[unisinos]
Em 13 de dezembro terminou a campanha de arrecadação de recursos que a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd)
faz entre seus fiéis com a promessa de que, se fizerem sacrifícios,
superarão a miséria e multiplicarão seus bens. Nesse dia, o bispo Couto viajou para a Fogueira Santa, em Israel, com os pedidos dos doadores. O fundador da Iurd, Edir Macedo, um dos homens mais ricos do mundo, segundo a revista Forbes, construiu um império milionário no Brasil.
A reportagem é de Rodrigo Soberanes, publicada por CIPER, 1901-2016.
Na tela gigante, uma mulher brasileira conta que vendeu todos os
móveis de sua casa. Como a quantia que obteve não era suficiente,
recolheu latas de alumínio nas ruas para juntar US$ 3 mil e entregá-los
em “sacrifício” a Deus. Quando chega ao fim o
testemunho em forma de vídeo, as luzes do templo acendem e iluminam os
rostos de cerca de 400 pessoas dispostas a buscar o próprio milagre.
É 22 de novembro em Santiago, domingo, o dia mais importante das celebrações da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), mais conhecida como Pare de Sufrir,
o nome de seu famoso programa de televisão. Do lado de fora do templo,
na rua Nataniel Cox nº 59, ao lado da grande bandeira chilena da Plaza
de la Ciudadania, no centro da capital chilena, o domingo transcorre
calmamente. Do lado de dentro, explode a euforia coletiva de quem
esperou uma semana inteira para escutar o bispo brasileiro Francisco Couto
explicar seus métodos para alcançar Deus – e os muitos milagres que Ele
pode realizar por pessoas que enfrentam problemas financeiros ou de
outra sorte.
A Iurd – cujo fundador, Edir Macedo Bezerra,
70 anos, multimilionário, foi acusado e absolvido por lavagem de
dinheiro no Brasil – está em plena expansão no Chile, com o investimento
de mais de US$ 6 milhões na construção de sua nova catedral e a compra
de mais espaços na televisão e no rádio.
Em questão de dias, este teatro de fachada descolorida, localizado no
primeiro andar de um edifício na rua Nataniel Cox, será coisa do
passado para a Iurd. O piso pegajoso e as poltronas de
madeira serão substituídos, em cerca de dois meses, por um templo
moderno, com capacidade para mais de 2 mil pessoas. A Iurd está também
em busca de aumentar o alcance de seu programa Pare de Sufrir,
transmitido atualmente pelo Telecanal. Recentemente, tentaram, sem
sucesso, comprar um espaço no canal Televisión Nacional. Segundo fontes
da rede estatal consultadas pelo Ciper, a venda de programas publicitários não se ajusta às políticas do canal.
Máquina de dinheiro
O maquinário para obter recursos trabalha rapidamente. Veja-se a chamada “Campanha de Israel”,
de dezembro, na qual pedem aos fiéis que “voluntariamente” façam o
“sacrifício de suas vidas” em troca do milagre que se traduzirá em
dinheiro. Um sacrifício em que se incita os fiéis a vender tudo o que
têm para entregar o dinheiro à igreja. Sem contar a ninguém, porque é um
trato entre “você e Deus”.
A fórmula faz parte da chamada teologia da prosperidade e consiste, conforme observou o Ciper, em oferecer bem-estar econômico a troco de sacrifícios a Deus, também mensurados em dinheiro. A estratégia funciona tão bem que a Iurd está presente em 200 países. Edir Macedo
aparece desde 2013 na lista da revista Forbes como dono de uma fortuna
de US$ 1,1 bilhão e é considerado pela publicação como um dos líderes
religiosos mais ricos do mundo.
Desde sua fundação no Brasil, em 1997, a Iurd
construiu seu sucesso em meio a polêmicas alimentadas por episódios como
o que presenciamos no domingo 22 de novembro, em que pessoas em
situações de extrema precariedade econômica ou afetadas por problemas
pessoais graves foram persuadidas a se desfazer de todos os seus bens
para pagar por um milagre.
