Por Carlos J. Magliano Neto
“A
palavra grega traduzida como irmãos no referido texto (Mc 6:3) foi
‘adelphós’, que significa literalmente ‘nascidos do mesmo útero’, o que
destrói qualquer argumentação racional de que Maria não gerou outros
filhos e que os referidos eram primos ao invés de irmãos” (pág. 27)
Carecemos
de muita informação sobre o uso das palavras “primos” e “irmãos” no
Novo Testamento. Vamos a um detalhado estudo sobre as línguas da Bíblia:
A
Bíblia começou a ser escrita mais de 1000 anos antes de Cristo na
língua hebraica, pois esta era a língua falada na Palestina até o povo
de Deus sofrer o cativeiro de cinqüenta anos na Babilônia em 586 a.C.
Após o cativeiro, parte do povo que voltou para a sua terra começou a
falar o aramaico; a outra parte de judeus imigrou para o Egito onde
começou a falar o grego. Mas a Bíblia continuou a ser lida e copiada em
hebraico, sua língua original. Por volta do ano 300 antes de Cristo, o
grego havia se tornado a nova língua do comércio e invadiu o mundo
daquele tempo. Então, por volta do ano 250 antes de Cristo, os judeus
que estavam no Egito desde o fim do cativeiro já não sabiam mais o
hebraico e nem o aramaico, tendo dificuldades para ler a Sagrada
Escritura. Para resolver a questão, um grupo de setenta e dois sábios
judeus (seis de cada tribo de Israel) se reuniu em Alexandria (Egito) e
pegaram todo o Texto Sagrado escrito na esquecida língua hebraica (com
partes em aramaico) e o traduziram para o grego, formando assim a
chamada Bíblia dos Setenta ou Septuaginta.
Esta tradução grega tornou-se o referencial dos Apóstolos e dos
primeiros cristãos na confecção do Novo Testamento que também foi
escrito em grego.
Entendido
isso, vamos agora saber o que houve com a palavra irmão ao ser
traduzida do hebraico (língua original) para o grego (língua agora mais
usada).
Na língua hebraica a palavra irmão se escreve ’āh
e significa filhos dos mesmos pais, mas poderia significar também
outros parentes, porque não existe variedade de palavras hebraicas para
designar a parentela. Quando se traduziu a Sagrada Escritura para o
grego, o termo grego usado para traduzir ’āh (irmão ou parente em hebraico) foi αδέλφος
(lê-se adelphós), que é irmão em grego e significa exatamente:
“nascidos do mesmo útero”. Com esta tradução, αδέλφος recebeu também um
significado mais amplo do que apenas nascidos do mesmo útero, pois αδέλφος passou na tradução a ser ’āh (irmão ou parente).
Precisamos agora investigar até onde os semitas utilizavam αδέλφος para podermos estabelecer o grau de parentesco desses αδέλφοι (irmãos – lê-se adelphoi) com Jesus.
No
grego se designa com essa palavra especificamente o irmão carnal, ou
pelo menos o meio irmão. Mas existem exceções como um antigo documento
chamado Marco Aurélio 1,14,1; assim como numerosos textos de papiros
egípcios, onde, da mesma forma como na tradução grega do Antigo
Testamento, os filhos dos irmãos (sobrinhos) ou mesmo primos são
chamados de αδέλφος, ou
seja, irmão. Veja o exemplo de I Crônicas 23,21-22: “Filhos de Mooli:
Eleazar e Cis. Eleazar morreu sem ter filhos, mas somente filhas, que se
casaram com os filhos de Cis, seus αδέλφοι
(irmãos)”, o texto deveria ser: “...se casaram com os filhos de Cis,
seus primos”. Leia também Gn 13,8; Gn 31,22-23; Ex 2,11; Jz 9, 1-3; I Cr
15,1-5; I Cr 23,21-22; II Cr 36,10.
Apesar
dos autores do Novo Testamento terem tido a possibilidade de usar
termos específicos existentes no grego para designar a parentela como
ανεψιός (primo, lê-se anepsiós) ou συγγενης
(parente, lê-se sungenees), os utilizaram muito pouco. Isso por dois
motivos: eles tiveram como referência a tradução grega do Antigo
Testamento e nesta tradução αδέλφος engloba toda a parentela; e também
tendo eles tido a pobre língua hebraica como língua original, não se
importavam muito com a exatidão dos termos da língua grega. Isso
notamos, por exemplo, quando São Paulo escreve em grego: “Em seguida, o
Senhor apareceu a mais de quinhentos αδέλφοι
(irmãos) de uma vez” (1ª Cor 15,6). Com certeza São Paulo não dizia que
estes mais de quinhentos irmãos eram nascidos do mesmo útero, mas sim
usava αδέλφοι na sua amplitude maior.
Para
comparação temos o fato de que a palavra portuguesa saudade não tem
tradução em muitas línguas. Esta palavra quer dizer exatamente lembrança
triste do que ou de quem está distante. Então vamos ao exemplo: como o
inglês é uma das línguas onde não existe o termo exato para designar
saudade, se usam termos com outros significados, mas que ganham uma
amplitude para englobar saudade. Então se alguém escrevendo em inglês
quiser escrever saudade, esta pessoa utilizará (entre outras) a palavra
longing que primeiramente quer dizer: ânsia/desejo intenso de algo
inacessível no momento. Ao traduzir esse texto para o português onde se
procure ser fiel ao original (como foi o caso da Septuaginta) o tradutor
traduzirá longing com sua designação inicial, ou seja, ânsia/desejo,
apesar de existir na língua portuguesa o termo específico para designar
saudade. Deste modo, a tradução ânsia/desejo terá um alargamento onde se
englobará também saudade, do mesmo modo como αδέλφος passou a ter outros significados na tradução grega e, daí, no costume semítico.
Assim percebemos que nem sempre αδέλφος quer dizer filhos do mesmo útero como foi proposto.
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