Por Paulo Roberto Campos
A misericórdia de Deus é infinita, como o é também sua justiça. Estes dois atributos divinos não se excluem, mas se integram maravilhosamente numa perfeita aliança. Nesse sentido, o Sagrado Coração de Jesus é invocado na ladainha: “Coração de Jesus, receptáculo de justiça e de amor”.
A principal celebração da Santa Igreja em junho é a festividade do Sagrado Coração de Jesus, comemorado este ano no dia 3, na sexta-feira seguinte à Oitava de Corpus Christi. Por feliz coincidência, corresponde neste ano à primeira sexta-feira de junho. Mas todo o mês é dedicado de modo especial ao Sacratíssimo Coração, que transpassado pela lança de Longino jorrou sangue e água — símbolos do sangue eucarístico e da água batismal que regeneram as almas [quadro abaixo]. O Apóstolo São João presenciou essa pavorosa crueldade no alto do Calvário e dela prestou testemunho (Cfr. Jo 19, 33-37).
Com a dedicação do mês junho ao Sagrado Coração de Jesus, a Igreja visa honrá-lo e incentivar essa primordial devoção, a cujo respeito escreveu o Cardeal Pie: “O culto ao Sagrado Coração é a quintessência do cristianismo, o compêndio e sumário de toda a Religião”. Mas visa também promover atos de reparação pelos pecados dos homens, especialmente pelas ignomínias praticadas pelos ímpios, como aqueles que ultrajam a Sagrada Eucaristia. (vide quadro 1 no final)
Essencial devoção para os atuais e calamitosos dias
Uma das grandes revelações do infinito amor de Deus para com a
humanidade foi feita a Santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690),
religiosa do convento da Visitação de Santa Maria, em Paray-le-Monial
(vide Catolicismo junho/2003). Uma das mais célebres
afirmações de Nosso Senhor Jesus Cristo a essa freira visitandina,
“confidente do Sagrado Coração de Jesus”, está expressa nestas sublimes
palavras pronunciadas em 16 de junho de 1675:
“Eis aqui o Coração que tanto amou os homens, que não poupou nada
até esgotar-se e consumir-se, para testemunhar-lhes seu amor; e, por
reconhecimento, não recebe da maior parte deles senão ingratidões, por
suas irreverências, sacrilégios e pelas indiferenças e desprezos que têm
por Mim no Sacramento do amor. Mas o que Me é ainda mais penoso é que
corações que Me são consagrados agem assim.”(1)
Especialmente para a nossa época caótica, que se debate em meio à
gravíssima crise religiosa, moral e social, a devoção ao
misericordiosíssimo Coração se faz mais necessária do que nunca, pois
Deus não abandona a humanidade pecadora mesmo nas piores crises,
chamando-a constantemente à conversão. Ele oferece todos os meios para
que o pecador se arrependa, repare suas culpas e se salve eternamente.
Mas se formos ingratos e indiferentes, desprezando os preceitos
divinos e as graças concedidas misericordiosamente para nossa conversão,
sentiremos o poder de sua justiça, que, assim como a misericórdia, é
também divina. Como reza a ladainha do Sagrado Coração de Jesus: “Coração de Jesus, receptáculo de justiça e de amor, tende piedade de nós”. Ou, como numa outra ladainha, na qual ao mesmo tempo em que se invoca o “Coração de Jesus, cuja doçura se instila perenemente na alma fiel”, Ele também é invocado como “Coração de Jesus, inimigo de toda e qualquer culpa”, ou ainda como “Jesus, em cujo coração permanece escondido o dia da vingança contra os corações obstinados dos pecadores”.(2)
Perigo da visão equivocada sobre a misericórdia divina
Esta revista já publicou algumas matérias (vide edições de junho/1986, julho/1988, junho/1992, junho/1994 e junho/2003) sobre a extraordinária devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Na presente edição abordaremos um aspecto diferente: o verdadeiro conceito de misericórdia divina.Nos dias atuais, fala-se exaustivamente de misericórdia. Sobretudo neste ano, declarado “Ano Santo da Misericórdia” (ou “Jubileu Extraordinário da Misericórdia”) pelo Papa Francisco através da bula Misericordiae Vultus (O Rosto da Misericórdia).
Mais recentemente, com a divulgação da “Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris lætitia” (A alegria do amor), o tema da misericórdia foi ainda mais focalizado. Em suas 272 páginas, o documento pontifício — publicado no dia 8 de abril a propósito do último Sínodo da Família — emprega 46 vezes a palavra misericórdia!