Domingo, 29 de novembro, catedral da Iurd na Nataniel Cox. O bispo Francisco Couto
está de pé sobre o palco, de onde todos podem enxergá-lo. É alto e se
veste de maneira impecável: calças azuis, colete e gravata. Sua
articulação e presença de palco são notáveis.
Não demora dez minutos para que os fiéis comecem a murmurar orações
com os braços para o alto e as mãos estendidas, como se tocassem algo
invisível. Às 10h15, cerca de 400 pessoas estão prontas para se tornar
dizimistas.
Quinze assistentes – mulheres de vestido cinza e homens com calças
azuis e camisas brancas – estão dispostos em filas nos corredores
laterais do templo, vigiando os fiéis e cuidando da logística da
cerimônia: pedindo que levantem as mãos, caminhando pausadamente quando o
momento é solene e apressadamente quando têm de distribuir folhetos de
propaganda sobre as doações. Apelidados de “obreiros”,
são jovens que se preocupam muito com a aparência e se postam ao pé do
palco com bolsas azuis para receber o dinheiro. O público faz filas para
lhes entregar o dízimo.
Francisco Couto relembra que aqueles que não possuem
dinheiro vivo podem dar seu dízimo através de seus cartões de crédito
ou débito na máquina que leva um de seus “obreiros”. Feita a doação, o
aparelho imprime um comprovante de venda em nome da Iurd (ver
comprovante).
Agora, o bispo coloca uma das bolsas azuis no pé de um baú dourado,
localizado também sobre o palco, e inicia uma oração de cinco minutos
para que Deus recompense com mais dinheiro no futuro aqueles que “fizeram um sacrifício”. O tecladista coloca uma música de fundo e ajuda o bispo a criar a atmosfera celestial que regozija os dizimistas.
A música para e o bispo Couto vocifera um sonoro
“Graças a Deus!”. Escutam-se aplausos ensurdecedores, seguidos sem
interrupção por um lembrete do mesmo bispo: o dinheiro que quase todos
os presentes haviam acabado de entregar é endereçado a Deus, e não à
Iurd.
“Um salto no Chile em 2016”
Segundo Francisco Couto, que chegou ao país há dois anos, vindo do Brasil, a Iurd
“dará um salto no Chile em 2016” com a construção do novo templo. É um
projeto planejado por mais de dez anos e está a dias de se concretizar.
Em 30 de setembro de 2004, a igreja iniciou sua expansão quando comprou uma propriedade próxima à estação de metrô Unión Latinoamericana.
De acordo com as escrituras, o vendedor era a Sociedade Imobiliária
Quimera Limitada, que cobrou pela transação UF 62.600, cerca de US$ 1,7
milhões à época. Pouco mais de um ano depois, em 24 de outubro de 2005, a
igreja adquiriu um prédio perto dali, na rua Abate Molina nº 60. A
empresa Rentaequipos Comercial, dona do imóvel, recebeu, naquela data,
UF 34.313 pela venda, que equivaliam então a mais de US$ 1,1 milhões.
Com dois prédios sob sua propriedade, em 23 de outubro de 2007, o representante legal da Iurd, pastor José Roberto Aguilera Inostroza,
apresentou à Prefeitura de Santiago pedido de autorização de
construção. O projeto incluía a permissão para demolir um edifício
levantado na década de 1960.
Nos documentos apresentados à Direção de Obras da Prefeitura,
calcula-se que a construção custaria o equivalente a UF 76.390 à época,
quantia igual a quase US$ 3 milhões. Entre os terrenos e as obras, o
orçamento chegaria ao valor de UF 172.703, que atualmente
corresponderiam a mais de US$ 6,2 milhões.
A arquiteta Paulina Rica Mery, encarregada da construção do templo, conta que as novas instalações servirão também para formar “jovens teólogos” que difundirão pelo Chile a doutrina da Pare de Sufrir.
