Por Salvatore Cernuzio
Publicada hoje a Exortação apostólica pós-sinodal do Papa, que apresenta as reflexões dos dois Sínodos de 2014 e 2015
A Amoris Laetitia contém toda a beleza e a complexidade da família,
também nos seus detalhes mais cinzas, sendo assim uma monumental
Exortação apostólica pós-sinodal do Papa Francisco que marca a conclusão
do não fácil caminho de reflexão realizado nas duas assembleias dos
bispos do mundo.
Nove capítulos, mais de 300 parágrafos, 260 páginas, cerca de dois
anos para elaborá-la: no texto altamente esperado, publicado hoje, mas
que tem a data não aleatória de 19 de Março, Solenidade de São José,
ecoa os resultados dos relatórios finais dos Sínodos 2014 e 2015, bem
como os documentos e os ensinamentos de seus antecessores: João Paulo
II, em particular, com a sua Familiaris Consortio, Papa Paulo VI com a
histórica Humanae Vitae, o Papa Bento XVI com a Deus caritas est.
Há também algumas passagens fortes das catequeses sobre a família do
próprio Papa Francisco durante as Audiências das Quartas-Feiras,
preparatórias para acolher este documento que já promete ser como uma
das obras-primas do seu magistério. Não faltam as contribuições dos
fieis e das várias Conferências Episcopais do mundo, do Quênia, como da
Austrália ou da Coreia e as citações de personalidades significativas
como Martin Luther King, Erich Fromm, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, ou
até mesmo do filme A Festa de Babette com o qual o Papa explica o
conceito de “gratuidade”.
Tudo para demonstrar que para falar de família “não existem simples
receitas”, mas é necessário ampliar o olhar e adotar um discernimento
que, na medida do possível, reflita cada caso. Porque, escreve o Papa,
“nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser
resolvidas com intervenções do magistério”, mas principalmente com o
amor. A alegria do amor.
Abaixo está um resumo dos pontos-chaves da Exortação Apostólica do Santo Padre.
***
Premissa
A Exortação apostólica chama a atenção pela sua amplitude e
articulação. Está dividida em nove capítulos e mais de 300 parágrafos.
Tem início com sete parágrafos introdutórios que evidenciam a plena
consciência da complexidade do tema, que requer ser aprofundado.
Afirma-se que as intervenções dos Padres no Sínodo constituíram um
«precioso poliedro» (AL 4) que deve ser preservado. Neste sentido, o
Papa escreve que «nem todas as discussões doutrinais, morais ou
pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais».
Por conseguinte, para algumas questões «em cada país ou região, é
possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos
desafios locais. De facto,“as culturas são muito diferentes entre si e
cada princípio geral (…), se quiser ser observado e aplicado, precisa de
ser inculturado”» (AL 3). Este princípio de inculturação revela-se como
muito importante até no modo de articular e compreender os problemas,
modo esse que, sem entrar nas questões dogmáticas bem definidas pelo
Magistério da Igreja, não pode ser «globalizado».
Mas sobretudo o Papa afirma de imediato e com clareza que é
necessário sair da estéril contraposição entre a ânsia de mudança e a
aplicação pura e simples de normas abstratas. Escreve: «Os debates, que
têm lugar nos meios de comunicação ou em publicações e mesmo entre
ministros da Igreja, estendem-se desde o desejo desenfreado de mudar
tudo sem suficiente reflexão ou fundamentação até à atitude que pretende
resolver tudo através da aplicação de normas gerais ou deduzindo
conclusões excessivas de algumas reflexões teológicas» (AL 2).
