Publicamos hoje quatro clichês, dois quais dois reproduzem obras de arte do séc. XV, e os outros dois obras de nossos dias.
Os
dois quadros do séc. XV são da autoria de Giovanni da Fiesole, o famoso
Fra Angélico, e representam respectivamente a Anunciação de Nossa
Senhora, e S. Domingos em oração.
O
trabalho em metal é da autoria do artista H. Breucker, e também tem por
tema a Anunciação. A escultura de A. Wider, outro artista contemporâneo,
representa São Bento, o Patriarca dos Monges do Ocidente.
* * *
Já que nossa secção é eminentemente comparativa, entremos em matéria comparando as duas Anunciações.
A
cena famosa da aparição do Arcanjo S. Gabriel a Nossa Senhora
constituiu para a humanidade uma hora de graça. Abriu-se o Céu que a
culpa de Adão havia cerrado, a dele baixou um espírito de luz e pureza,
trazendo consigo uma mensagem de reconciliação e de paz. Essa mensagem
se dirigia à criatura mais formosa, mais nobre, mais cândida e mais
benigna que nascera da estirpe de Adão. Postas em presença as duas
Pessoas, o diálogo se estabelece. Conhecemos pelo Evangelho qual foi a
elevação e a simplicidade inefável das palavras então pronunciadas.
Tratando de tal tema, a tarefa do artista consiste em exprimir nas
fisionomias, nas atitudes, nos gestos, no ambiente, nas cores, nas
formas, os valores morais do incomparável acontecimento.
Se
tivéssemos impressão a cores, nossos leitores poderiam sentir melhor
quanto Giovanni da Fiesole foi feliz neste objetivo. A nobreza própria à
natureza angélica, sua fortaleza leve e toda espiritual, sua
inteligência e pureza, tudo enfim se espelha admiravelmente na figura
altamente expressiva de S. Gabriel. Nossa Senhora é menos etérea, menos
leve, menos impalpável diríamos quase. E com razão, pois é criatura
humana. Entretanto, um que de angélico se nota em toda a compostura da
Rainha dos Anjos. E sua fisionomia excede em espiritualidade, nobreza e
candura a do próprio emissário celeste. Descrito assim cada um dos
personagens, consideremos a atitude de um e outro. O Anjo é superior a
Nossa Senhora por natureza. Entretanto a Virgem é superior ao Anjo por
sua santidade, e por sua incomparável vocação de Mãe de Deus. Daí a alta
dignidade que ambos – a Virgem e a Anjo – exprimem, e também a
recíproca veneração com que se falam. Mas esta atitude tem ainda outra
razão mais profunda. Invisível, Deus entretanto manifesta Sua presença
na luz sobrenatural que parece irradiar de ambos os personagens e
comunicar o esplender de uma alegria pura, tranquila, virginal, a toda a
natureza. Sente-se quase a temperatura suavíssima, a brisa levíssima e
aromática, a alegria que perpassa em toda a atmosfera. Como pintar
melhor uma hora de graça? Com um senso profundo das coisas, Fra Angélico
soube encontrar as linhas e cores necessárias para exprimir todo o
conteúdo teológico e moral do episódio evangélico mil vezes famoso. Seu
quadro é, porém, mais do que isto: vale por uma pregação, pois forma,
eleva, anima para o bem, quem o contempla.
Antítese
berrante de tudo isto é a Anunciação moderna. Se um débil mental ou um
doente com muita febre se pusesse a divagar sobre a Anunciação,
concebê-la-ia talvez assim. Extravagância suma, carência dos valores
mais rudimentares, de qualquer expressão já não diremos elevada ou
sobrenatural, mas simplesmente equilibrada e sadia, tudo enfim se
conjuga para fazer da obra moderna a antítese brutal chocante do quadro
do século XV. Este é uma maravilha de espiritualidade e de fé. A outra é
produto de uma mentalidade que não sabe ver senão a matéria, de uma
psicologia fechada ao sobrenatural, de um temperamento que se compraz
plenamente em horizontes sem beleza, sem nobreza, sem nada daquilo que
para a alma é luz, oxigênio, vida, esperança de eternidade.
Em
sua alocução de 24 de maio de 1953, o Santo Padre define o chamado
espírito moderno como “o pensamento materialista transposto na ação”. A
arte de que temos aqui um espécime é o pensamento materialista
transposto na arte.