No planejamento da obra, ao que o Ciper teve acesso, percebe-se a magnitude do “salto” que a Iurd
pretende dar no país: a superfície total da construção é de 10.826
metros quadrados (mais de dois campos de futebol); a capacidade do
templo principal é de 2.132 pessoas, incluindo deficientes físicos; há
29 apartamentos para hospedagem e 54 vagas de estacionamento. Somando os
espaços de escritórios, refeitórios, alojamento e do templo, em um
mesmo dia o local pode sediar um evento com 2.668 pessoas. O plano é que
as instalações tenham oito andares. “É uma construção moderna que se
adapta aos novos tempos. Não contém imagens nem símbolos religiosos a
não ser a cruz. É um lugar de ativa operação social. A cor da fachada é
terra-cobre e significa a integração à idiossincrasia chilena”, explica a
arquiteta Paulina Rica.
A empresa construtora do novo templo é a IDC, da Argentina. Em fevereiro de 2014, o representante legal da Iurd, Aguilera Inostroza, fundou uma sociedade no Chile, também chamada Construcciones IDC Limitada, com o engenheiro argentino Daniel Adolfo Carrera, que aportou 99% do capital.
Agora, Aguilera Inostroza é parte de uma construtora
na qual investiu simbólico 1% (segundo o Diário Oficial) e, por isso,
está em condições de desenvolver no Chile projetos de construção,
aluguel de equipamentos ou ferramentas, prestar serviços profissionais
de arquitetura e “a realização de todas aquelas atividades comerciais ou
industriais complementares ou anexas ao eixo principal”.
Apesar da enorme catedral que estão construindo, “Reinaldo”, o pastor do templo desta igreja em Ñuñoa – um dos 14 que a Iurd
possui em Santiago, além dos 19 em outras regiões chilenas –, não está
satisfeito com a recepção que a igreja teve no país. Tem encontrado –
diz – “corações fechados”, o que os impede por enquanto de se
estabelecer como esperavam. Mas assegura que os esforços não cessarão.
A nova sede da Iurd está quase pronta, e o velho
Teatro Continental na rua Nataniel Cox está disponível para um novo
locatário a partir deste mês, segundo confirmou ao Ciper a imobiliária
GYG Propriedades.
A nova catedral é um objetivo que a Iurd alcançou por meio da fé, afirma diante dos fiéis o bispo Francisco Couto:
“Porque ter fé é estar seguro do que não se pode ver. E nós não temos
dinheiro, mas temos fé”. Couto fala aos fiéis enquanto os prepara para o
momento das doações, a atividade mais importante do ano: a “Campanha
Fogueira Santa de Israel na Fé de Gideão”.
A mulher das latas
Uma semana antes, no sábado 14 de novembro, Ciper
presenciou no mesmo templo da Nataniel Cox uma sessão mais íntima.
Nesse dia, quem presidiu a cerimônia foi outro pastor, de menor
hierarquia que Couto, que pediu que um grupo de nove mulheres de idade
avançada e sapatos gastos se aproximasse ao palco. São mulheres que
andam a pé pela vida e, nesse dia, compareceram ao “Culto das causas impossíveis”.
Entre elas, há uma senhora que chega apressada. Em seus braços, leva várias latas de alumínio
recolhidas pelas ruas e que ela tenta, também com pressa, guardar em
uma sacola plástica, porque a fala do pastor já havia começado. Desta
vez, ele – um jovem de calças pretas e camisa branca de mangas dobradas –
não está sobre o palco, e sim no mesmo nível dos fiéis. Olhando-as
fixamente, pergunta ao grupo de mulheres evidentemente cansadas: “Vivem
mal, têm problemas, como estão?”. Em coro, todas respondem que sim,
passam por situações ruins.
O pastor está à frente da mulher que chegou com as latas de alumínio e
lhe fala sobre a vida dos fiéis: “É como a água, não como o vinho”,
afirma, com uma voz que denota o esforço para parecer empático.
– O que sabe a água? – pergunta.
– Nada, nada, nada – respondem as mulheres em coro.
– Veem? Assim estão suas vidas.
O pastor segue tentando convencê-las de que a única coisa que
precisam fazer para converter água em vinho, de que a única condição
para que suas vidas deixem de ser insípidas, é “obedecer a Deus”
e, sobretudo, “sacrificar-se por Ele”. Chama atenção que, a partir daí,
o jovem pastor continua sua fala imitando a forma de falar dos pastores
brasileiros: muda o “s” por “sh” e o castelhano pelo portunhol.