Capítulo primeiro: “À luz da Palavra”
Enunciadas estas premissas, o Papa articula a sua reflexão a partir
das Sagradas Escrituras no primeiro capítulo, que se desenvolve como uma
meditação acerca do Salmo 128, característico da liturgia nupcial
hebraica, assim como da cristã. A Bíblia «aparece cheia de famílias,
gerações, histórias de amor e de crises familiares» (AL 8) e a partir
deste dado pode meditar-se como a família não é um ideal abstrato, mas
uma «tarefa “artesanal”» (AL 16) que se exprime com ternura (AL 28), mas
que se viu confrontada desde o início também pelo pecado, quando a
relação de amor se transformou em domínio (cf. AL 19). Então, a Palavra
de Deus «não se apresenta como uma sequência de teses abstratas, mas
como uma companheira de viagem, mesmo para as famílias que estão em
crise ou imersas nalguma tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho»
(AL 22).
Capítulo segundo: “A realidade e os desafios das famílias”
Partindo do terreno bíblico, o Papa considera no segundo capítulo a
situação atual das famílias, mantendo «os pés assentes na terra» (AL 6),
bebendo com abundância das Relações conclusivas dos dois Sínodo se
enfrentando numerosos desafios, desde o fenômeno migratório à negação
ideológica da diferença de sexo («ideologia de gênero»); da cultura do
provisório à mentalidade anti-natalidade e ao impacto das biotecnologias
no campo da procriação; da falta de habitação e de trabalho à
pornografia e ao abuso de menores; da atenção às pessoas com deficiência
ao respeito pelos idosos; da desconstrução jurídica da família à
violência para com as mulheres. O Papa insiste no carácter concreto, que
é um elemento fundamental da Exortação. E é este carácter concreto e
realista que estabelece uma diferença substancial entre «teorias» de
interpretação da realidade e «ideologias».
Citando a Familiaris consortio , Francisco afirma que «é
salutar prestar atenção à realidade concreta, porque “os pedidos e os
apelos do Espírito ressoam também nos acontecimentos da história”
através dos quais “a Igreja pode ser guiada para uma compreensão mais
profundado inexaurível mistério do matrimônio e da família”» (AL 31).
Sem escutar a realidade não é possível compreender nem as exigências do
presente nem os apelos do Espírito. O Papa nota que o individualismo
exacerbado torna hoje difícil a doação a uma outra pessoa de uma maneira
generosa (cf. AL 33). Eis um interessante retrato da situação: «Teme-se
a solidão, deseja-se um espaço de proteção e fidelidade mas, ao mesmo
tempo, cresce o medo de ficar encurralado numa relação que possa adiar a
satisfação das aspirações pessoais» (AL 34).
A humildade do realismo ajuda a não apresentar «um ideal teológico do
matrimônio demasiado abstrato, construído quase artificialmente,
distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias
tais como são» (AL 36). O idealismo não permite considerar o matrimônio
assim como é, ou seja, «um caminho dinâmico de crescimento e
realização». Por isso, também não se pode julgar que se possa apoiar as
famílias «com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e
morais, sem motivar a abertura à graça» (AL 37). Convidando a uma certa
“autocrítica” de uma apresentação não adequada da realidade matrimonial e
familiar, o Papa insiste na necessidade de dar espaço à formação da
consciência dos fiéis: «Somos chamados aformar as consciências, não a
pretender substituí-las» (AL37). Jesus propunha um ideal exigente, mas
«não perdia jamais a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a
samaritana ou a mulher adúltera» (AL 38).
Capítulo terceiro: “O olhar fixo em Jesus: a vocação da família”
O terceiro capítulo é dedicado a alguns elementos essenciais do
ensinamento da Igreja acerca do matrimônio e da família. É importante a
presença deste capítulo, porque ilustra de uma maneira sintética em 30
parágrafos a vocação à família de acordo com o Evangelho, assim como ela
foi recebida pela Igreja ao longo do tempo, sobretudo quanto ao tema da
indissolubilidade, da sacramentalidade do matrimônio, da transmissão da
vida e da educação dos filhos. Fazem-se inúmeras citações da Gaudium et spes do Vaticano II, daHumanae vitae de Paulo VI, da Familiaris consortio de João Paulo II.