* * *
Consideremos
agora o quadro que representa S. Domingos. Os elementos espirituais
nele transparecem admiravelmente. É mais um retrato da alma que do
corpo. O esforço do pensamento, isto é a aplicação na leitura, a tensão
serena mas forte do trabalho intelectual, a expressão fisionômica
própria a quem está entendendo e nisto se compraz, tudo enfim se exprime
aqui com uma discrição, uma intensidade, uma veracidade sem par. E há
ainda outros traços de alma que transparecem: o ânimo e o viço do
espírito juvenil, o equilíbrio, a candura, a piedade e a temperança do
perfeito religioso. Em face desta outra obra prima do séc. XV,
consideremos a estátua no séc. XX. Por certo tal comparação mostra
diferenças consideráveis, decorrentes de varias fatores: a) os recursos
da pintura e da escultura são diversos; b) os talentos e o temperamento
dos artistas são diversos também; c) por fim, o espírito dos dois
personagens, S. Domingos e S. Bento, também não é o mesmo. Mas há
choque, oposição, violento contraste? De modo nenhum. Merece a escultura
de A. Wider as censuras que fizemos à obra de H. Breucker? Não.
Pelo
contrário, aquela estátua exprime com muita propriedade, precisão e
força a idéia que se pode ter do Patriarca dos Monges do Ocidente:
modelo de gravidade, de austeridade, de tranqüilidade varonil, de
profundo recolhimento, de alta sabedoria. Ninguém pode negar que esta
escultura corresponde satisfatoriamente às exigências de uma arte
autentica e de uma piedade ortodoxa e equilibrada.
* * *
Somos
contra o “moderno”? Por esta palavra se entende o que é, não só
próprio, mas típico de nossa época, algo que: a) lhe é inerente; b) a
diferencia do passado; c) a distinguirá do futuro. Ora, em matéria de
arte – e em muitas outras – uma propaganda hábil, pertinaz, onímoda, vai
inculcando cada vez mais certo espírito de materialismo, de
sensualidade, de extravagância delirante. O estilo animado por este
espírito preside à construção ou reconstrução de cidades inteiras, marca
em todas as partes do mundo o aspecto externo e a decoração interior da
maioria dos edifícios novos de importância grande, media ou até
pequena, expõe suas produções em certames de arte universais, etc.,
etc.. Contra ele, o “homem da rua” contemporâneo reage instintivamente,
mas levemente. De sorte que esse espírito ou já é ou está a caminho de
ser o estilo de nosso século, por onde este se diferencia dos anteriores
e queira Deus dos posteriores. Se a isto e só a isto se chama moderno,
se ser moderno é aceitar a marca, o estigma do materialismo, não só do
materialismo cru, mas do materialismo “moderado” com todas as suas
colorações e despistamentos, então é inegável que somos antimodernos
porque somos católicos.
Mas se se
toma em conta que, à margem dessa péssima corrente nosso século conta
com artistas animados por outro espírito, e se entende que é moderno
tudo quanto é contemporâneo qualquer que seja sua inspiração, não
podemos ser antimodernos porque não somos idiotas. Pois outro
qualificativo não mereceria quem no oceano da produção cultural do séc.
XX julgasse preconcebidamente mau, indistintamente mau, o que é
engendrado pelos filhos da luz, e as obras em que se nota a influência
do espírito neopagão, isto é, do espírito das trevas.
* * *
Destas
duas acepções de “moderno”, qual a mais verdadeira? É um problema de
palavras. Todavia uma coisa é positiva: se o estilo materialista não se
deve chamar “moderno”, deve-se-lhe arranjar outro nome, pois ainda não
apareceu. E este nome deverá levar em conta que a torrente “moderna”
contém não só os ingredientes materialistas de que falamos mas ainda os
elementos gnósticos e satanistas de que nosso brilhante colaborador
Cunha Alvarenga tão bem tem tratado.
Dar nome a esta corrente é tarefa interessante, para a qual convidamos a sagacidade de nossos leitores.
Entretanto,
o mais urgente não é isto. O “homem da rua” do séc. XX ainda não aderiu
ao “moderno” no fundo de sua alma. Preservemo-lo desta desgraça. Assim
seremos “modernos” no sentido de que agiremos em função dos problemas e
perigos de nosso século.
É o que
nesta folha procuramos fazer, em meio ao estrépito de muitos aplausos, e
ao rosnar surdo e furioso de alguns ódios, mas certos, em qualquer
caso, de cumprir um dever sagrado.
Publicado originalmente em “Catolicismo” Nº 38 – Fevereiro de 1954 na seção “Ambiente, Costumes, Civilizações”000
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