A essa altura, o grupo de mulheres já está entregue: todas obedecem a
cada um dos passos que indica o pastor. Fecham os olhos e levantam os
punhos, desferem pequenos golpes no ar e sacodem timidamente seus corpos
enquanto o pastor desenha moinhos de vento com seus braços, invocando a
presença de Jesus Cristo, Deus e do Senhor. “Não aceito a miséria, a
dor, a doença…!”, grita o pastor.
As mulheres, também em voz alta, repetem suas palavras.
“Não aceito”.
Uma pesquisadora que incluiu a Iurd em seus estudos de doutorado – e que pediu ao Ciper que não revelasse seu nome – descreve os métodos utilizados pelo bispo Edir Macedo como “pragmáticos e modernos”,
porque evitam, por exemplo, que os fiéis se cansem com as leituras da
Bíblia, as quais precisam, por sua vez, ser interpretadas e analisadas.
Já em 1991, o jornal Folha de S. Paulo publicava um testemunho de Macedo
que ilustrava o “não aceito” repetido nos templos da Iurd ao redor do
mundo como um não aceitar as condições adversas da vida e se dedicar à
fé: “Minha segunda filha nasceu com lábio leporino, uma grande
deformação que praticamente eliminava o céu da boca. Eu sofri, eu gemi,
ela não foi uma alegria – foi uma tristeza, uma agonia. No dia em que
ela nasceu, eu decidi que não ficaria mais na igreja em que estava e que
iria partir para anunciar o Deus que me fora revelado”.
Neste sábado, 14 de novembro, no Chile, pode-se observar um pastor praticando, no templo da Nataniel Cox, os ensinamentos de Macedo
com o grupo de mulheres de sapatos gastos. O pastor pega uma Bíblia e
diz aos fiéis: “Aqui” – e dá tapinhas sobre a capa do livro – “há mais
de 8 mil promessas, mas vocês se perguntam por que suas vidas não se
encaixam nelas”.
O pastor continua sua fala destacando a passagem bíblica de Gideão,
que obedeceu a Deus e se livrou do medo de defender Israel dos ataques
dos midianitas, vencendo exércitos de “centenas, milhares e milhões” com
um grupo de apenas 300 soldados. E termina direto no ponto: obedecer a
Deus, dentro deste templo que antes foi um cinema com poltronas de
madeira, significa entregar o dízimo.
“Se ganha 1 milhão, doa mil; se ganha mil, doa cem; se ganha cem, doa
dez”, sentencia o pastor. Em seguida, o homem pega uma bolsa azul e
pede às mulheres que se aproximem para depositar suas moedas. Todas o
fazem, incluindo a mulher que se sustenta coletando e vendendo lixo.
Fé em Gideão e a Lei de Culto
A Iurd diz a seus fiéis que Gideão
foi capaz de escutar Deus e tomar a iniciativa de formar um exército,
ignorando os “incrédulos” inaptos para a “batalha” de enfrentamento aos
opressores. Gideão representa o “não aceitar” a miséria, a desgraça e demais calamidades que os pastores e bispos costumam citar em seus discursos.
No templo da Nataniel Cox, é recorrente escutar como bispos e
pastores incentivam centenas de pessoas a serem como Gideão, liderando
as próprias batalhas para se libertar de seus problemas. E esse
sacrifício consiste em vender todas as suas propriedades, reunir o
dinheiro, colocá-lo em um envelope e ofertá-lo a Deus através das mãos
terrenas do pessoal da Iurd.
Segundo o Manual Criminológico para Investigar Seitas, da Polícia de Investigações chilena (PDI),
a entrega dos bens dos fiéis a um grupo é uma das características das
seitas. Outro traço são os líderes carismáticos. Também difundem “ideias
de astúcia, audácia e heroísmo”. Relação de ruptura e desconfiança em
relação à sociedade e compensações claras e próximas são outras
características sectárias que o manual da PDI identifica. O texto foi elaborado pelo capelão evangélico da PDI, David Muñoz Condell, e editado pela instituição para a leitura de seus detetives.