O olhar é amplo e inclui também as «situações imperfeitas». Com efeito, lemos: «“O discernimento da presença das semina Verbi nas
outras culturas (cf. Ad gentes, 11) pode-se aplicar também à realidade
matrimonial e familiar. Para além do verdadeiro matrimônio natural, há
elementos positivos também nas formas matrimoniais doutras tradições
religiosas”, embora não faltem também as sombras» (AL 77). A reflexão
inclui ainda as «famílias feridas», a propósito das quais o Papa afirma –
citando a Relatio finalis do Sínodo de 2015 —«é preciso
lembrar sempre um princípio geral: “Saibam os pastores que, por amor à
verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris consortio ,
84). O grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, e podem
existir fatores que limitem a capacidade de decisão. Por isso, ao mesmo
tempo que se exprime com clareza adoutrina, há que evitar juízos que não
tenham em conta a complexidade das diferentes situações,e é preciso
estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua
condição» (AL 79).
Capítulo quarto: “O amor no matrimónio”
O quarto capítulo trata do amor no matrimônio e ilustra-o a partir do
“hino ao amor” de São Paulo de 1 Cor 13, 4-7. O capítulo é uma
verdadeira e autêntica exegese cuidadosa, precisa, inspirada e poética
do texto paulino. Poderemos dizer que se trata de uma coleção de
fragmentos de um discurso amoroso que cuida de descrever o amor humano
em termos absolutamente concretos. Surpreende-nos a capacidade de
introspeção psicológica evidenciada por esta exegese. O aprofundamento
psicológico chega ao mundo das emoções dos cônjuges – positivas e
negativas – e à dimensão erótica do amor.Este é um contributo
extremamente rico e precioso para a vida cristã dos cônjuges, que não
tinha até agora paralelo em anteriores documentos papais.
À sua maneira, este capítulo constitui um pequeno tratado no conjunto
de um desenvolvimento mais amplo, plenamente consciente do carácter
quotidiano do amor que se opõe a todos os idealismos: «não se deve
atirar para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que
reproduzir perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja,
porque o matrimônio como sinal implica “um processo dinâmico, que
avança gradualmente com a progressiva integração dos dons de Deus”» (AL
122). Mas, por outro lado, o Papa insiste de modo enérgico e firme no
facto de que «na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao
definitivo» (AL 123) precisamente no íntimo daquela «combinação
necessária de alegrias e fadigas, de tensões e repouso, de sofrimentos e
libertações, de satisfações e buscas, de aborrecimentos e prazeres» (Al
126) que é de facto o matrimônio.
O capítulo conclui-se com uma reflexão muito importante acerca da
«transformação do amor» uma vez que «o alongamento da vida provocou algo
que não era comum noutros tempos: a relação íntima e a mútua pertença
devem ser mantidas durante quatro, cinco ou seis décadas, e isto gera a
necessidade de renovar repetidas vezes a recíproca escolha» (AL 163). A
aparência física transforma-se e a atração amorosa não desaparece, mas
muda: com o tempo, o desejo sexual pode transformar-se em desejo de
intimidade e «cumplicidade». «Não é possível prometer que teremos os
mesmos sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projeto
comum estável, comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a
morte nos separe, e viver sempre uma rica intimidade» (AL 163).
Capítulo quinto: “O amor que se torna fecundo”
O quinto capítulo centra-se por completo na fecundidade e no carácter
gerador do amor. Fala-se de uma maneira espiritualmente e
psicologicamente profunda do acolher uma nova vida, da espera própria da
gravidez, do amor de mãe e de pai. Mas também da fecundidade alargada,
da adoção, do acolhimento do contributo das famílias para a promoção de
uma “cultura do encontro”, da vida na família em sentido amplo, com a
presença de tios, primos, parentes dos parentes, amigos. A Amoris laetitia
não toma em consideração a família «mononuclear», mas está bem
consciente da família como rede de relações alargadas. A própria mística
do sacramento do matrimônio tem um profundo carácter social (cf. AL
186). E no âmbito desta dimensão social, o Papa sublinha em particular
tanto o papel específico da relação entre jovens e idosos, como a
relação entre irmãos como aprendizagem de crescimento na relação com os
outros.
