[unisinos]
"Alguns colegas clérigos soporíferos, desde sempre, foram objeto de
crítica (muitas vezes fundamentada) sobre a sua capacidade de oferecer
longamente o que não sabem dar em profundidade, a ponto de criar uma
impiedosa e às vezes estereotipada antologia de ironias sobre a pregação
eclesiástica."
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 17-07-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Era um domingo à noite, e, no terceiro andar de uma casa de Trôade – cidade portuária da atual costa turca, assim rebatizada em relação ao primigênio topônimo de Antigonia e, depois, de Alexandria pela sua proximidade com a Troia homérica – o apóstolo Paulo
tinha celebrado a eucaristia ("partir do pão") e estava proferindo a
sua homilia. Porém, ele tinha se empolgado e, como acontece não
raramente com os pregadores, continuava falando, sem se dar conta de que
já era meia-noite.
O evangelista Lucas, que, na sua segunda obra, os Atos dos Apóstolos (20, 7-12), conta o episódio, não hesita em ressaltar que Paulo "prolongou o discurso" e continuava falando incansavelmente, apesar de as pálpebras dos ouvintes começarem a se abaixar.
De fato, um rapaz chamado Êutico, sentado na janela
daquela sala lotada, tinha caído em um sono tão profundo a ponto de cair
ruidosamente como um corpo morto na rua abaixo.
O apóstolo providenciará trazê-lo ainda vivo junto aos presentes
aterrorizados e, como se nada tivesse acontecido, retomará o seu sermão
fluvial até o amanhecer.
É a partir desse episódio que, em uma data não especificada do século XVIII, o pastor anglicano Jonathan Swift teceu o seu Sermon upon sleeping in Church. Não, não é há homonímia. Quem profere essa pregação é justamente o autor das Viagens de Gulliver, nascido em 1667 em Dublin, onde, em 1713, tinha se tornado decano da Catedral Anglicana de St. Patrick.
É conhecia a ironia mordaz desse grande autor, capaz de usar os
temperos literários mais picantes, até chegar ao sarcasmo, como acontece
no seu terrível panfleto que contém uma modesta proposta para evitar
que os filhos dos irlandeses indigentes sejam um fardo para os pais ou
para o país, fazendo deles um beneficio para todos (publicado pela
editora Marsilio em 2015). Para quem não sabe, a proposta levantada por Swift
era a de colocar à la carte da gastronomia as tenras carnes dos
recém-nascidos... Naturalmente, trata-se de um paradoxo satírico-moral,
mas é óbvio também o quão quente era o tom desse pregador eclesiástico e
civil.
Afinal, mesmo aquela aparente magia fantástica que são as Viagens de Gulliver,
oferecidos em leitura sem remorso aos jovens, era, na realidade, uma
sequência de navalhadas contra vícios e mesquinhezas humanas de todos os
tipos, até chegar à árdua alegoria final em que se exalta a virtuosa
simplicidade dos cavalos Houyhnhnm em relação à nauseante brutalidade dos Yahoo, as feras humanas (os inventores do homônimo site estadunidense sabiam disso?).
Mas voltemos ao sermão do nosso pastor. Ele tem logo preparada uma
aplicação direta ao seu auditório em relação ao fato mencionado de Trôade:
"O incidente que ocorreu com aquele jovem não bastou para desencorajar
os pósteros. Mas, como os pregadores de hoje – embora sejam capazes de
superar São Paulo na arte de adormentar as pessoas –
ficam muito abaixo dele na realização de milagres, as pessoas ficaram
tão prudentes a ponto de escolherem lugares e posturas mais seguras e
mais convenientes para os seus próprios repousos, sem perigos
pessoais...".
Na verdade, essa chicotada contra os colegas soporíferos – que, desde
sempre, foram objeto de crítica (muitas vezes fundamentada) sobre a sua
capacidade de oferecer longamente o que não sabem dar em profundidade, a
ponto de criar uma impiedosa e às vezes estereotipada antologia de
ironias sobre a pregação eclesiástica – amplia o alvo e também cai sobre
o auditório secular e atinge o baixo ventre da indiferença.
Como observa Adriano Zanacchi, especialista em comunicação e editor da edição italiana da pregação de Swift,
o autor "se irrita sobretudo com aqueles que usavam todos os tipos de
desculpas para não participar do culto dominical ou antepunham o cuidado
com os negócios ao da alma; e com aqueles que consideravam inteligente
ficar em casa aos domingos, não só por preguiça ou para se renderem à
cobiça e ao ócio, mas também por um radical desprezo em relação à
religião".
E ainda sobre sermões, propomos um dos últimos testemunhos (Ultime testimonianze) de um dos maiores teólogos do século XX, Karl Barth,
que morreu em 1968. Ele é dedicado a um gênero em particular, o das
"pregações católicas e protestantes pelo rádio". Impedido pela saúde
fraca, o teólogo, que tinha sido pároco evangélico-reformado, ouvia aos
domingos de manhã as duas pregações transmitidas pela Rádio da Suíça Alemã, uma proferida por um pastor, e a outra, por um sacerdote católico.
Assim, nasceram algumas reflexões que são marcadas por considerações bem distantes das chicotadas de Swift. Acima de tudo, exalta-se o franco ecumenismo que permeia esses discursos e que exorciza os desvios apologéticos do passado.
Disse de modo claro, não há mais aquele pároco católico que enunciava
"o perigo maçônico ou comunista ou, pior, protestante", e não se
encontra mais um pastor protestante capaz de suspeitar que, em Roma, na
realidade, está instalado o astuto poder de Satanás.
Barth sugere aos pregadores duas "proximidades"
necessárias para elaborar um sermão ou uma homilia genuína: por um lado,
ele recomenda a fundamentação no texto bíblico, evitando as divagações
psico-sociológico-existenciais; por outro, porém, propõe a indispensável
conexão com a vida dos fiéis, evitando decolar para horizontes
pseudomísticos inconsistentes (as parábolas de Jesus com a sua sólida terrenicidade são, a esse respeito, um emblema).
Mas, curiosamente, o teólogo protestante também revela o fascínio que
exerce sobre ele o fervor católico pós-conciliar alimentado pelo
retorno à Bíblia com um entusiasmo de neófitos, já superior em relação ao hábito um pouco flácido da codificada tradição bíblica protestante.
Além disso, ele manifesta o seu interesse pela afirmação do próprio Concílio Vaticano II
que une na liturgia as duas mesas, a da Palavra divina proclamada e a
do pão e do vinho eucarístico, e convida a sua comunidade
evangélico-reformada a integrar à pregação no culto dominical também a
Santa Ceia: "Não nos tornaríamos, desse modo tão compreensivo, 'Igreja
da Palavra', da Palavra que já não se faz apenas discurso, mas também
carne?".
Dizíamos que essas notas sobre a pregação estão inseridas ao lado de
outros "testemunhos últimos" do grande teólogo. Pois bem, gostaríamos de
convidar a ler (ou melhor, escutar) a deliciosa entrevista radiofônica
dedicada a Mozart, curiosamente concedida por ele no dialeto da Basileia.
Ao musicista de Salzburgo, Barth já
tinha reservado mais de uma anotação e dirigido até uma carta,
convencido – como afirmava com uma intuição fictício-teológica – de que,
na liturgia do paraíso, certamente se usa apenas música de Bach, mas os anjos e os santos, ao voltarem para as suas celas celestiais, colocam apenas Mozart nos seus toca-discos!
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