Entretanto, não se pode ter uma visão equivocada, considerando Deus de modo unilateral, pois Ele é infinitamente misericordioso, mas também infinitamente justo.
Em nosso Divino Criador, evidentemente, não há contradição. Ele deseja a salvação de todos e, para isso, nos oferece misericordiosamente o Céu por toda a eternidade. Porém, condena o pecador impenitente; aquele que, recusando toda a bondade divina, se aferra ao pecado mortal. Este, se não se arrepender, permanecendo obstinado no pecado grave, será atingido pela divina justiça.
Pecou gravemente e não deseja ser condenado? — Não se desespere, pois há remédio. Com o coração contrito e humilhado e sinceramente arrependido, faça uma boa confissão com o firme propósito de não mais pecar. Nesse perdão — a absolvição dos pecados concedida pelo sacerdote — vemos o que realmente é misericórdia. Patenteia-se a beleza da clemência de Deus para com seus filhos e o extremo desejo que Ele tem em salvá-los.
Por isso, não há razão para desespero, porque mesmo temendo a justa punição por nossos pecados, devemos confiar e esperar a misericórdia do Divino Redentor, reservada especialmente àqueles que O temem. “Et misericordia eius a progenie in progenies timentibus eum” (A sua misericórdia se entende de geração em geração sobre aqueles que o temem), como está expresso na oração da Santíssima Virgem — o Magnificat — registrada por São Lucas (Cfr. Lc 1, 39-56). Aliás, Ela é o sublime canal que nos leva ao mar de misericórdia que é o Sagrado Coração de Jesus.
É nesse equilíbrio entre a confiança na misericórdia e o temor do castigo que a alma progride na virtude. São as duas “asas” de que a alma necessita para progredir, análogas às de um pássaro que precisa das suas para voar. Apenas confiar na misericórdia sem o temor de Deus seria abuso da divina misericórdia. Nesse sentido, prescreve o Livro do Eclesiástico “Não digas: A misericórdia do Senhor é grande, ele terá piedade da multidão dos meus pecados, pois piedade e cólera são nele igualmente rápidas, e o seu furor visa aos pecadores” (Ecl. 5, 6-7).
No Evangelho, o caso da “mulher adúltera”
Conforme a narrativa do Evangelho, no caso da mulher que os escribas e fariseus queriam apedrejar por prática de adultério [quadro acima], Nosso Senhor Jesus Cristo não disse a ela: “Mulher, pode ir embora”. Mas ordenou-lhe: “Vai e não peques mais” (Jo 8,11). Infelizmente, muitos comentam de modo estrábico essa passagem, dizendo apenas que Jesus não condenou a adúltera; omitindo que Ele a perdoou, mas lhe disse para não mais pecar.Somente alguém psicologicamente e moralmente estrábico afirmaria que misericórdia é sinônimo de tolerância para com o pecado ou qualquer forma de mal. Deus manifesta suprema misericórdia para com o pecador verdadeiramente arrependido — e, nessa situação, a ninguém falta a graça divina —, mas também manifesta sua justiça para com o pecador empedernido, que abusa de modo contumaz de sua misericórdia.
Justo castigo por abusar da misericórdia divina
Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787), Doutor da Igreja, Padroeiro dos Confessores e dos Moralistas, define perfeitamente essa questão ao afirmar: “Deus envia mais gente ao inferno por abusar de sua misericórdia, do que por obra de sua justiça.”É o tema que esse santo desenvolve ao tratar em um de seus sermões do abuso que o pecador faz da misericórdia, cujo trecho transcrevemos no final deste artigo. Ele afirma que o próprio demônio nos engana inspirando-nos o falso conceito de misericórdia, para que levemos uma vida pecaminosa, sem nos arrepender de nossas culpas nem confessá-las a um bom sacerdote.