Capítulo sexto: “Algumas perspetivas pastorais”
No sexto capítulo, o Papa aborda algumas vias pastorais que orientam
para a edificação de famílias sólidas e fecundas de acordo com o plano
de Deus. Nesta parte, a Exortação recorre às Relações conclusivas dos
dois Sínodos e às catequeses do Papa Francisco e de João Paulo II.
Volta-se a sublinhar que as famílias são sujeito e não apenas objeto de
evangelização. O Papa observa que «os ministros ordenados carecem,
habitualmente, de formação adequada para tratar dos complexos problemas
atuais das famílias» (AL 202). Se, por um lado, é necessário melhorar a
formação psicoafetiva dos seminaristas e envolver mais a família na
formação para o ministério (cf. AL 203), por outro «pode ser útil também
a experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados» (AL
202).
Em seguida, o Papa desenvolve o tema da orientação dos noivos no
caminho de preparação para o matrimônio, do acompanhamento dos esposos
nos primeiros anos da vida matrimonial (incluindo o tema da paternidade
responsável), mas também em algumas situações complexas e, em
particular, nas crises, sabendo que «cada crise esconde uma boa notícia,
que é preciso saber escutar, afinando os ouvidos do coração» (AL 232).
São analisadas algumas causas de crise, entre elas uma maturação afetiva
retardada (cf. AL 239).
Além disso, fala-se também do acompanhamento das pessoas abandonadas,
separadas ou divorciadas e sublinha-se a importância da recente reforma
dos procedimentos para o reconhecimento dos casos de nulidade
matrimonial. Coloca-se em relevo o sofrimento dos filhos nas situações
de conflito e conclui-se: «O divórcio é um mal, e é muito preocupante o
aumento do número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa
pastoral mais importante relativamente às famílias é reforçar o amor e
ajudar a curar as feridas, para podermos impedir o avanço deste drama do
nosso tempo» (AL 246). Referem-se de seguida as situações dos
matrimônios mistos e daqueles com disparidade de culto, e a situação das
famílias que têm dentro de si pessoas com tendência homossexual,
insistindo no respeito para com elas e na recusa de qualquer
discriminação injusta e de todas das formas de agressão e violência. A
parte final do capítulo, «quando a morte crava o seu aguilhão», é de
grande valor pastoral, tocando o tema da perda das pessoas queridas e da
viuvez.
Capítulo sétimo: “Reforçar a educação dos filhos”
O sétimo capítulo é totalmente dedicado à educação dos filhos: a sua
formação ética, o valor da sanção como estímulo, o realismo paciente, a
educação sexual, a transmissão da fé e, mais em geral, a vida familiar
como contexto educativo. É interessante a sabedoria prática que
transparece em cada parágrafo e sobretudo a atenção à gradualidade e aos
pequenos passos que «possam ser compreendidos, aceites e apreciados»
(AL 271).
Há um parágrafo particularmente significativo e de um valor
pedagógico fundamental em que Francisco afirma com clareza que «a
obsessão (…) não é educativa; e também não é possível ter o controle de
todas as situações onde um filho poderá chegar a encontrar-se (…). Se um
progenitor está obcecado com saber onde está o seu filho e controlar
todos os seus movimentos, procurará apenas dominar o seu espaço. Mas,
desta forma, não o educará, não o reforçará, não o preparará para
enfrentar os desafios. O que interessa acima de tudo é gerar no filho,
com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de
preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia»
(AL 261).
