Pergunta — Concordo plenamente que não possa haver divórcio e que tudo seja feito como na época de Jesus, quando o adultério era punido com a morte. O cônjuge inocente ficava viúvo, podendo se casar novamente. Será que hoje vamos matar o cônjuge adúltero? Ou a parte ofendida terá que carregar esse fardo para sempre?
Monsenhor José Luiz Villac |
Resposta — Aos
leitores não terá escapado o tom sarcástico e amargo das perguntas do
missivista. Mas esta coluna não receia enfrentar até questões
aparentemente embaraçosas, com a convicção de que somente Nosso Senhor
Jesus Cristo tem “as palavras de vida eterna” (Jo 6, 68), mesmo quando elas parecem duras aos ouvidos de muitos dos nossos contemporâneos.
Com efeito, a dissolução dos costumes e
a legalização do divórcio e do concubinato — que concede à concubina os
mesmos direitos da esposa legítima — diluíram no espírito público a
noção da grandeza da fidelidade matrimonial e de sua necessidade para a
união e a estabilidade das famílias e da sociedade. Para isso
concorreram também os enredos das telenovelas, que fizeram cair as
últimas barreiras de horror ante a violação da santidade da união
conjugal.
Pelo relato da Sagrada Escritura, no Livro do Gênesis, sabemos que ao ver Eva pela primeira vez, Adão exclamou: “Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne”. Por isso, afirma a Bíblia, “o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só carne”
(Gn 2, 21-24). Deus não podia manifestar de modo mais claro a sua
intenção de que a união matrimonial fosse não somente indissolúvel, mas
até mais estreita do que aquela que une os pais e os filhos, posto que o
marido deve deixar seu pai e sua mãe para unir-se à sua mulher.
“Viola o sinal da Aliança, que é o vínculo matrimonial”
O vocábulo adultério provém do latim ad alterum, ou seja, ir
“para outro”. Em outras palavras, trair a fidelidade jurada no
casamento, entregando seu corpo a uma pessoa diferente do próprio
cônjuge. Pois, como disse São Paulo: “A mulher não pode dispor de
seu corpo: ele pertence ao seu marido. E da mesma forma o marido não
pode dispor do seu corpo: ele pertence à sua esposa” (I Co 7, 4).
Por isso, “quando
dois parceiros, dos quais pelo menos um é casado, estabelecem entre si
uma relação sexual, mesmo efêmera, cometem adultério [...] Os profetas
denunciam-lhe a gravidade. E veem no adultério a figura do pecado da
idolatria. O adultério é uma injustiça. Aquele que o comete, falta aos
seus compromissos. Viola o sinal da Aliança, que é o vínculo
matrimonial, lesa o direito do outro cônjuge e atenta contra a
instituição do matrimônio, violando o contrato em que assenta.
Compromete o bem da geração humana e dos filhos que têm necessidade da
união estável dos pais” (Catecismo da Igreja Católica, números 2380-2381).
A gravidade do adultério é tal, que Nosso Senhor o condenou até quando cometido por simples desejo: “Ouvistes
que foi dito aos antigos: Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo:
todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma mulher, já adulterou
com ela em seu coração” (Mt 5, 27-28).
A Lei no Antigo e Novo Testamento
Pela
sua malícia intrínseca e pelos estragos que provoca na família e na
sociedade, desde os primórdios da humanidade e até há pouco tempo, o
adultério era considerado não somente um pecado, mas também um delito,
severamente punido pela quase unanimidade das nações civilizadas. Como
refere o nosso missivista, também sob a Lei Mosaica, inspirada pelo
próprio Deus para domesticar as paixões de um povo ainda grosseiro e
brutal, os dois cúmplices do adultério eram punidos com a morte: “Se
se encontrar um homem dormindo com uma mulher casada, todos os dois
deverão morrer: o homem que dormiu com a mulher, e esta da mesma forma” (Dt 22, 22). O caráter medicinal (para o povo judeu) da severidade da pena fica patente no fim do versículo: “Assim, tirarás o mal do meio de ti”.
Com as graças superabundantes aportadas pela Redenção, foi possível
passar da lei do temor à lei do amor, pela qual Deus quer ser adorado “em espírito e em verdade”
(Jo 4, 23) e servido na liberdade e no abandono do coração. Por outro
lado, a Antiga Lei, mesmo sendo santa, espiritual e boa, era imperfeita,
posto que apontava o que se devia fazer, mas, por si, não dava a graça
para ser cumprida; enquanto a Lei evangélica opera pela caridade e, por
meio dos sacramentos, dá-nos a graça de cumpri-la na sua plenitude, pela
imitação da perfeição do Pai celeste (Catecismo da Igreja Católica, números 1961-1974).
Essa nova pedagogia do Evangelho pode ser vista em muitos episódios da
vida de Jesus, mas muito especialmente quando Ele defendeu e perdoou a
mulher adúltera e quando conversou com a Samaritana junto ao poço,
exortando-as a não mais pecar. Isso não significa que para o adúltero
impenitente não haja mais castigo, mas apenas que o castigo é
transferido para a eternidade, porque, como ensina São Paulo, “não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados [...] hão de possuir o Reino de Deus” (I Cr 6, 9-10).