O renomado jornalista italiano Sandro Magister, especializado em temas religiosos, publicou recentemente um interessante artigo intitulado Giubileo della misericordia, ma con i confessionali vuoti (Jubileu da misericórdia, mas com os confessionários vazios), no qual reproduz a carta de um sacerdote, que lhe escreveu contando a seguinte observação: neste “Ano Santo da Misericórdia” os confessionários estão vazios — como se a misericórdia dispensasse o pecador do sacramento da penitência (ou confissão). Entretanto, no “Ano Santo da Misericórdia” deveria ocorrer justamente o contrário: aproveitar a ocasião para pedir especial misericórdia ao Sagrado Coração de Jesus, acorrendo multidões aos confessionários. É o que não acontece… Os confessionários estão às moscas…
Evitemos qualquer forma de unilateralismo
Em seu livro Em Defesa da Ação Católica, Plinio Corrêa de Oliveira desenvolve o tema da justiça e da misericórdia, do perdão e do castigo divinos, recomendando não sermos unilaterais, vendo apenas um aspecto de Deus. O autor cita D. Antonio Joaquim de Melo (1791-1861), “um dos maiores Bispos que teve o Brasil”, que — corroborando a afirmação acima citada de Santo Afonso de Ligório —, dizia: “a Misericórdia de Deus tem mandado mais almas para o inferno do que sua Justiça.”. E o Prof. Plinio comenta: “Em outros termos, afirmava o grande Prelado que a esperança temerária de salvação perderá maior número de almas, do que o temor excessivo da Justiça de Deus. Do mesmo modo, é indiscutível que a excessiva benignidade na aplicação das penas, que ora se observa em muitas associações religiosas, e a inteira carência delas em certos setores, têm depauperado mais as fileiras dos filhos da luz, do que os atos de energia inconsiderados e talvez excessivos, eventualmente levados a cabo”.(3)A misericórdia de Deus não contradiz a sua justiça
Se Deus em sua infinita misericórdia não punisse os pecados cometidos, Ele seria injusto. Assim, o verdadeiro amor a Deus consiste em amá-lo e glorificá-lo tanto por sua misericórdia quanto por sua justiça. Do contrário, seria como se não desejássemos a punição devida aos pecados, às ingratidões, aos crimes, às blasfêmias etc. Seria como um pai que elogiasse seu filho por algum ato bom praticado, mas não o repreendesse devido a algum mal cometido. Donde o proverbio “Andam juntas em Deus a justiça e a misericórdia”. (vide quadro 2 no final)Em seus últimos momentos antes da agonia na Cruz, Nosso Senhor Jesus Cristo nos deu um supremo exemplo: perdoou o ladrão que se mostrou arrependido, mas não o ladrão obstinado em seus pecados [Quadro acima] “Misericórdia e ira estão sempre em Deus, grandemente misericordioso, porém capaz de cólera. Os seus castigos igualam sua misericórdia; ele julga o homem conforme as suas obras. O pecador não escapará em suas rapinas, e não será postergada a espera daquele que exerce a misericórdia” (Livro do Eclesiástico 16, 12-14).
Confirmando essa passagem da Sagrada Escritura e a fim de se evitar uma concepção equivocada de misericórdia, em uma revelação feita a Santa Brígida da Suécia (1303-1373) [Imagem acima] Nosso Senhor Jesus Cristo lamentou: “Todos creem e pregam que sou misericordioso, entretanto quase ninguém crê que eu seja um Juiz justo. Consideram-me um juiz que não tem equidade. De fato, um juiz seria iníquo se, ao lado da misericórdia, deixasse os ímpios sem castigo de forma que pudessem continuar oprimindo os justos. Contudo, Eu sou um Juiz justo e misericordioso e não deixarei que o menor pecado fique sem castigo, nem que o menor bem fique sem recompensa. Infiltrados na Santa Igreja, pessoas que pecam sem medo negam que eu sou justo.”(4)
Misericórdia para quem teme a Deus e não para quem abusa dela
Como referido acima, segue a transcrição de um trecho do sermão de Santo Afonso Maria de Ligório, considerado um dos maiores moralistas de todos os tempos. Com este trecho — que parafraseando Joseph de Maistre poder-se-ia intitular “la colère de l´amour” (a cólera do amor) —, encerramos estas considerações pedindo à Virgem Maria, Mater Misericordiae, que nos alcance as misericórdias do Sagrado Coração de Jesus, compreendendo bem a perfeita união entre a misericórdia e a justiça divinas.“Quando uma alma abusa da misericórdia divina, a misericórdia divina está bem próxima de a abandonar”
“Pode ser que haja, no meio de vós, meus irmãos, alguém que se encontre com a alma carregada de pecados e que — longe de pensar em se livrar deles pela confissão e penitência — não cessa de cometer novos pecados, se sobrecarregando ainda mais. Este, certamente, abusa da misericórdia divina; pois, a que fim nosso Deus tão bom deixa que este pecador viva senão para que ele se converta e, por consequência, escape da desgraça de perder sua alma?Ele merece as severas censuras que o Apóstolo dirigiu ao povo judeu impenitente: Porventura desprezas as riquezas da bondade, da paciência e da longanimidade de Deus? Ignoras que sua bondade te convida à penitência? Mas que na tua dureza e coração impenitente, acumulas para ti um tesouro de ira no dia da ira e da manifestação do justo juízo de Deus (Rom. II. 4,5).