A secção dedicada à educação sexual é notável, e intitula-se muito
expressivamente: «Sim à educação sexual». Sustenta-se a sua necessidade e
formula-se a interrogação de saber «se as nossas instituições
educativas assumiram este desafio (…) num tempo em que se tende a
banalizar e empobrecer a sexualidade». A educação sexual deve ser
realizada«no contexto duma educação para o amor, para a doação mútua»
(AL 280). É feita uma advertência em relação à expressão «sexo seguro»,
pois transmite«uma atitude negativa a respeito da finalidade procriadora
natural da sexualidade, como se um possível filho fosse um inimigo de
que é preciso proteger-se. Deste modo promove-se a agressividade
narcisista, em vez do acolhimento» (AL 283).
Capítulo oitavo: “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”
O capítulo oitavo representa um convite à misericórdia e ao
discernimento pastoral diante de situações que não correspondem
plenamente ao que o Senhor propõe. O Papa usa aqui três verbos muito
importantes: «acompanhar, discernir e integrar», os quais são
fundamentais para responder a situações de fragilidade, complexas ou
irregulares. Em seguida, apresenta a necessária gradualidade na
pastoral, a importância do discernimento, as normas e circunstâncias
atenuantes no discernimento pastoral e, por fim, aquela que é por ele
definida como a «lógica da misericórdia pastoral».
O oitavo capítulo é muito delicado. Na sua leitura deve recordar-se
que «muitas vezes, o trabalho da Igreja é semelhante ao de um hospital
de campanha» (AL 291). O Pontífice assume aqui aquilo que foi fruto da
reflexão do Sínodo acerca de temáticas controversas. Reforça-se o que é o
matrimônio cristão e acrescenta-se que «algumas formas de união
contradizem radicalmente este ideal, enquanto outras o realizam pelo
menos de forma parcial e analógica». Por conseguinte, «a Igreja não
deixa de valorizar os elementos construtivos nas situações que ainda não
correspondem ou já não correspondem à sua doutrina sobre o matrimônio»
(AL 292).
No que respeita ao «discernimento» acerca das situações
«irregulares», o Papa observa: «temos de evitar juízos que não tenham em
conta a complexidade das diversas situações e é necessário estar
atentos ao modo em que as pessoas vivem e sofrem por causa da sua
condição» (AL 296). E continua: «Trata-se de integrar a todos, deve-se
ajudar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na
comunidade eclesial, para que se sinta objeto duma misericórdia
“imerecida, incondicional e gratuita”»(AL 297). E ainda: «Os divorciados
que vivem numa nova união, por exemplo, podem encontrar-se em situações
muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou encerradas em
afirmações demasiado rígidas, sem deixar espaço para um adequado
discernimento pessoal e pastoral» (AL 298).
Nesta linha, acolhendo as observações de muitos Padres sinodais , o
Papa afirma que «os batizados que se divorciaram e voltaram a casar
civilmente devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as
diferentes formas possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo». «A
sua participação pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais
(…).Não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como
membros vivos da Igreja (…). Esta integração é necessária também para o
cuidado e a educação cristã dos seus filhos» (AL 299).
Mais em geral, o Papa profere uma afirmação extremamente importante
para que se compreenda a orientação e o sentido da Exortação: «Se se
tiver em conta a variedade inumerável de situações concretas (…) é
compreensível que se não devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma
nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos. É
possível apenas um novo encorajamento a um responsável discernimento
pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma
vez que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos”, as
consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre
os mesmos» (AL 300). O Papa desenvolve em profundidade as exigências e
características do caminho de acompanhamento e discernimento em diálogo
profundo entre fiéis e pastores. A este propósito, faz apelo à reflexão
da Igreja «sobre os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes» no
que respeita à imputabilidade das ações e, apoiando-se em S. Tomás de
Aquino, detém-se na relação entre «as normas e o discernimento»,
afirmando: «É verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca
se deve ignorar nem transcurar, mas, na sua formulação, não podem
abarcar absolutamente todas as situações particulares. Ao mesmo tempo é
preciso afirmar que, precisamente por esta razão, aquilo que faz parte
dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à
categoria de norma» (AL 304).
