessidade de um
acordo com os hereges. Como sempre acontece nas horas mais graves da
História, os eventos se sucedem com extrema rapidez.
No
domingo, 5 de maio de 1527, um exército descido da Lombardia entra no
Gianicolo [uma das sete colinas de Roma]. O Imperador Carlos V, irado
pela aliança política do Papa Clemente VII com o seu adversário, o rei
francês Francisco I, tinha feito avançar um exército contra a capital da
Cristandade. Naquela noite, o sol esvaneceu-se pela última vez sobre a
beleza deslumbrante da Roma renascentista. Cerca de 20.000 homens,
italianos, espanhóis e alemães, entre os quais os mercenários Landskchnechte,
de fé luterana, estavam se preparando para atacar a Cidade Eterna. Seu
comandante lhes tinha dado licença para saquear. Durante toda a noite o
sino tocou a repique no Capitólio, a fim de convocar os romanos às
armas, mas já era tarde demais para improvisar uma defesa eficaz.
Na madrugada de 6 de maio, favorecidos por uma névoa espessa, os Landsknechte
empreenderam o assalto aos muros, entre Santo Onofre e Espírito Santo.
Os guardas suíços se reuniram em torno do Obelisco do Vaticano,
decididos a permanecer fiel ao seu juramento até a morte. Os últimos
deles se imolaram próximo ao altar da Basílica de São Pedro. A sua
resistência permitiu ao Papa pôr-se em fuga com alguns cardeais. Através
do Passetto del Borgo, via de ligação entre o Vaticano e o Castel
Sant’Angelo, Clemente VII chegou à fortaleza, único baluarte que restou
contra o inimigo. Do alto das arquibancadas, o Papa assistiu à terrível
chacina,que começou com o massacre daqueles que correram para as portas
do castelo para encontrar abrigo, enquanto os pacientes do hospital do
Espírito Santo em Saxia eram trucidados com golpes de lança e espada.
A licença ilimitada para roubar e matar durou oito dias, e a ocupação da cidade, nove meses. “O inferno não é nada comparado ao aspecto que Roma tem agora”, lê-se numa narrativa de 10 de maio de 1527, relatada por Ludwig von Pastor (História dos Papas, Desclée, Roma, 1942, vol. IV, 2, p. 261). Os religiosos foram as principais vítimas da fúria dos Landsknechte.
Os palácios dos cardeais foram depredados, as igrejas profanadas,
padres e monges mortos ou escravizados, as freiras estupradas e vendidas
nos mercados. Viram-se paródias obscenas de cerimônias religiosas,
cálices de Missa usados para embriagar-se entre as maldições, hóstias
sagradas assadas em panelas e dadas como alimentação aos animais,
túmulos de santos violados, cabeças dos apóstolos, como a de Santo
André, utilizadas para jogar bola nas ruas. Um burro foi revestido de
paramentos eclesiásticos e levado ao altar de uma igreja. O sacerdote
que se recusou a dar-lhe a comunhão foi feito em pedaços. A cidade foi
ultrajada em seus símbolos religiosos e nas suas memórias mais sagradas
(ver também André Chastel, Il Sacco di Roma, Einaudi, Torino 1983; Umberto Roberto, Roma capta. Il Sacco della città dai Galli ai Lanzichenecchi, Laterza, Bari 2012).
Clemente
VII, da família dos Medici, não tinha correspondido ao apelo de seu
antecessor Adriano VI para uma reforma radical da Igreja. Martin Lutero espalhava havia dez anos as suas heresias,
mas a Roma dos Papas continuava imersa no relativismo e no hedonismo.
No entanto, nem todos os romanos eram corruptos e efeminados, como
insinua o historiador Gregorovius. Não o eram aqueles nobres, como
Julius Vallati, Giambattista Savelli e Pierpaolo Tebaldi, que levantando
um estandarte com o lema “Pro Fide et Patria”, opuseram a última
resistência heroica na Ponte Sisto, nem tampouco o eram os alunos do
Colégio Capranica, que acorreram e morreram no bairro do Espírito Santo
para defender o Papa em perigo. Àquela hecatombe a instituição
eclesiástica romana deve o título de “Almo”. Clemente VII escapou e
governou a Igreja até 1534, enfrentando, depois do cisma luterano, o
anglicano, mas assistir ao saque da cidade sem nada poder fazer, foi
para ele mais duro do que a morte.