Eu quero vos afastar, meus irmãos, desse funesto abuso, e vos preservar da desgraça de cair na morte eterna do inferno. A esse propósito, chamo vossa atenção para a seguinte verdade: Quando uma alma abusa da misericórdia divina, a misericórdia divina está bem próxima de a abandonar […].
Santo Agostinho observa que, para enganar os homens, o demônio emprega ora o desespero, ora a confiança.
Após o pecado, o demônio nos mostra o rigor da justiça de Deus para que desconfiemos de Sua misericórdia. Entretanto, antes do pecado, o demônio nos coloca diante dos olhos a grande misericórdia de Deus, a fim de que o receio dos castigos, devidos ao pecado, não nos impeça de satisfazer nossas paixões […].
Essa misericórdia sobre a qual vós contais para poder pecar, dizei-me, quem vo-la prometeu? — Não Deus, certamente, mas o demônio, obstinado em vos perder. Cuidado!, diz São João Crisóstomo, de dar ouvidos a este monstro infernal que vos promete a misericórdia celeste […].
‘Deus é cheio de misericórdia, eu pecarei e em seguida confessar-me-ei’. Eis aí a ilusão, ou antes, a armadilha que o demônio usa para arrastar tantas almas ao inferno![…].
Nosso Senhor, aparecendo um dia a Santa Brígida, queixou-se: ‘Eu sou justo e misericordioso, mas os pecadores não querem ver senão minha misericórdia’ (Ego sum justos et misericors; peccatores tantum misericordem me existimant – Rev. 1. I. c. 5). Não duvideis, diz São Basílio, que Deus é misericordioso, mas saibamos que Ele é também justo, e estejamos bem atentos para não considerar apenas uma metade de Deus. Uma vez que Deus é justo, é impossível que os ingratos escapem do castigo […]. Misericórdia! Misericórdia! Sim, mas para aquele que teme a Deus, e não para aquele que abusa da paciência divina!”.(5)
__________
Notas:
- Sainte Marguerite Marie, Sa vie écrite par elle-même, Edições Saint Paul, Paris, 1947, pp. 70-71. Imprimatur de M. P. Georgius Petit, Bispo de Verdun.
- Diarium Perpetuum Clericorum et Religiosorum, Typographia Pontificia in Instituto Pii IX, Roma, 1911.
- Plinio Corrêa de Oliveira, Em Defesa da Ação Católica, Artpress, 2ª edição, 1983, pág. 153.
- As Profecias e Revelações de Santa Brígida da Suécia, Livro 1, Capítulo 5.
- Sermons de S. Alphonse de Liguori, Analyses, commentaires, exposé du système de sa prédication, por R.P. Basile Braeckman, da Congregação do T. S. Redentor, Tomo Segundo. Jules de Meester-Imprimeur-Éditeur, Roulers, pp. 55-60).
_________________ QUADRO 1 _________________
“Festa especial para honrar meu Coração”
“Que se comungue
nesse dia e se faça reparação através de um pedido de perdão, a fim de
reparar as afrontas que Ele recebeu durante o tempo em que esteve
exposto nos altares”.
Estando diante do Santíssimo Sacramento um dia, dentro da oitava de Corpus Christi (em
junho de 1675) –– narra Santa Margarida Maria Alacoque, religiosa
visitandina e grande vidente, escolhida por Nosso Senhor para comunicar
ao mundo a devoção a seu Sagrado Coração ––, recebi de meu Deus enormes
graças de seu amor. E sentindo-me tocada pelo desejo de Lhe retribuir
algo, de Lhe pagar amor com amor, disse-me Ele: “Tu não Me podes conceder maior retribuição do que fazendo o que já tantas vezes te pedi”. Então, mostrando-me seu divino Coração: “Eis
o Coração que tanto amou os homens, que nada poupou, até esgotar-se e
se consumir para lhes testemunhar seu amor; e como recompensa não recebo
da maior parte deles senão ingratidões, por suas irreverências e seus
sacrilégios, e por friezas e desprezos que têm para comigo neste
Sacramento de Amor. Mas o que Me é ainda mais sensível é que são os
corações que Me são consagrados que se comportam assim. É por isto que
te peço que a primeira sexta-feira depois da oitava de Corpus Christi
seja dedicada a uma festa especial para honrar meu Coração, que se
comungue nesse dia e se faça reparação através de um pedido de perdão, a
fim de reparar as afrontas que Ele recebeu durante o tempo em que
esteve exposto nos altares. Eu te prometo também que meu Coração se
dilatará para derramar com abundância os efeitos de seu divino amor
sobre aqueles que Lhe dispensarem esta honra e se empenharem para que
ela Lhe seja prestada”.Confidente do Salvador e depositária de suas expressas intenções sobre o dia e a finalidade a que o Céu queria ver destinada a nova festa, Santa Margarida Maria ficou realmente encarregada de promulgá-la e dirigir sua celebração no mundo inteiro.