Os homens não podem separar o que Deus uniu
Na Igreja primitiva, pela convicção de que ela já representava o Reino
celeste nesta Terra e para dar o espetáculo de uma sociedade santa e
imaculada, os que tinham violado a fidelidade conjugal eram expulsos de
seu seio mediante uma exclusão perpétua da comunidade eclesial. Mais
tarde, pela crescente pureza de costumes dos primeiros cristãos e tendo
desaparecido os motivos desse drástico castigo social, a partir do Papa
Calixto (217-222) consentiu-se em absolver o adultério também no foro
externo, sob a condição de que os pecadores se preparassem para a
reconciliação através de uma longa penitência pública imposta pelo
bispo.
Ao mesmo tempo, a Igreja aproveitou sua crescente influência sobre a
sociedade para abrandar as legislações civis. Por exemplo, Ela obteve do
imperador Justiniano que fosse mantido o rigor da lei contra o homem,
mas que fosse poupada a vida da mulher, a qual era enclausurada num
mosteiro durante todo o tempo que o marido julgasse necessário para
lavar a sua honra e para a esposa se emendar. Aos poucos, a Igreja foi
conseguindo que até a pena de morte para o varão fosse suprimida.
Se o rigor das penas temporais para os adúlteros foi sendo abrandado
pela influência da lei evangélica, esta, porém, restaurou o pleno rigor
da indissolubilidade original do matrimônio, que tinha sido parcial e
temporariamente derrogada pela Antiga Lei, por causa da dureza de
coração do povo eleito.
Conforme o relato de São Marcos (10, 2-12),“chegaram os fariseus e
perguntaram-lhe, para o pôr à prova, se era permitido ao homem repudiar
sua mulher. Ele respondeu-lhes: ‘Que vos ordenou Moisés?’ Eles
responderam: ‘Moisés permitiu escrever carta de divórcio e despedir a
mulher.’ Continuou Jesus: ‘Foi devido à dureza do vosso coração que ele
vos deu essa lei; mas, no princípio da criação, Deus os fez homem e
mulher. Por isso, deixará o homem pai e mãe e se unirá à sua mulher e os
dois não serão senão uma só carne. Assim, já não são dois, mas uma só
carne’. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu. Em casa, os
discípulos fizeram-lhe perguntas sobre o mesmo assunto. E ele
disse-lhes: ‘Quem repudia sua mulher e se casa com outra, comete
adultério contra a primeira. E se a mulher repudia o marido e se casa
com outro, comete adultério.”
O mesmo ensinamento de que somente a morte pode dissolver o vínculo
conjugal é repetido no Evangelho de São Marcos (16, 18) e na I Epístola
de São Paulo aos Coríntios, bem como naquela aos Romanos. E foi
reiterado de modo solene, com o selo da infalibilidade, no Cânon 7 da
sessão 24 do Concílio de Trento, que reza: “Se alguém disser que a
Igreja erra quando ensinou e ensina que, segundo a doutrina evangélica e
apostólica, o vínculo do matrimonio não pode ser dissolvido pelo
adultério de um dos cônjuges e que nenhum dos dois, nem mesmo o inocente
que não deu motivo ao adultério, pode contrair outro matrimônio em vida
do outro cônjuge, e que comete adultério tanto aquele que, repudiada a
adúltera, casa com outra, como aquela que, abandonado o marido, casa com
outro — seja excomungado.”
Divórcio: injúria contra a Aliança da salvação
Será
então verdade o que diz o missivista no fim de sua carta, ou seja, que
não sendo lícito o divórcio por adultério, a parte inocente tem que
“carregar esse fardo para sempre”, ou seja, continuar a conviver com o
cônjuge adúltero que cometeu adultério?
Nem um pouco. Porque São Paulo, na sua Primeira Epístola aos Coríntios,
deixa claro que há casos em que é lícito o desquite (ou seja, a mera
separação de corpos, sem dissolução do vínculo) ao dizer que “aos casados mando (não eu, mas o Senhor) que a mulher não se separe do marido. E, se ela estiver separada, que fique sem se casar, ou que se reconcilie com seu marido” (10-11).
E por isso o Concílio de Trento, no cânon seguinte ao já citado, define solenemente que “se alguém disser que a Igreja erra, quando determina que por muitos motivos se pode fazer [licitamente] a separação dos consortes quanto ao tálamo e à coabitação, por tempo certo ou incerto — seja excomungado”. Esse ensinamento foi reiterado pelo Catecismo da Igreja Católica, no seu parágrafo 2383: “A separação dos esposos, permanecendo o vínculo matrimonial, pode ser legítima em certos casos previstos pelo direito canônico”.
Porém, convém reiterar mais uma vez que separação não é divórcio
e que este último é uma ofensa grave à lei natural e divina e uma
injúria contra a Aliança da salvação, da qual o matrimônio sacramental é
sinal. “O fato de se contrair nova união – ensina o citado Catecismo –, embora reconhecida pela lei civil, aumenta a gravidade da ruptura: o cônjuge casado outra vez encontra-se numa situação de adultério público e permanente” (n° 2384).
De onde resulta ser um sacrilégio dar a Sagrada Comunhão aos assim chamados “casais em segunda união”, ou seja, aos divorciados recasados que vivem maritalmente.
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