As descrições do manual da PDI se assemelham muito às práticas que o Ciper observou durante mais de um mês nos templos da Iurd.
Embora o grupo venha sendo observado com apreensão por algumas igrejas
evangélicas tradicionais e autoridades, até agora não enfrentou
problemas, pois formalmente cumpre as exigências mínimas que impõe a lei
chilena.
A Iurd chegou ao Chile no início dos anos 1990. Em
setembro de 1995, o Ministério da Justiça recusou sua solicitação para
se tornar pessoa jurídica, mas, surpreendentemente, dois meses depois,
quando a Controladoria já havia tomado a decisão, mas ainda não havia
publicado o decreto do Diário Oficial, resolveu deixar o documento
oficial sem efeito e conceder a autorização.
A razão alegada para a mudança de opinião foi o respaldo das
principais organizações evangélicas, que asseguraram não se tratar de
uma seita. É o que consta no decreto que autorizou a Iurd
a se tornar pessoa jurídica: “Numerosas organizações religiosas
evangélicas do nosso país, tais como o Conselho de Pastores Evangélicos
do Chile e o Comitê de Organizações Evangélicas, respaldam a solicitação
de personalidade jurídica para a Igreja Universal do Reino de Deus,
expressando seu apoio e confiança na mencionada entidade, assinalando
que esta não é uma seita, mas uma Igreja Evangélica cujos objetivos não
são contrários à moral, à ordem pública e aos bons costumes”.
O Ministério da Justiça voltou a conceder a autorização à Iurd em 2002, quando a Lei de Culto
passou a permitir que as igrejas evangélicas, que até então tinham
personalidade jurídica de direito privado, pudessem ser entidades de
direito público, um privilégio antes reservado apenas à Igreja Católica.
O Estado chileno não exige prestação de contas à Iurd, como tampouco o
faz com outras 2.680 instituições religiosas de direito público
existentes, de acordo com informações da Oficina Nacional de Assuntos
Religiosos (Onar), vinculada ao Ministério da Secretaria-Geral da Presidência.
Como a Lei de Culto não estabelece nenhum tipo de
controle financeiro sobre as igrejas e não as obriga a entregar
informações sobre seus dirigentes, o Ministério da Justiça não exerce
fiscalização sobre a Iurd. Um controle que, por lei, deve realizar sobre
outras organizações sem fins lucrativos: “Não conta este Ministério com
faculdades legais para exercer a vigilância e fiscalização a respeito
das igrejas de direito público”, lê-se no site do órgão. O nome do
representante legal da Iurd no Chile só é conhecido porque foi
necessário informá-lo por causa de alguns trâmites municipais, e não
porque algum ente público o tenha em um registro oficial.
A lei está em vias de ser modificada e a Onar trabalha no assunto com outros atores. O Ciper teve acesso à prévia do anteprojeto de lei que a presidente Michelle Bachelet apresentará ao Congresso.
No artigo 15, o rascunho diz que as entidades religiosas “deverão
informar ao Ministério da Justiça a nomeação de seus ministros de culto
com o objetivo de manter atualizado o registro”. No artigo 16, se
estabelece que devem ser informadas também as mudanças nos estatutos,
enquanto o artigo 17 indica que “as omissões, inconsistências ou
imprecisões, fruto do não cumprimento da obrigação de informar, serão
tributadas pelo Ministério da Justiça”.
No entanto, as formas de obter dinheiro, como as que utiliza a Iurd,
não foram questionadas até o momento. O anteprojeto tampouco define,
por enquanto, os mecanismos de controle de suas finanças. O rascunho não
contesta também atividades como a campanha de Gideão,
que aconteceu no Chile em dezembro e promete milagres expressivos no
caso de sacrifícios econômicos em benefício da igreja: pessoas inválidas
que voltam a caminhar, portadores de câncer ou HIV/aids se curando por completo ou crianças mortas voltando à vida, segundo o discurso da Pare de Sufrir.