Para conseguir o resultado que ultrapassava as forças pessoais da humilde religiosa, o Senhor havia aproximado misteriosamente de Santa Margarida Maria um dos mais santos religiosos que possuía então a Companhia de Jesus, o Revmo. Pe. Cláudio de la Colombière. Ele reconheceu a santidade das vias pelas quais o Divino Espírito conduzia a santa e se fez o apóstolo devotado do Sagrado Coração, em Paray-Ie-Monial primeiramente e até na Inglaterra, onde ele mereceu o glorioso título de confessor da fé, nos rigores das prisões protestantes. Esse fervoroso discípulo do Coração do Homem-Deus morreu em 1682, esgotado por trabalhos e sofrimentos. Mas, na ocasião, a Companhia de Jesus inteira herdou seu zelo em propagar a devoção ao Sagrado Coração.
A aprovação formal da Sede Apostólica a essa devoção não deveria tardar muito em relação ao empenho já manifestado pela piedade católica quanto ao divino Coração. Roma havia já concedido numerosas indulgências às práticas privadas e erigido mediante breves pontifícios inúmeras confrarias quando, em 1765, Clemente XIII, cedendo às instâncias dos Bispos da Polônia e da Arquiconfraria Romana do Sagrado Coração, emitiu o primeiro decreto pontifical em favor da festa do Coração de Jesus, aprovando para comemorá-la uma Missa e um Ofício. Concessões locais estenderam pouco a pouco este primeiro favor a outras circunscrições eclesiásticas, até que enfim, no dia 23 de agosto de 1856, Pio IX, de gloriosa memória, solicitado por todo o Episcopado francês, emitiu o decreto que inseria no calendário litúrgico a festa do Sagrado Coração e ordenava a sua celebração à Igreja universal. Trinta e três anos mais tarde, Leão XIII elevava a rito de primeira classe a solenidade que seu predecessor havia estabelecido.
(D. Prosper Guéranger, L’Année Liturgique – Le temps après la Pentecôte, Maison Alfred Mame et Fils, Tours, 1922, quinzième éd., Tome 1, excertos das pp. 540–545).
_________________ QUADRO 2 _________________
“Impossibilidade de ser misericordioso sem ser justo”
“Sem dúvida Deus é misericordioso, mas é também justo. Queriam os pecadores que Deus fosse misericordioso sem ser justo; mas isso é impossível. Ora, se Deus perdoasse sempre e nunca castigasse, faltaria à justiça. Vem a propósito a observação do Padre-Mestre de Ávila: ‘Se Deus, diz ele, sofresse que se abusasse da sua misericórdia, para mais livremente O ultrajar, tal paciência não seria bondade, mas sim falta de justiça’. Deus tem de castigar os ingratos: suporta-os até certo ponto, depois castiga-os. [...]“’Não vos enganeis: de Deus não se zomba’ (Gal. 6, 7). Seria, com efeito, escarnecer de Deus querer continuar a ofendê-lo sempre, e esperar contudo possuí-lo no Paraíso. ‘Colherá cada um o que tiver semeado’ (ibid. 8). Quem semeia boas obras, colherá recompensas; quem semeia pecados, colherá castigos. ‘É abominável a esperança deles’ (Job 11, 20), está escrito em Job; sim, a esperança dos que pecam porque Deus perdoa é abominável diante de Deus. É que esta mesma esperança atrai sobre a cabeça deles um castigo mais pronto, como a audácia de um escravo a quem a bondade do seu senhor levasse a faltar-lhe o respeito”.
(Santo Afonso de Ligório, O caminho da Salvação e da Perfeição, trad. De Mons. M. Marinho, Tipogr. Fonseca, Ltda., Editora, Porto, 1948, p. 26).
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