Em
17 outubro de 1528, as tropas imperiais abandonaram uma cidade em
ruínas. Um espanhol, testemunha ocular, nos dá um quadro terrificante da
cidade um mês após o Saque: “Em Roma, capital da cristandade, não se
toca nenhum sino, não se abrem as igrejas, não se reza uma Missa, não
há domingo nem dia de festa. As ricas lojas dos mercadores servem de
estábulo aos cavalos, os mais esplêndidos palácios estão devastados,
muitas casas incendiadas, outras quebradas e levadas as portas e as
janelas, as ruas transformadas em esterco. É horrível o cheiro fétido
dos cadáveres: homens e animais têm a mesma sepultura; vi nas igrejas
cadáveres roídos pelos cães. Não sei com que outra coisa comparar isso,
exceto com a destruição de Jerusalém. Agora reconheço a justiça de Deus,
que não falha ainda que venha tarde. Em Roma se cometiam o mais
abertamente possível todos os pecados: sodomia, simonia, idolatria,
hipocrisia, engano; para que não possamos acreditar que isso aconteceu
por acaso, mas por julgamento divino” (L. von Pastor, História dos Papas, cit., p. 278).
O Papa Clemente VII encomendou a Michelangelo o Juízo Universal
na Capela Sistina quase para imortalizar o drama que a Igreja de Roma
sofreu naqueles anos. Todos compreenderam que se tratava de um castigo
do Céu. Não faltaram avisos premonitórios, como um raio que caiu no Vaticano e o aparecimento de um eremita, Brandano da Petroio, venerado pelo povo como “o louco de Cristo”, que na manhã da Quinta-feira Santa de 1527, enquanto Clemente VII abençoava a multidão em São Pedro, gritou: “Bastardo
sodomita, pelos teus pecados Roma será destruída. Confessa-te e
converte-te, porque dentro de 14 dias a ira de Deus se abaterá sobre ti
e sobre a cidade”.
No ano
anterior, no final de agosto, os exércitos cristãos tinham sido
derrotados pelos otomanos no campo de Mohacs. O rei húngaro Luís II
Jagiello morreu em batalha e o exército de Solimão o Magnífico ocupou
Buda. A onda islâmica parecia irrefreável na Europa.
No
entanto, a hora do castigo foi, como sempre, a hora da misericórdia. Os
clérigos perceberam quão estultamente tinham procurado as atrações dos
prazeres e do poder. Depois do terrível Saque, a vida mudou
profundamente. A Roma alegre do Renascimento se transformou na Roma
austera e penitente da Contra-Reforma.
Entre
os que sofreram no Saque de Roma estava Gian Matteo Giberti, bispo de
Verona, mas que residia então em Roma. Aprisionado pelos sitiantes,
jurou que jamais abandonaria a sua residência episcopal caso fosse
libertado. Ele manteve a sua palavra, voltou a Verona e dedicou-se com
todas as energias à reforma de sua diocese, até sua morte em 1543. São
Carlos Borromeo, que será o modelo dos bispos da Reforma Católica, se
inspirará no seu exemplo.
Em
Roma também estavam Carlo Carafa e São Caetano de Thiene, que fundaram
em 1524 Ordem dos Teatinos, um instituto religioso ridicularizado por
sua posição doutrinária intransigente e pelo abandono à Divina
Providência, a ponto de esperar pelas esmolas e nunca pedi-las. Os dois
co-fundadores da Ordem foram presos e torturados pelosLandsknechte
e escaparam milagrosamente da morte. Quando Carafa se tornou cardeal e
presidente do primeiro tribunal da Santa Inquisição romana e universal,
queria ter ao seu lado outro santo, o padre dominicano Michele
Ghislieri. Os dois homens, Carafa e Ghislieri, com os nomes de Paulo IV e
São Pio V [quadro ao lado], serão os dois Papas por
excelência da Contra-Reforma católica do século XVI. O Concílio de
Trento (1545-1563) e a vitória de Lepanto contra os turcos (1571)
demonstraram que, mesmo nas horas mais sombrias da História, com a ajuda
de Deus é possível o renascimento. Mas, na origem desse renascimento,
esteve o castigo purificador do Saque de Roma.
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