Um pacto secreto com Deus
A mecânica do templo da Nataniel Cox consiste em que
somente os que de fato estejam convencidos peguem um envelope estampado
com uma passagem bíblica. Em seu interior, encontrarão um papel com um
espaço onde escreverão “meu pedido” a Deus, e que deve corresponder ao
“tamanho de sua capacidade de sacrifício” – a quantidade de dinheiro que
estão dispostos a colocar no envelope – da qual ninguém deve saber,
pois é um “trato entre Deus e você”.
Os obreiros colocam os envelopes em uma pequena pilha de pedras em cima do palco – que representa o monte Carmelo
– para que os fiéis subam e peguem com as próprias mãos. Forma-se uma
fila que só para de andar quando alguém fica em dúvida diante dos
envelopes, como se estivesse pensando em fazer ou não o sacrifício.
As “batalhas” dos adeptos da Pare de Sufrir duraram
até 13 de dezembro. Tiveram dias para preparar seu sacrifício e evitar
“o diabo e os incrédulos” que tentaram impedir seus atos de fé, como diz
Francisco Couto, que busca a aprovação do público perguntado “amém?” – e
“amém!” lhe respondem.
“Têm até o 13 de dezembro para economizar. Ninguém mais deve ter esse
envelope. Não devem contar a ninguém sobre seu sacrifício. É um diálogo
entre vocês e Deus. Ignorem as piadas dos incrédulos. Vocês terão uma
batalha como a de Gideão até 13 de dezembro, Satã
tentará fazer com que duvidem de seu sacrifício, tentará fazê-los
retroceder”, adverte o bispo brasileiro no palco.
A Iurd foi questionada e se viu envolvida em processos judiciais contra seu fundador, Edir Macedo,
no Brasil. Ainda assim, o controverso líder não esconde que sua empresa
oferece salvação e milagres em troca de dinheiro. Em novembro de 2012
escreveu em seu blog: “Deus é justo e não deixará os que se sacrificam
sem uma justa recompensa. Se você espera algo de Deus que ainda não
chegou, há apenas dois motivos: seu sacrifício não foi verdadeiro ou seu
sacrifício foi verdadeiro e Deus está preparando para que saiba lidar
com as coisas grandes que chegarão”.
Ao menos para Edir Macedo a fórmula tem rendido grandes recompensas. Em 2013, comprou 49% das ações do Banco Renner
do Brasil. Macedo não possui licença técnica para operar no mercado
financeiro do Brasil, mas ainda assim levou a cabo essa operação que, de
acordo com a Forbes, começou em 2009. Além disso, a revista o classifica como um produtor de meios de comunicação, já que é dono da Rádio e Televisão Record. O bispo vive em Atlanta, nos EUA, e é proprietário de uma filial da emissora de TV Telemundo, a W67CI.
Em 2014 inaugurou em São Paulo uma réplica da igreja do rei Salomão, que custou aproximadamente US$ 200 milhões. A Iurd se associa também a um partido político, o PRB,
que nas últimas eleições legislativas do Brasil elegeu 21 deputados
federais e 32 estaduais nas Assembleias Legislativas pelo país.
É esse o caminho, seguido no Brasil e em outros países onde a igreja
já deu “o salto”, que agora buscam no Chile, segundo a pesquisadora que
estuda a Iurd.
Críticos anônimos e as pistas invisíveis da Pare de Sufrir
Em 2005, o advogado chileno Eduardo Villarroel recebeu testemunhos de pessoas que haviam participado da campanha de Gideão entregando todo o seu patrimônio à Iurd e se sentiam enganadas. Villarroel, que representava o então deputado Iván Moreira, do partido União Democrática Independente,
apresentou uma denúncia que terminou arquivada. Os acusadores não
quiseram assinar como autores da ação, que acabou não avançando. “A
denúncia saiu, foi divulgada àquela época, mas a discussão não foi
adiante, os juízes… aí ficaram. A Igreja Universal não
respondeu nada. Me deu a impressão de que houve algo oculto que começou a
enterrar isso. Nós tínhamos todos os antecedentes, porque os
querelantes tinham muito medo. Se tivessem assinado, a história teria
sido diferente”, afirmou o advogado Villarroel ao Ciper.
