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Por Tânia da Silva Mayer*
O misto de provas inexistentes e traição invejosa condenou Jesus à perversidade da cruz.
A cruz é epifania do amor que supera a morte e sobrevive ao nada. |
Jesus passou pela história fazendo o
bem. E isso é algo que não podemos negar. Suas palavras e suas atitudes,
todas proclamadoras do Reino de justiça e paz, inauguraram um tempo
novo, no qual os filhos e filhas de Deus, nas suas singulares
existências, se relacionam com fraternidade. Tal fraternidade é já
experimentada na relação de Jesus com as pessoas, sobretudo com os que
se encontravam com a vida ameaçada. No entanto, o anúncio da proximidade
de Deus, no advento do seu Reino, parece traçar o horizonte da cruz na
qual Jesus iria morrer. Sua liberdade de ser para Deus e para o próximo,
à medida que anunciava o Reino, denunciava uma religiosidade
despreocupada com as vítimas dos sistemas, religioso, político e
econômico.
O misto de provas inexistentes e traição invejosa condenou Jesus à
perversidade da cruz. E numa morte violenta, entregou sua vida num
acontecimento de amor capaz de derrubar as armas e as cruzes que
violentavam os inocentes da história. A cruz de Jesus é um acontecimento
de revelação. Revelação do amor que é mais forte que a morte; revelação
da maldade que habita o coração dos homens. A maldade dos homens
revelou ao mundo que o Filho de Deus é o maldito, aquele que foi feito
maldição por nós, conforme testemunhou Paulo aos Gálatas: “Cristo pagou
para nos libertar da maldição da lei, tornando-se ele mesmo maldição por
nós”[1].
No entanto, a cruz é epifania do amor que supera a morte e sobrevive
ao nada. Ela é a nítida manifestação, aos olhos dos puros de coração, de
que não há lugar para a violência, para a indiferença e para a
exclusão, no Reino anunciado por Jesus. A cruz revela aos puros de
coração a verdade obscurecida, mas não derrotada, pela tragédia da
morte. Isso está claro na profissão de fé, adiantada, do centurião
romano, no Evangelho de Marcos. Ele que não esteve com Jesus e não ouviu
as suas palavras, compreendeu o mistério da fé que orientaria o
seguimento dos cristãos e das cristãs ao longo da história: o homem
Jesus crucificado é o Filho de Deus.
O olhar sensível para o corpo crucificado é o que faz o centurião
afirmar que o morto na cruz é o Filho de Deus, tal qual Paulo que ousa
dizer que ele tornou-se maldição por nós. O acontecimento da cruz,
enquanto tragédia e violência contra Jesus é proclamação de que a vida
deste homem é importante para Deus. E é essa importância que permite a
fé afirmar ao mundo que a cruz não é loucura e nem escândalo, pois os
que creem a reconhecem como sabedoria de Deus. Precisamente, a cruz é
sabedoria de Deus, pois ela é o rompimento com os esquemas que vitimam
os inocentes e com as cruzes que assassinam os que têm o seu direito de
viver roubado. Por vezes, o acontecimento da cruz é estendido àqueles e
àquelas que têm suas vidas negadas pelas injustiças sociais, religiosas,
econômicas, sexuais, e o horizonte de vida plena e abundante, que
irrompe do amor mais forte que a morte, é confrontado com dramática da
história de cada pessoa, nem sempre feita de manhãs de ressurreição.
O teólogo espanhol, Jon Sobrino, bem compreendeu que os pobres e
excluídos são sacramento de Deus e do seu Filho Jesus que foi
crucificado pela maldade dos homens. Para ele, uma teologia que pretende
ser a inteligência da fé deve ser também a inteligência do amor e isso
significa assumir a misericórdia como princípio para descer da cruz os
povos crucificados. Nesse sentido, a teologia deve preocupar-se com os
pobres crucificados com Cristo pelas injustiças dos homens, seja no
campo social, econômico, político, moral e sexual.
É impossível negar o fato de que muitas pessoas são expostas à
injúrias, violências físicas e outras tantas violências, bem como têm
suas existências elevadas ao status de “anormais” pelo motivo de
divergirem da heteronormatividade da cultura e das religiões. Hoje, no
Brasil, uma pessoa LGBTI é morta a cada 28 horas por sua condição
sexual. Os crimes por homofobia são motivados desde o ódio e aversão
pessoal a um sistema de crenças socioculturais que deslegitimam as
sexualidades variantes da norma. Em menos de dez dias, dois casos de
assassinato ganharam relevância nas redes sociais. A respeito de ambos,
suspeita-se que a causa seja homofobia. Certamente, a homofobia tem
condenado à cruz dezena de pessoas LGBTIs. O que poderíamos dizer,
também, a respeito da violência contra a mulher? As mulheres têm sido
vítimas constantes de um patriarcalismo machista que as rebaixa como um
gênero de segunda categoria. São violentadas todos os dias. Os índices
revelam os números elevados de casos de estupros diários. Novamente, as
redes sociais têm divulgado esses casos absurdos, quase que
periodicamente. Talvez as mulheres, sobretudo as pobres, sejam as que
mais são crucificadas ao longo da vida.
Uma teologia sensível à cruz de Cristo e à dramática da história
humana contemplará o corpo do homem Jesus crucificado nos corpos
violentados da história, nas pessoas que sofrem e têm suas existências
negadas ou interrompidas por causa de sua orientação sexual, do sexo e
gênero, por causa da cor da pele, pelos números de sua conta bancária,
pelo seu credo e religião, etc. Como Paulo que, ao se dirigir aos
Colossenses, afirma completar em sua carne os sofrimentos que faltam a
Cristo, podemos afirmar, muito sensivelmente, que muitas pessoas
completam em seus corpos, ao longo da vida, os sofrimentos de Cristo,
como solidariedade a ele na sua Paixão. Oxalá despertemos para tempos
novos, em que o frescor da Ressurreição sopre leve no rosto dos que
tombaram pelo caminho, carregando o lenho das suas cruzes.
[1] Gl 3,13.
*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É
editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da
Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.
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