Na última secção do capítulo, «A lógica da misericórdia pastoral», o
Papa Francisco, para evitar equívocos, reafirma com vigor: «A
compreensão pelas situações excecionais não implica jamais esconder a
luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser
humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falimentos é o
esforço pastoral para consolidar os matrimônio se assim evitar as
ruturas» (AL 307). Mas o sentido abrangente do capítulo e do espírito
que o Papa Francisco pretende imprimir à pastoral da Igreja encontra um
resumo adequado nas palavras finais: «Convido os fiéis, que vivem
situações complexas, a aproximar-se com confiança para falar com os seus
pastores ou com leigos que vivem entregues ao Senhor. Nem sempre
encontrarão neles uma confirmação das próprias ideias ou desejos, mas
seguramente receberão uma luz que lhes permita compreender melhor o que
está a acontecer e poderão descobrir um caminho de amadurecimento
pessoal. E convido os pastores a escutar, com carinho e serenidade, com o
desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas e compreender o
seu ponto de vista, para ajudá-las a viver melhor e reconhecer o seu
lugar na Igreja» (AL 312). Acerca da «lógica da misericórdia pastoral», o
Papa Francisco afirma com força: «Às vezes custa-nos muito dar lugar,
na pastoral, ao amor incondicional de Deus. Pomos tantas condições à
misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real significado, e
esta é a pior maneira de aguar o Evangelho» (AL 311).
Capítulo nono: “Espiritualidade conjugal e familiar”
O nono capítulo é dedicado à espiritualidade conjugal e familiar,
«feita de milhares de gestos reais e concretos» (AL 315). Diz-se com
clareza que «aqueles que têm desejos espirituais profundos não devem
sentir que a família os afasta do crescimento na vida do Espírito, mas é
um percurso de que o Senhor Se serve para os levar às alturas da união
mística» (AL 316). Tudo, «os momentos de alegria, o descanso ou a festa,
e mesmo a sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena
da sua Ressurreição» (AL 317). Fala-se de seguida da oração à luz da
Páscoa, da espiritualidade do amor exclusivo e livre diante do desafio e
do desejo de envelhecer e gastar-se juntos, refletindo a fidelidade de
Deus (cf. AL 319). E, por fim, a espiritualidade «da solicitude, da
consolação e do estímulo». «Toda a vida da família é um “pastoreio”
misericordioso. Cada um, cuidadosamente, desenha e escreve na vida do
outro» (AL 322), escreve o Papa. «É uma experiência espiritual profunda
contemplar cada ente querido com os olhos de Deus e reconhecer Cristo
nele» (AL 323).
No parágrafo conclusivo,o Papa afirma: «Nenhuma família é uma
realidade perfeita e confeccionada duma vez para sempre, mas requer um
progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. (…). Todos somos
chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos
nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante.
Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! (…). Não percamos a
esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a
procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida» (AL 325).
A Exortação apostólica conclui-se com uma Oração à Sagrada Família (AL 325).
* * *
Como já se pode depreender a partir de um rápido exame dos seus conteúdos, a Exortação apostólica Amoris laetitia
pretende reafirmar com força não o «ideal» da família, mas a sua
realidade rica e complexa. Há nas suas páginas um olhar aberto,
profundamente positivo, que se nutre não de abstrações ou projeções
ideais, mas de uma atenção pastoral à realidade. O documento é uma
leitura densa de motivos espirituais e de sabedoria prática útil a cada
casal ou a pessoas que desejam construir uma família. Nota-se sobretudo
que foi fruto de uma experiência concreta com pessoas que sabem a partir
da experiência o que é a família e o viver juntos durante muitos anos. A
Exortação fala de fato a linguagem da experiência e da esperança.
“Amoris laetitia”: a beleza da família, de acordo com Francisco
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Só será aceito comentário que esteja de acordo com o artigo publicado.