Chegar ao cerne da Pare de Sufrir e seguir seus
passos é difícil. É uma organização sem fins lucrativos capaz de gastar
mais de US$ 6,2 milhões em um enorme templo sem levantar suspeitas ou
objeções. De fato, na PDI informaram ao Ciper
que não há neste momento nenhuma investigação contra a igreja. E o mais
grave que constatou a reportagem é que aqueles que poderiam conceder
alguma informação sobre quem controla a Iurd não o fazem por medo.
Se buscamos seus fundadores nos registros oficiais chilenos, nenhum
deles aparece com um patrimônio compatível aos milhões que a igreja
recebe e opera. A prosperidade que professam não está registrada em seu
nome. A Iurd tem somente um domicílio legal no Chile, o
da Nataniel Cox, nº 59, o velho imóvel que estão a ponto de abandonar.
Ali, há registros de atividades organizacionais religiosas e vendas a
varejo em armazéns especializados.
Seu representante legal, o “pastor Roberto”, tem duas residências registradas no Diretório de Informação Comercial (Dicom),
uma em San Miguel e outra em Peñalolén – ambas na região metropolitana
de Santiago –, mas não há propriedades em seu nome na capital chilena. O
representante anterior, José Luis Godoy Flores, tem um perfil similar.
Jaime Mallea Illezca, o primeiro arquiteto da nova
catedral, disse ao Ciper que deixou de ser o responsável pela obra, mas
se recusou a explicar por quê. No local, há um cartaz no qual aparece o
nome do arquiteto Ricardo Alegría Barba, porém esse profissional também respondeu que não supervisionou a construção do edifício e declinou a esclarecer a situação.
Uma fonte do governo que esteve entre os detratores da Iurd quando
esta chegou ao Chile recorda que, à época, houve um debate sobre a
origem dos recursos da Pare de Sufrir: uns diziam que
não era importante, outros falavam em “lavagem física e espiritual do
dinheiro”. Esse ponto foi mencionado por duas fontes que pediram para
permanecer anônimas e destacaram que, diante da falta de fiscalização,
existe o risco de que certas organizações religiosas que movimentam
grandes quantidades de dinheiro recorram a más práticas, já que ninguém
pesquisa a origem de seus fundos nem seu destino. Lembraram também o que
ocorreu por décadas no Chile com a Colonia Dignidad, a seita fundada
pelo alemão Paul Schäfer que utilizou o benefício da isenção tributária para fazer todos os tipos de negócios ilícitos, incluindo tráfico de armas.
Os questionamentos dos métodos da Iurd existem há 25
anos, quando ela desembarcou no Chile: “Havia críticas teológicas que
seguem vigentes, como o uso de dinheiro de pessoas deslumbradas, o jogo
com os sentimentos e histerias coletivas que criam para em seguida pedir
doações. Quem assiste às cerimônias se torna cumpridor de qualquer
exigência que façam os pastores, ainda que tal exigência fira sua
dignidade. Há antecedentes suficientes para que se inicie uma
investigação judicial, mas as supostas penas do inferno freiam as
denúncias dos fiéis enganados”, adverte um especialista em organizações
religiosas que conhece bem o funcionamento da Iurd.
Assim se faz um “milagre”
Manhã de domingo, 22 de novembro. No interior do templo na rua Nataniel Cox, o bispo Francisco Couto relata aos fiéis que no dia anterior o fundador da Iurd, bispo Edir Macedo, falou, direto do Brasil, de uma mulher que apanhava “até sangrar” e era ameaçada de morte pelo marido. Por isso – disse –, ela vendeu todos os seus móveis e fez uma oferenda à Iurd.
Em troca, Deus fez com que seu marido se arrependesse de espancá-la. E o
bispo celebrou que essa senhora tenha recuperado o amor do homem que a
agredia e a ameaçava. Couto contou a história até esse
ponto naquele dia, pois o testemunho completo do que havia ocorrido com a
mulher brasileira estava reservado para o domingo seguinte, 29.
No domingo, 22 de novembro, não houve vídeos, a não ser um episódio que parecia fazer parte de um reality show caribenho. Quando Couto terminou de relatar o que havia dito Edir Macedo
no dia anterior, pediu que subisse ao palco uma mulher de menos de 30
anos, que carregava um bebê nos braços, acompanhada por um homem de
idade parecida, seu marido. Em seguida, solicitou que contassem aos
presentes sobre seu “sacrifício”.
Ela começou a contar sua história. Relatou que havia tentado se
matar, que sua vida estava muito vazia e que já não restava outro
caminho. Até que fez uma oferenda a Deus: colocou uma grande quantidade
de dinheiro em um envelope que entregou à Iurd para que levasse suas orações à Fogueira Sagrada de Israel.
O “pedido” que havia feito era que Deus afastasse seus pensamentos
ruins e também lhe arranjasse um marido. “Então, você é um produto dessa
oferenda!”, exclamou, quase gritando no palco, o bispo Couto, enquanto
apontava para o marido da jovem.
Nesse momento, o marido tomou a palavra e relatou que, depois que se
casaram, decidiram fazer a mesma oferenda da mulher brasileira agredida
pelo esposo: venderam sua mobília e entregaram o dinheiro à Iurd.
O homem contou que dormiam no chão e desenhavam ali a casa de seus
sonhos e os carros que queriam comprar. De alguma maneira que não
especificaram, Deus lhes deu esse e outros milagres, incluindo oito
propriedades, um veículo modelo 2016 e uma filha (haviam se submetido a
vários tratamentos de fertilidade sem resultado).
Dois sacrifícios para a Fogueira Santa em troca de
muitos milagres. A lição foi reforçada uma e outra vez: para ele, era
necessário dar tudo o que tinham, porque a Iurd disse que, quando se faz
um trato com Deus, se trata de um “tudo ou nada”.
Domingo, 29 de novembro. No templo da Nataniel Cox estão cerca de 400
pessoas. Na última fileira está sentada a senhora que vimos chegar com
as latas recolhidas da rua. Neste domingo, entretanto, ela não vem do
trabalho. Seu visual está impecável: a cor rosa de seu gorro combina com
o batom que aplicou aos lábios para a ocasião.
Entra o bispo Francisco Couto. Todos se levantam.
Desta vez, não há falas iniciais. Apagam-se as luzes e, na tela gigante
sobre o palco, é possível assistir ao testemunho da mulher brasileira
que era agredida pelo marido. Suas palavras são traduzidas para o
castelhano. Nas imagens, estão ela, seu esposo e um bispo da Iurd que os entrevistava.
Ela detalha as surras que levou, e o marido acena positivamente com a
cabeça quando o bispo pergunta se estava endemoniado. Também diz “sim”
quando lhe pergunta se sua vida mudou depois que a esposa vendeu os
móveis para juntar o dinheiro necessário ao “sacrifício”.
A mulher brasileira, então, retoma seu relato e diz que em determinado
momento decidiu que seu “sacrifício” deveria ser ainda maior. Para isso,
recolheu, em um só dia, centenas de latas nas ruas na tentativa de
conseguir mais R$ 300.
O vídeo chega ao fim. As luzes do templo se acendem ao mesmo tempo em que o bispo Couto grita “Graça a Deus!” e os fiéis fazem tremer o local com seus aplausos. A senhora das latas também bate palmas.
Nesse momento, Couto faz um anúncio. Mudando seu tom
habitual por outro que remete à intimidade, diz aos fiéis que “o
Espírito Santo” elegeu a Igreja Iurd do Chile – entre todas as outras da
América Latina – para representar o continente na Fogueira Santa, em
Israel. E que será ele mesmo a fazer essa importante viagem para levar
os “pedidos” daqueles que fizeram seu “sacrifício” ao mesmo lugar onde Gideão
realizou suas façanhas. Será cansativo, explica, demorará 24 horas
“entre viagens e períodos de espera em aeroportos, mas não importa”.
Se os planos da Iurd do Chile se concretizaram, Francisco Couto
viajou no domingo, 13 de dezembro, em um avião até Israel. De acordo
com ele, levaria os “pedidos” de todos os fiéis, entre os quais estava o
da senhora das latas. Ela saiu do templo e regressou caminhando à sua
casa. Quanto ao dinheiro dos “sacrifícios”, ninguém sabe onde foi
depositado.
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